PERSPECTIVAS DE GÊNERO NA HISTÓRIA DO DIREITO
Artigo de Gabriela Araujo e Laís Lopes Francelino originalmente publicado no livro “Horizontes da História do Direito: Reflexões em Homenagem a Dom Odilo Pedro Scherer”, coordenado por Vidal Serrano Nunes Junior e José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, publicado pela Editora Noeses.
Gabriela Shizue Soares de Araujo[1]
Laís Lopes Francelino[2]
[1] Doutora e Mestra em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da graduação da Faculdade de Direito da PUC-SP. Vice coordenadora do Gruo de Estudos de Direito Eleitoral da PUC-SP. Desembargadora Federal.
[2] Mestranda em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP); bolsista pela CAPES; Especialista em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Minas); Advogada; Professora em Estágio Docente no curso de Graduação em Direito da PUC/SP.
Introdução
A Constituição Federal de 1988 contempla a igualdade formal de direitos entre homens e mulheres - vide artigo 3º, inciso IV[1] e artigo 5º, inciso I[2] -, assim como diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário protegem e idealizam a igualdade de gênero, com destaque para o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5, da Agenda 2030 da ONU, que visa “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas[3]” em âmbito mundial.
Mas nem sempre foi assim. A discriminação e estigmatização de gênero advêm desde os primórdios da humanidade como sociedade civilizada, refletindo também nas origens do direito, haja vista que já na Antiguidade a mulher era inferiorizada e excluída dos espaços públicos e de poder, além de vítimas de todas as formas de violência, simplesmente em razão de seu gênero.
A mudança dessa realidade eminentemente patriarcal e conservadora ocorreu com o sacrifício de muitas mulheres, e pode ser retratada na evolução histórica do Direito, com a gradual ampliação da proteção às mulheres, especialmente no âmbito normativo internacional, inobstante ainda insuficiente.
Nesse sentido, o presente artigo vem abordar as mudanças no tratamento social e institucional das mulheres no decorrer da história, resultando no reconhecimento de direitos e de tratamento igualitário perante os homens, ainda que apenas perante a lei, já que, vale adiantar, a igualdade substancial ainda está muito longe de ser alcançada, mesmo nos tempos atuais.
Destarte, em que pese a evolução legislativa de proteção à mulher, o texto demonstrará que ainda há múltiplas barreiras a serem derrubadas, para se chegar à efetiva igualdade entre homens e mulheres, e para que os ideais prescritos em lei saiam do papel e produzam efeitos concretos na sociedade.
Ressalte-se, porém, que a abordagem aqui realizada traz apenas alguns aspectos da luta por igualdade de direitos ao longo da história, mais adstrita aos direitos políticos, muito embora se saiba que a desigualdade de gênero afeta todos os ramos do direito.
[1] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
[3] ONU. Sobre o nosso trabalho para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil. Como as Nações Unidas apoiam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil. Disponível em: https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030. Acesso em: 09 out. 2024.
1. A história do direito e o contexto milenar de exclusão das mulheres
O Direito e a democracia que vivemos hoje possuem raízes remotas na Antiguidade Clássica, quando desde então já se observava a deliberada dominação masculina pela subjugação das mulheres e negação de seus direitos, com a vigência do denominado “pátrio poder”[1]: a formação das cidades, tanto na Grécia quanto em Roma, se dava por meio de “confederação” de famílias de antepassados comuns, cujo poder encontrava-se nas mãos dos pais, chefes de família, de absoluta autoridade[2].
Quando se analisa o modelo grego de democracia direta vivido na cidade-estado de Atenas, na época de Péricles (495-429 a.C.), verifica-se que ali as mulheres já eram proibidas de votar ou gozar de quaisquer direitos políticos[3], ou seja, não eram consideradas cidadãs, ficando restritas à vida privada do oikos, com funções especialmente vinculadas à maternidade e aos cuidados domésticos.
