Democracia participativa e recall: caminhos para a reversão da crise democrática

Democracia participativa e recall: caminhos para a reversão da crise democrática

Os modelos democráticos baseados predominantemente no sistema representativo não estão conseguindo acompanhar os avanços tecnológicos e as alterações globais nas inter-relações humanas que surgiram com o advento da internet e das mídias sociais.

Hoje parece inconcebível que um representante eleito pelo povo permaneça quatro, cinco, oito anos no mandato sem uma interação direta com aqueles que o elegeram: os smartphones, as redes sociais, as novas tecnologias já permitem uma consulta permanente e eficaz às bases eleitorais, de um modo que seria inimaginável quando da formação da maioria das Constituições democráticas vigentes.

Entretanto, a patologia da representação tem sido uma das causas principais da crise institucional global que se instalou nas modernas democracias: assim que eleitos, os representantes se afastam daqueles a quem deveriam representar e passam a adotar agendas muitas vezes contrárias àquelas propostas durante a campanha.

Embora sejam eleitos para representar a vontade popular, e disponham de recursos para manter uma interação direta e permanente de consulta, não o fazem simplesmente porque não há previsão constitucional ou legal eficaz que lhes obrigue a prestar contas de seus mandatos.

Sem possibilidade de exercer um controle social dos mandatos em curso, o eleitor acaba por aguardar um longo período até as novas eleições para que, então, reconhecendo o estelionato eleitoral a que foi submetido, renove sua representação política no Congresso.

O problema é quando o status quo impede uma renovação de fato, reproduzindo um looping de mandatos distanciados das bases, seja em razão das correlações de forças econômico-políticas que imperam nas mediações eleitorais, seja em razão do engessamento das estruturas partidárias, seja até mesmo pela ausência de educação política e senso crítico do eleitor médio.

Com o passar dos anos, a democracia representativa vai se esvaziando de sentido e a própria instituição do Congresso entra em crise. O prolongado agir irresponsável diante do eleitorado tira a legitimidade e, consequentemente, o poder do legislativo perante os demais poderes instituídos.

A consequência inexorável é o desequilíbrio de um pressuposto democrático inalienável: a separação e o equilíbrio entre os poderes – o velho princípio dos pesos e contrapesos de Montesquieu.

É o que está acontecendo no Brasil. Se o povo não se sente representado no Congresso, que constitucionalmente deveria ser a instituição delegada da vontade popular, toda a sua força será transferida indevidamente a outrem, no caso, um midiático e cada vez mais populista Poder Judiciário, subvertendo-se, assim, toda a ordem democrática.

Esse ativismo judicial desenfreado e essa judicialização da política crescentes só têm vazão em razão do distanciamento disfuncional que se formou entre o povo e seus representantes eleitos.

Diante desse cenário, parece-nos que a democracia participativa, ou seja, o chamamento do povo à participação política e a uma interação mais próxima com o Poder Legislativo será a única forma de reverter esse fenômeno.

Desde a Constituição de 1988, o Brasil já adota teoricamente um modelo de democracia semidireta ou participativa, que conjuga a democracia representativa – pelo sufrágio universal e voto direto e secreto - com institutos de democracia direta, como plebiscito, referendo, iniciativa popular, orçamento participativo e conselhos municipais.

Contudo, na prática, tais mecanismos de participação popular direta são pouco utilizados, por óbices procedimentais encontrados no próprio texto constitucional, mas também em razão da ausência de uma tradição democrática no país que explica os sintomas da patologia da representação já aqui referidos.

Utilizando-nos de um exemplo recente, podemos citar a polêmica reforma previdenciária em pauta no ano de 2017: alterações de grande impacto são discutidas nos altos escalões de Brasília, mesmo sem o consentimento e a aprovação da maioria da população brasileira, que se mostra perdida e desinformada, posto que a proposta foi apresentada de forma açodada e sem um debate público prévio, que poderia ter sido feito ao longo de anos, com a participação de todos os setores da sociedade.

Audiências públicas e conselhos específicos para estudo do tema poderiam ter sido formados, mas também haveria a possiblidade de se abrir um debate mais amplo através da convocação de um plebiscito para consultar a população e do incentivo à formação de assembleias populares que convocassem o engajamento cívico de toda a sociedade.

Entretanto, em nossa conformação constitucional, a iniciativa para convocação de plebiscitos e referendos é exclusiva do Congresso Nacional (artigo 49, XV), um óbice institucional que retira dos cidadãos a autonomia para dispor de tais mecanismos de democracia direta e justifica o fato de que, nas últimas três décadas, em nível nacional, tivemos apenas um plebiscito em 1993 (forma e sistema de governo) e um referendo em 2005 (desarmamento).

