Façamos Justiça à Lava Jato
Artigo originalmente publicado na obra coletiva “O Livro das Suspeições”, em 01/08/2020, disponível na íntegra aqui.
Gabriela Shizue Soares de Araujo[1]
Priscila Pamela C. Santos[2]
Após as revelações do The Intercept Brasil e de diversos veículos de imprensa sobre os métodos escusos de trabalho utilizados pelos principais atores da famigerada Operação Lava Jato, e especialmente quando Sérgio Moro deixou a magistratura para compor o governo do presidente que se elegeu beneficiado por suas suspeitas decisões, as quais retiraram do jogo eleitoral o então favorito nas pesquisas, ficou mais do que comprovada a existência de um projeto político de poder que corrompeu parte do sistema de justiça penal em Curitiba e gerou sequelas gravíssimas na democracia brasileira.
Não é exagero afirmar que o caos experimentado hoje no Brasil é reflexo imediato dessa operação jurídico-político-midiática que devastou não só muitas vidas e histórias individuais, mas também a economia nacional, a segurança jurídica, a imagem internacional do país, e, por fim, a nossa democracia, posto que atropelou direitos e garantias fundamentais protegidos expressamente pelo texto constitucional, para atender a interesses duvidosos de funcionários públicos que deveriam supostamente estar a serviço do bem comum e da sociedade brasileira.
Eis o nosso cenário atual: na data em que este texto está sendo redigido, 16/07/2020, o Brasil enfrenta a pandemia da Covid-19 há quatro meses e já contabiliza mais de 75 mil pessoas mortas e quase 2 milhões de pessoas contaminadas pelo vírus; conta com índices altíssimos de violência contra a mulher (a cada 2 horas uma mulher é morta); o extermínio dos jovens negros somente se intensifica (a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado); com um considerável aumento da taxa de violência e letalidade policial nos últimos anos[3]; enquanto assistimos impassíveis aos recordes nos registros de desmatamento da Amazônia, 3.069,57 km²[4]; e outras incontáveis tragédias se impõem crescentemente ao povo brasileiro.
As leitoras e leitores devem estar se questionando sobre qual a conexão estabelecida entre os dados trazidos acima e a Operação Lava Jato. Nossa resposta: conexão total. Como diz o advogado e jurista Marco Aurélio de Carvalho, o “bolsonarismo” é filho de pai e mãe do “lavajatismo”. E é por isso que se faz extremamente necessário o apontamento dos idealizadores desse projeto nefasto de poder, para que a história não incida em erros e para que sejam responsabilizados por seus atos.
Origens da Operação Lava-Jato
A Lava Jato foi deflagrada em março de 2014, mas remonta a investigações iniciadas em 2009, envolvendo políticos de Curitiba e alguns doleiros, por isso a fixação de competência na Justiça Federal de Curitiba, até então, de forma legítima.
Tais investigações começaram a ser desvirtuadas, quando o então juiz Sérgio Moro estabeleceu o entendimento de que a investigação não deveria se limitar apenas aos fatos relacionados aos doleiros que operavam em Curitiba, mas também em suas inúmeras conexões fora de Curitiba, ampliando sobremaneira a sua competência.
Tanto é assim, que a origem do nome da operação, “Lava Jato”, vem de investigações sobre um doleiro com vínculos em uma casa de câmbio estabelecida nas dependências de um posto de gasolina em Brasília – e não em Curitiba. E foi a partir de Brasília que a operação passou a expandir seus domínios.
Os fatos novos não guardavam relação alguma com os casos até então investigados em Curitiba, mas a possibilidade de projeção que a atuação nessas investigações poderia trazer fez crescer a expectativa de implementação do projeto político do ex-juiz, ao ponto de este fixar artificialmente a competência para aquelas investigações e futuras ações e avocar para si o poder maior.
Ali se anunciava o início do fim.
Para manter a competência artificialmente fixada, o ex-juiz chegou a impedir que, em algumas delações, autoridades com prerrogativa de foro fossem nomeadas. Ferindo o princípio do juiz natural e do devido processo legal, usurpou a competência de outros tribunais, incluindo o Supremo Tribunal Federal, para puxar para si o julgamento de figuras públicas.