Não é exagero afirmar, assim, que, por milênios, as mulheres eram privadas de qualquer autonomia e suas potencialidades eram reprimidas e limitadas[4], vistas como o “sexo” frágil, cujos papeis seriam afetos às tarefas domésticas, da maternidade e de cuidados dos vulneráveis e familiares.
Com efeito, tanto na democracia direta da Antiguidade, como na democracia representativa dos iluministas responsáveis pela Revolução Francesa e pela independência dos Estados Unidos, as mulheres foram proibidas juridicamente de gozarem de qualquer tipo de direito civil ou político, por leis deliberadas e criadas exclusivamente por homens.
Já no século XVIII, vale lembrar que o mesmo Jean-Jacques Rousseau que era considerado o pai da Democracia Moderna por seus pensamentos contratualistas e sua obra “O Contrato Social”, foi quem também escreveu, no ano de 1762, a obra “Emilio ou da Educação”, em que deixava clara a sua visão de que as mulheres não teriam a racionalidade e força necessárias para participar da vida pública, mas antes, deveriam ser representadas pelos maridos, pais e filhos. Em suas palavras: “(...) se a mulher foi feita para agradar e para ser subjugada, deve tornar-se agradável ao homem em vez de provocá-lo”[5].
Seu ponto de vista imperou na promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, na França, a qual somente contemplou os direitos civis e políticos dos homens. O emblemático lema da “liberdade, igualdade e fraternidade” não era extensível às mulheres.
Quando Olympe de Gouges tentou se insurgir contra isso, ao publicar, em 1791, a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”[6], reivindicando às mulheres os mesmos direitos dados aos homens pela Revolução Francesa, teve como resposta o cadafalso. Aliás, diz-se que suas últimas palavras, antes de ser executada pelos jacobinos, foram justamente a reprodução de um trecho da sua Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã: “a mulher tem o direito de subir ao cadafalso; mas ela deve igualmente ter o direito de subir à tribuna”.
Na mesma época, a filósofa inglesa Mary Wollstonecraft também se dedicava à defesa da igualdade de gênero, inclusive, contestando o entendimento de Rousseau sobre as mulheres, como se extrai do trecho de sua célebre obra “Reivindicação do direito das mulheres” abaixo transcrito:
“Os homens têm uma força física superior, mas, não fossem as noções equivocadas de beleza, as mulheres adquiririam suficiência para poder ganhar seu próprio sustento, que é a verdadeira definição da independência, e suportar essas inconveniências e tarefas corporais, que são requisitos para fortalecer a mente. Deixem-nos, então, atingir a perfeição física, permitindo que façamos os mesmos exercícios que os meninos não apenas durante a infância, mas também na juventude; assim, poderemos saber até onde vai a natural superioridade do homem. Pois que razão ou virtude pode se esperar de uma criatura cujo tempo de semear a vida foi negligenciado? Nenhuma. Não é por acaso que os ventos do céu espalham muitas sementes úteis sobre o solo alqueivado”.[7]
Apesar da discussão sobre a igualdade de direitos entre homens e mulheres ter se iniciado de forma mais organizada com as revoluções contratualistas do século XVIII, ainda que de forma tímida, tendo os defensores da igualdade de gênero sido vencidos, foi somente no fim do século XIX e a partir do século XX que os direitos civis e políticos passaram gradativamente a serem conquistados pelas mulheres, com a eclosão dos movimentos feministas e sufragistas inicialmente na Europa e nos Estados Unidos.
Em 1918, as mulheres maiores de 30 anos passaram a votar na Inglaterra, embora os homens maiores de 21 anos já gozassem de direitos políticos; em 1920, com a 19ª Emenda à Constituição, as norte-americanas passaram a poder votar para presidente nos Estados Unidos; no Brasil, o direito feminino de votar e ser votada foi conquistado em 1932, com o Código Eleitoral de Getúlio Vargas, apesar de ainda ser um voto facultativo, em oposição ao voto masculino, que então era obrigatório. Na França, berço da revolução e do contratualismo que fundou a democracia moderna, pasmem, o sufrágio feminino somente ocorreu em 1945![8][9][10].