Por sua vez, os projetos de lei de iniciativa popular em âmbito nacional se engessam pela exigência de subscrição de, no mínimo, 1% do eleitorado nacional, distribuído por, pelo menos, cinco Estados, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles (artigo 61, parágrafo 2°).

Some-se a esses óbices burocráticos a ausência de um engajamento cívico associativo que possibilitaria a mobilização e organização social em torno de pautas legislativas, além da crescente aversão à política – reflexo da patologia da representação –, e o resultado são apenas quatro[1] leis de iniciativa popular até hoje aprovadas no Congresso Nacional[2].

Ficamos assim diante de uma encruzilhada: o déficit democrático se dá em razão da insuficiência do modelo exclusivamente representativo, contaminado pela infidelidade e crescente distanciamento entre representantes e representados; porém, o acionamento dos instrumentos de participação popular direta depende, em boa parte, da colaboração justamente daqueles mesmos representantes eleitos que pecam por não prestarem contas e não incluírem o povo que os elegeu em seu processo decisório.

Como, então, constranger os representantes eleitos pelo povo a potencializarem os instrumentos de democracia direta, já previstos na Constituição Federal? Como incentivar a participação popular e o engajamento cívico em torno de associações independentes com força política suficiente para se contrapor à burocratização dos partidos políticos e das máquinas eleitorais?

A solução parece estar na inclusão de um mecanismo de controle que permita a revogação popular dos mandatos (recall)[3] daqueles que eventualmente deixem de ser transparentes e comprometidos com o programa para o qual foram eleitos, o que vai possibilitar um monitoramento mais próximo dos titulares do poder sobre os atos de seus representantes, principalmente no parlamento.

As consequências imediatas serão, invariavelmente, uma maior transparência e fidelidade do mandatário com os compromissos programáticos apresentados na campanha e com as demandas da sociedade, bem como um aumento da participação e da qualificação do eleitor para o debate público, já que este poderá exigir essa abertura daqueles que detêm o poder delegado.

É preciso, porém, que o recall seja instituído como uma medida excepcional, para que não se torne também uma ameaça à manutenção da democracia, já que seu uso corriqueiro e irresponsável poderia ter consequências desastrosas, dentre as quais destacamos: (i) o prejuízo à independência dos mandatos, que se tornariam reféns de ondas momentâneas e se agarrariam em medidas populistas – e não necessárias ao bem comum; (ii) a utilização do recall como instrumento da oposição para revanchismos eleitorais ou instauração de um “terceiro turno”; e (iii) a perseguição aos parlamentares representantes das minorias, liderada por correlações de forças de grupos organizados.

Portanto, há que se cuidar para que o acionamento do recall seja restrito apenas aos casos em que o representante eleito não obedeça a condutas mínimas de fidúcia perante a sociedade – ausência gritante de prestação de contas e de compromisso programático com o programa partidário -, ou diante de uma grande crise generalizada de representatividade, o que pode ser calculado com a imposição de algumas exigências, como, por exemplo, um quórum bastante elevado para sua convocação e a impossibilidade de sua deflagração durante o primeiro e o último ano de mandato.

No caso específico do Brasil, tendo em vista o sistema exclusivamente proporcional com lista aberta que adotamos, o recall teria maiores dificuldades de aplicação, devendo ser precedido de uma reforma no sistema eleitoral.

De qualquer forma, a simples possibilidade de revogação popular de mandatos viabilizará uma reaproximação e interação maior entre o povo e seus representantes eleitos, não apenas no período eleitoral, mas durante todo o exercício do mandato. Em consequência, os demais institutos de participação popular serão naturalmente potencializados, o que poderá reverter finalmente essa patologia da representação e a crise da separação de poderes que atravessa o país.

 

 

[1] Lei nº 8.930/1994 (inclusão de homicídio qualificado no rol de crimes hediondos), Lei nº 9.840/1999 (combate à compra de votos), Lei nº 11.124/2005 (criou o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, para garantir moradia popular), Lei Complementar 135/2010 (a Lei da Ficha Limpa).

[2] Todas seguindo o processo legislativo ordinário, já que tiveram que ser “adotadas” por algum parlamentar, como se de sua autoria fosse, pela impossibilidade alegada pela Câmara dos Deputados de se conferir manualmente a autenticidade de todas as assinaturas físicas (mais de um milhão). A ausência da previsão de assinatura eletrônica para projetos de lei de iniciativa popular configura um óbice adicional ao exercício da democracia direta.

[3] Adotada originalmente nos Estados Unidos com o nome de recall, a revogação popular de mandatos já foi instituída em diversos países democráticos, inclusive nos países latino-americanos cujas constituições são mais recentes, como Colômbia, Venezuela, Equador e Bolívia.

 

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