Desde o início ficou evidente a ambição esquizofrênica pelo autoritarismo, pelo poder ilimitado e pelo desvio das funções por parte daquele magistrado, que logo angariou cúmplices dentro do sistema de justiça e de relações sociais privilegiadas travadas na elite do funcionalismo público na pequena capital do Paraná.
A instauração da “Nova República de Curitiba”
O poder vislumbrado a partir da Operação Lava-Jato passou a ser a força motriz do então juiz Sérgio Moro, assim como a de alguns procuradores dessa ilimitada “força-tarefa”, que acabou se forjando no desvio de funções e na corrupção do modelo constitucional de sistema de justiça penal: as relações profissionais e de imparcialidade entre juiz da causa e procuradores foram substituídas por uma aliança implacável direcionada à perseguição de alvos previamente escolhidos.
Daí em diante os abusos aumentaram vertiginosamente. Nada mais os deteve, nem a lei, nem a Constituição Federal, apesar de seus deveres funcionais, como servidores públicos, de seguir estritamente o que determina a legislação e nela fundamentar todas as suas decisões. O projeto de poder concebido precisaria ser consumado a todo custo. Afrontas ao devido processo penal, aos direitos e garantias da pessoa acusada e à nossa estrutura democrática de Estado faziam parte do pacote.
Prisões ilegais foram decretadas no curso nas investigações sob a forma de conduções coercitivas e diversos mandados de busca e apreensão foram cumpridos sempre com vazamentos prévios para a ampla cobertura midiática, apta a condicionar a população à visão deturpada na formação de culpa antecipada dos investigados. Na mesma esteira, trechos de delações e interceptações telefônicas, por vezes fora de contexto e muitas vezes sem qualquer interesse público, foram divulgados em momentos estratégicos.
Todas essas ações, tomadas ao arrepio da lei – em total afronta à imparcialidade do juiz, à paridade de armas entre acusação e defesa, ao conhecimento dos investigados sobre as acusações que pairavam contra si, à proteção à intimidade e à imagem, à inviolabilidade das comunicações entre advogados e clientes e diversas outras garantias – foram coordenadas entre o ex-juiz e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato, conforme escancarado pelas revelações do The Intercept, e contaram com o apoio irrestrito da grande mídia para a consumação das suas ilegalidades.
Trata-se de uma fórmula que vem sendo aplicada desde a Antiguidade por figuras autoritárias, a política do pão e circo: desde os gladiadores jogados aos leões, das bruxas nas fogueiras da Inquisição, das decapitações e enforcamentos em praças públicas de inimigos, até a espetacularização do processo penal que assistimos hoje, transformado num big brother diante das câmeras ao vivo da mídia de massa.
As divulgações massivas e distorcidas sobre as investigações conduzidas pela “República de Curitiba”, com o linchamento público de figuras importantíssimas do país contribuíram, sobremaneira, para que se projetasse no imaginário coletivo a ideia de que esses “falsos justiceiros” poderiam representar os salvadores da pátria.
Para além do esfacelamento do direito, o que se via nas telas da TV era a incitação do ódio na população, que passou a acreditar naqueles falsos heróis e, consequentemente, a aceitar e apoiar o vale-tudo processual, na busca por responsabilização por suas mazelas individuais, decorrentes de problemas sociais estruturais, de que sequer tinham a exata compreensão.
Relações entre juiz e procuradores da Lava-Jato: suspeição ou corrupção?
Com o amplo apoio inicial da mídia e a posterior adesão de boa parte da opinião pública, o projeto político do então juiz Sérgio Moro e dos procuradores que a ele se aliaram nas ilegalidades cometidas dentro da Lava-Jato passou a ganhar cada vez mais forma e força. Contudo, ainda tinha um obstáculo forte no caminho: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que encerrara seu 2º mandato com aprovação de 87% do eleitorado e que sairia candidato nas eleições de 2018.