Esse abismo histórico de participação feminina nas esferas públicas de deliberação e tomadas de decisão contribuiu para que, até hoje, em pleno ano de 2024, mulheres e meninas ainda sofram com as desigualdades de gênero que implicam não apenas em discriminações e sub-representação no mercado de trabalho e no espectro político, mas também em todos os tipos de violências, permeadas por machismo e misoginia, o que se agrava quando se inclui fatores interseccionais, como raça, orientação sexual, regionalidade, escolaridade e renda.
[1] CICCO, Claúdio de. História do Direito e do Pensamento Jurídico. 9 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023. p. 44.
[2] CICCO, Claúdio de. História do Direito e do Pensamento Jurídico. 9 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023. p. 47.
[3] FABRE-GOYARD, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 20.
[4] MORAES, Maria Lygia Quartim de. Prefacio. In: WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação do direito das mulheres. Tradução: Ivania Pocinho Motta. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 16.
[5] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. 3. ed. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 517.
[6] GOUGES, Olympe de. Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. 1791. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/mulheres.htm. Acesso em: 09 out. 2024.
[7] WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação do direito das mulheres. Tradução: Ivania Pocinho Motta. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 114-115.
[8] ALVES, Branca Moreira. A luta das sufragistas. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 49-63.
[9] BRASIL. Decreto n. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932. Brasil, 1932. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21076-24-fevereiro-1932-507583-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 09 Out. 2024.
[10] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. v. I. Trad. Sérgio Milliet. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019, p. 179-182.
2. A Evolução do conceito de Gênero e o Feminismo
Considerando que as mulheres foram prolongadamente proibidas legalmente de participar da vida pública e de usufruírem de quaisquer direitos políticos, natural que o movimento feminista tenha surgido inicialmente com foco no sufragismo, afinal, era importante que primeiro se garantisse a participação das mulheres na escolha de seus representantes e na formulação das leis, o que impactaria também na conquista de seus demais direitos.
A primeira onda do feminismo, iniciada no final do século XIX e que perdurou até meados de 1950, assim, foi marcada pelo movimento sufragista, mas ainda não discutia o conceito de gênero dissociado de sexo.
Foi Simone de Beauvoir que inaugurou a segunda onda do movimento feminista, marcada pela crítica à teoria essencialista sobre gênero, ao afirmar que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”[1], em sua célebre obra “O segundo sexo”, de 1949, onde demonstra que as diferenças entre homens e mulheres advêm de construções sociais e históricas, inexistindo na condição feminina determinismos de ordem natural.
Embora hoje pareça óbvio, foi revolucionário para a época a afirmação de que o gênero nada mais é do que uma construção social, cujos papeis desiguais foram construídos pelo patriarcado, enquanto o sexo refere-se apenas às características biológicas. Ou seja, como bem observa Silvia Pimentel, a construção dos estereótipos masculino e feminino não tem caráter inato ou origem biológica, mas, sim, é fruto do tratamento desigual adotado ao longo dos séculos, em que, para manutenção das hierarquias e relações de poder, à mulher era reservado o ambiente privado e, ao homem, o público.[2]
Por fim, na terceira onda do feminismo, que começou a despontar a partir de 1990, passou-se a questionar até mesmo o sistema binário de gênero, tendo surgido novas identidades de gênero, com destaque para a teoria queer de Judith Butler[3] e suas ideias iniciais sobre a fluidez do conceito de gênero.
Nessa esteira, acerca da fluidez do conceito de gênero, incabível dentro do sistema binário cisheteronormativo, vale citar as palavras da filósofa Elsa Dorlin:
(...) el género puede ser definido como uma relación de poder que garantiza su reproducción em parte gracias a las mutaciones del sistema categorial que produce y sobre el cual se adosa. Pero, al hacer esto a la vista de todo el mundo, como em el caso de los protocolos para intersexos, se expone plenamente em toda su historicidade: su historia es la de sus múltiples crisis y de las múltiples mutaciones que operan sobre los cuerpos, al capricho de la relación de fuerzas que la socava y amenaza. La capacidade normativa del género, el hecho de que esa relación social logre substancializar el processo de sexuación em dos sexos biológicos, a despecho de uma normatividade natural polimorfa, radica pues em su capacidade para mantener um régimen teórico y práctico em crisis. Frente a la multiplicidade de las configuraciones sexuales posibles, la norma de género no logra reducirlas a uma binariedad supuestamente “essencial” sino porque está em condiciones de operar constantes mutaciones sobre dichos cuerpos.[4]
Verifica-se que a mudança no entendimento sobre gênero e sexo não apenas influenciou a busca pelo direito das mulheres, mas também ampliou o próprio conceito do que é ser mulher, legitimando os direitos de pessoas LGBTQIA+, notadamente de mulheres transexuais, hoje contempladas pela maioria das políticas afirmativas destinadas às mulheres.
[1] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Trad. Sérgio Milliet. 5. ed. v. II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 11.
[2] PIMENTEL, Silvia. Direito e gênero. In: PIMENTEL, Silvia (coord.); PEREIRA, Beatriz; MELO, Monica de (orgs.). Direito, discriminação de gênero e igualdade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 5.
[3] BUTLER, Judith. El género em disputa: El feminismo y la subversión de la identidad. Trad. Antonia Muñoz. Barcelona: Paidós, 1999. p. 7
[4] DORLIN, Elsa. Sexo, género y sexualidades: Introducción a la teoria feminista. Buenos Aires: Nueva Visión, 2009. p. 46-47.
3. Direitos Políticos das Mulheres Brasileiras
De acordo com a IPU (Inter-Parliamentary Union), uma organização global dos parlamentos nacionais que conta com a adesão de 178 países, a média mundial de participação feminina nos parlamentos é de 27%, enquanto a média das Américas é de 35,5%[1].
São números baixos, se considerarmos que hoje a população mundial está quase igualmente dividida entre homens e mulheres, sendo que em muitos países, como no Brasil, as mulheres já são maioria do eleitorado apto a votar (53%)[2].
Ocorre que as mulheres ainda sofrem, não apenas na política, mas em todos os espaços públicos e institucionais, das consequências de uma sociedade secularmente construída sob as premissas do patriarcado, que justificou a fundação da democracia moderna com a proibição legal de que pessoas gozassem de seus direitos políticos simplesmente em razão de seu sexo biológico, por muito tempo convenientemente considerado como “sexo frágil”, ficando restritas a uma esfera doméstica de cuidados do lar e dos vulneráveis, impedidas até mesmo de acessar uma educação formal ou o mercado de trabalho.
Como já mencionado alhures, a maioria das mulheres do Ocidente somente conquistaram seus direitos políticos – de votarem e serem votadas – nas primeiras décadas do século XX, malgrado ainda não totalmente em pé de igualdade com os homens.
Em razão da constatação dos efeitos deletérios à democracia causados por essa imposição jurídico-legal de alijamento da participação feminina das esferas públicas de poder e de debate que se prolongou por séculos, a ONU e demais organismos internacionais que se dedicam à proteção dos direitos humanos e redução de desigualdades em âmbito global e regional passaram a defender as cotas de gênero e políticas afirmativas como mecanismos necessários para acelerar a inclusão de mulheres na política e alcançar a igualdade de gênero substantiva (5º ODS da ONU).
No Brasil, onde as mulheres somente conquistaram o direito ao voto em 1932, desde 1997 a lei[3] já exige que os partidos políticos apresentem chapas de candidaturas ao Legislativo com pelo menos 30% de mulheres candidatas, e ao longo das décadas foram implementadas outras políticas afirmativas adicionais, como cotas de financiamento e de visibilidade em propaganda eleitoral, porém, todas insuficientes para combater de forma efetiva a discriminação contra as mulheres que está estruturalmente arraigada na sociedade e nas instituições.
Basta verificar o resultado das Eleições Gerais de 2022 no Brasil. Somente 91 mulheres foram eleitas deputadas federais, o que corresponde a 17,7% da totalidade das 513 cadeiras disponíveis: um avanço irrisório se comparado ao resultado das Eleições de 2018, em que 77 mulheres haviam sido eleitas deputadas federais (15%). Nas Assembleias Legislativas dos Estados, os números são parecidos: na somatória de deputadas estaduais e distritais, chega-se ao total de 190 mulheres eleitas (18%), mas em quatro estados a representatividade feminina ficou abaixo de 10% (Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Goiás).
Com relação ao Senado Federal, teria acontecido um retrocesso relevante, se nenhuma suplente assumisse. Considerando apenas o resultado das Eleições de 2022, das 81 cadeiras disponíveis, apenas 10 seriam ocupadas por mulheres senadoras a partir de 2023, duas a menos que na legislatura anterior. No entanto, acabou ocorrendo o ingresso de 5 mulheres suplentes: uma porque o titular foi eleito governador do Estado e outras 4 porque os titulares se tornaram ministros de Estado[4].
As dificuldades que as mulheres brasileiras enfrentam para alçar postos de liderança são ainda mais evidentes quando a lupa é colocada sobre o Poder Executivo. Das 27 unidades federativas do país, apenas dois Estados elegeram governadoras em 2022: o Rio Grande do Norte (Fátima Bezerra/PT) e o Pernambuco (Raquel Lyra/PSDB).
A resistência dos partidos políticos em investir nas candidaturas de mulheres, as fraudes reiteradas às parcas cotas de gênero existentes em nossa legislação, a violência e o assédio político direcionado às mulheres que ousam se candidatar são alguns dos fatores que contribuem para que o Brasil esteja puxando para baixo a média das Américas de participação feminina nos parlamentos.
Entretanto, a desigualdade e violência de gênero, infelizmente, não é uma mazela que afeta apenas o Brasil, pelo contrário, trata-se de um fenômeno global que não se restringe aos espaços políticos, mas ainda se reflete em toda a vida em sociedade: da diferença salarial e jornada dupla marcada pelos estigmas em torno dos papéis de gênero, à violência doméstica e cultura do estupro que assombra americanas, europeias, asiáticas e africanas, indistintamente.
[1] Disponível em: https://data.ipu.org/women-averages Acesso em 09 out. 2024.
[2] Disponível em: https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/seai/r/sig-eleitor-eleitorado-mensal/home?session=115518845956089 Acesso em 09 out. 2024.
[3] Lei nº 9.504/97, Art. 10, §3º: Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais no total de até 100% (cem por cento) do número de lugares a preencher mais 1 (um). (…) § 3o Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.
[4] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/01/06/com-suplentes-bancada-feminina-sera-a-maior-da-historia Acesso em 27 Jan. 2023.
4. A construção da proteção das mulheres: busca pela igualdade de gênero
Neste contexto de evolução do conceito de gênero e de luta pela igualdade, algumas normas internacionais foram e vêm sendo essenciais para assegurar os direitos das mulheres como se conhece atualmente.
De início, necessário mencionar a Carta das Nações Unidas de 1945, que faz menção à igualdade de direitos entre homens e mulheres graças à presença de mulheres latino-americanas na sua elaboração, em Nova Iorque, em especial da diplomata brasileira Bertha Lutz.[1]
Três anos depois, também devido ao esforço de mulheres latino-americanas e caribenhas, bem como de Eleanor Roosevelt, ex-primeira-dama dos Estados Unidos da América, a Declaração Universal dos Direitos Humanos trouxe uma linguagem mais inclusiva às mulheres, com a utilização da expressão “todos” ao invés de “todos os homens”. Também houve a introdução da previsão de igualdade no mercado trabalho e no casamento.
Mais tarde, em 1979, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Convenção CEDAW). Trata-se do documento mais importante em termos de reconhecimento de direitos humanos das mulheres, cuja implementação se deu por meio do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres – Comitê CEDAW, criado com a finalidade de monitorar a concretização dos direitos das mulheres nos Estados-parte.
Contudo, conforme bem elucida Silvia Pimentel, o documento é insuficiente para a obtenção de um reconhecimento de direitos pleno, global e interseccional, haja vista apresentar muitas omissões, principalmente sobre temas envolvendo violência doméstica e familiar e sobre direitos sexuais e reprodutivos.[2]
O Brasil ratificou a Convenção apenas em 1984, mas com ressalvas envolvendo os direitos civis e familiares das mulheres, tendo a ratificação integral ocorrido somente dez anos depois, em 1994.
Também em 1994, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil em 1995. Essa convenção trata da violência contra a mulher, definindo-a e preconizando ações de prevenção, punição e apoio às vítimas.
Por meio da Convenção de Belém do Pará, reconhece-se que “a violência contra as mulheres é uma ofensa à dignidade humana”[3], dando visibilidade para exigir sua eliminação.
Entretanto, embora seja notória na história do direito a evolução e construção dos direitos humanos das mulheres em âmbito internacional, muitos países signatários das convenções aqui citadas, inclusive o Brasil, não efetivaram a proteção conferida no âmbito normativo internacional. O caso Alyne Pimentel Teixeira, por exemplo, que trouxe a primeira condenação do Brasil junto à ONU, retrata bem essa realidade.
Alyne Pimentel Teixeira era uma jovem carioca, negra e de baixa-renda, que, aos 28 anos de idade, grávida (no sexto mês de gestação), morreu em razão da negligência, falta de assistência médica e precariedade do sistema de saúde do Rio de Janeiro. A mãe da jovem ajuizou ação para recebimento de indenização, todavia, só obteve uma decisão em primeira instância em 2013, dez anos depois do ajuizamento da demanda, a qual veio sem o reconhecimento da responsabilidade do Estado Brasileiro.
O caso foi apresentado ao Comitê CEDAW em 2007 e, em 2011, o Comitê reconheceu a desídia do Estado e condenou o Brasil a indenizar a família da vítima, bem como a assegurar o direito das mulheres ao acesso adequado à procedimentos obstétricos.
Contudo, tais problemas ainda são recorrentes. De acordo com pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, em parceria com o Serviço Social do Comércio - SESC, uma em cada quatro mulheres grávidas no Brasil já sofreu violência obstétrica[4].
Outrossim, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024[5], o Brasil registrou em 2023 um estupro a cada 6 minutos. No mesmo ano, 1.467 mulheres foram vítimas de feminicídio (o maior número já registrado desde a criação da Lei nº 13.104/2015, que tornou o feminicídio um homicídio qualificado).
Para além da violência, não se pode deixar de mencionar a desigualdade de gênero no mercado de trabalho: segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística[6], em 2019, homens ganharam, em média ponderada de remuneração, cerca de 30% a mais que as mulheres, fato que também demonstra o quão longe se está da almejada igualdade de gênero.
[1] PIMENTEL, Silvia. Convenções de direitos humanos sobre direitos da mulher. Enciclopédia Jurídica da PUCSP. 1. ed. São Paulo: Tomo Direitos Humanos, 2022. Disponível em: < https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/527/edicao-1/convencoes-de-direitos-humanos-sobre-direitos-da-mulher-> Acesso em: 21 set. 2024.
[2] PIMENTEL, Silvia. Convenções de direitos humanos sobre direitos da mulher. Enciclopédia Jurídica da PUCSP. 1. ed. São Paulo: Tomo Direitos Humanos, 2022. Disponível em: < https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/527/edicao-1/convencoes-de-direitos-humanos-sobre-direitos-da-mulher-> Acesso em: 21 set. 2024.
[3] BARSTED, Leila Linhares. Apresentação. In: FROSSARD, Heloisa (org.). Instrumentos Internacionais de Direitos das Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2006. p. 140.
[4] FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Mulheres Brasileiras e Gênero nos espaços Público e Privado. 2010. Disponível em: < https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf> Acesso em 21 set. 2024.
[5] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024. Disponível em: < https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2024/07/anuario-2024.pdf> Acesso em: 21 set. 2024.
[6] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Homens ganharam quase 30% a mais que as mulheres em 2019. Agência IBGE Notícias, 2020. Disponível em: < https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27598-homens-ganharam-quase-30-a-mais-que-as-mulheres-em-2019> Acesso em: 21 set. 2024
Considerações finais
A partir de uma interpretação histórica do direito, é possível verificar a evolução dos direitos das mulheres, cuja proteção foi gradualmente conquistada diante de transformações sociais em meio a uma sociedade patriarcal e conservadora.
A alteração da concepção de gênero e o movimento feminista foram essenciais na luta pela igualdade de gênero, reconhecendo-se, tanto no Brasil, quanto no âmbito internacional, a necessidade de tratamento igualitário entre homens e mulheres.
Mais recentemente, em setembro de 2015, 193 (centro e noventa e três) Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU), incluindo o Brasil, acordaram em fixar 17 (dezessete) novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em um plano de ação global, a ser implementado até 2030, para garantir paz e prosperidade à humanidade, com foco também na proteção do meio-ambiente e do clima, e na erradicação da pobreza.
A igualdade de gênero foi incluída na Agenda 2030 da ONU como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável a serem perseguidos (5º ODS), pois se entendeu que seria impossível se pensar em sustentabilidade enquanto se continuar negando a metade da humanidade (no caso, as mulheres) o gozo de seus plenos direitos e oportunidades, inclusive no que se refere à participação política, acesso à educação, emprego e igualdade de oportunidades nos espaços de liderança e tomada de decisões em todos os níveis.
O presente artigo está sendo escrito em 2024, portanto, ainda restam 6 (seis) anos para se tentar “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” em âmbito global, em cumprimento à Agenda 2030.
Embora se reconheça o esforço da comunidade internacional, a ausência de legislações e políticas afirmativas realmente eficientes e a resistência dos poderes instituídos, majoritariamente ocupados por homens, em renunciar a seus privilégios, tem configurado a principal óbice para a consecução desse objetivo.
No caso brasileiro, para cumprir com a Agenda, é preciso redesenhar o arcabouço jurídico-legislativo de combate à violência de gênero e as políticas afirmativas existentes no país, para que possamos romper definitivamente as barreiras estruturais e avançar rumo à democracia paritária. Compliance intrapartidário de gênero e diversidade e reserva de assentos no Poder Legislativo podem ser algumas vias interessantes. Mas é preciso vontade política para fazer acontecer. Com um Congresso formado por mais de 80% de homens, se não houver muita cobrança da opinião pública, o Brasil continuará passando vergonha em relação aos seus pares.
Mais do que necessária, faz-se urgente a integração sistemática da perspectiva de gênero na implementação de todos os demais objetivos e metas da Agenda 2030 da ONU, nas três dimensões de desenvolvimento sustentável almejadas - econômica, social e ambiental -, sendo premente que o Brasil e os demais Estados-membros, por meio de seus órgãos públicos e governos, com a contribuição de empresas e sociedade civil, empenhem todos os esforços e políticas afirmativas na construção de uma democracia paritária, participativa e inclusiva.
Não basta igualdade de direitos apenas na lei: é preciso que se busque uma igualdade de gênero real e efetiva. Será que conseguiremos até 2030? Depende de um esforço conjunto muito maior do que o que vem sendo feito até agora. Fica aqui um apelo e a esperança de que as futuras gerações não tenham que passar pelo que nós, mulheres e meninas em 2024, ainda passamos.
Referências Bibliográficas
ALVES, Branca Moreira. A luta das sufragistas. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 49-63.
ARAUJO, Gabriela Shizue Soares de. MULHERES NA POLÍTICA BRASILEIRA: Desafios rumo à democracia paritária participativa. São Paulo: Arraes Editores, 2022.
BARSTED, Leila Linhares. Apresentação. In: FROSSARD, Heloisa (org.). Instrumentos Internacionais de Direitos das Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2006.
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