Logo, assim como feito com tantas outras figuras públicas acusadas nos processos da Lava Jato, o desgaste da imagem, da trajetória e dos feitos do popular ex-presidente também precisaria ser prioridade, mas em maior escala. A escolha de tamanho alvo seria o grande teste dos limites daqueles funcionários públicos regionais, agora aliados à grande mídia e, como revelou o The Intercept Brasil depois, eles apostaram todas as suas fichas nessa empreitada.
O circo armado em 2016 para a ilegal condução coercitiva do ex-presidente Lula, sem que tenha havido qualquer negativa anterior ou intimação para que ele comparecesse perante o Juízo, e, dias depois, a divulgação ilegal e criminosa de conversa telefônica interceptada entre a então presidente da República, Dilma Rousseff, e o ex-presidente Lula, sobre possível nomeação deste para a Casa Civil, foram determinantes para selar o destino político do país.
É importante ressaltar sempre que não só a divulgação, mas a própria interceptação telefônica foi ilegal. O despacho emanado pelo então juiz Sérgio Moro para a interrupção das gravações se deu às 11:13hs do dia 16/03. A Polícia Federal foi comunicada às 11:44hs. As comunicações às operadoras de telecomunicação foram feitas às 12:17/12:18hs, contudo, as gravações continuaram a ser realizadas e às 16:21hs Moro determina o levantamento do sigilo do processo inteiro e dá publicidade às gravações ilegais.
A divulgação daquelas gravações fora de contexto levou o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, a proferir decisão impedindo a nomeação do ex-presidente Lula como ministro da Casa Civil. Porém, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em outubro de 2019, Gilmar Mendes confessou que teria dúvidas sobre que decisão tomar, se tivesse conhecimento de todos os fatos revelados posteriormente pelo The Intercept Brasil[5].
Moro deveria ter sido processado criminalmente por esses fatos. Aqui já não se está a falar somente em ocorrência de nulidade absoluta por demonstração cabal da sua falta de imparcialidade, mas de eventual cometimento de conduta estabelecida na lei como criminosa.
Esse ato ilícito praticado pelo ex-juiz demonstrou ser exatamente o que faltava para materializar a consecução do projeto político dos integrantes da Lava Jato. Os procuradores fundaram uma associação com fins lucrativos – para enriquecerem com palestras - e o ex-juiz cavou a sua entrada na política de forma mais escancarada, claro, porque a sua atuação na Lava Jato sempre se mostrou política e já vinha sendo denunciada desde o início por boa parte da comunidade jurídica séria e pelos advogados de defesa que viam diariamente os direitos e garantias constitucionais de seus clientes serem atropelados pela aliança persecutória firmada entre juiz e procuradores.
Ainda em 2016, o clima das ruas, aliado ao clima político propiciaram a queda de uma presidente da República legitimamente eleita, via impeachment, sem que tivesse incorrido em qualquer crime de responsabilidade. Verdadeiro golpe. Um golpe contra o Brasil, um golpe contra o Estado Democrático de Direito, um golpe contra todas e todos nós.
A prisão do ex-presidente Lula, em abril de 2018, decorrente da confirmação de sua condenação pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o retirou das eleições presidenciais para as quais era o franco favorito, o que fez com que o ciclo de destruições iniciado com a Lava Jato pudesse ser encerrado. A operação, não de combate sério e efetivo à corrupção, mas a que foi utilizada como instrumento para a execução de um projeto de poder, tinha cumprido a sua finalidade.
O processo em 1ª instância contra o ex-presidente Lula foi concluído em tempo recorde, 10 meses, enquanto o recurso de apelação foi julgado em menos de 5 meses. Nunca se viu tanta rapidez no julgamento de um recurso em 2º grau, em um caso de tamanha repercussão e complexidade. Da oposição dos embargos ao seu julgamento, para que a prisão do condenado sem o direito ao devido processo legal pudesse ser efetivada, não se passaram sequer 3 meses.
Isso demonstra que as ilegalidades originadas na 13ª Vara Federal de Curitiba, com a manipulação da mídia e da opinião pública, e a transformação da persecução penal num grande espetáculo, fez também de refém toda a cadeia consequente do sistema de justiça.
Não há como se considerar como legítimo um processo iniciado de forma ilegal, com a fixação artificial de competência por um juiz interessado na popularidade que o procedimento lhe traria; não há como se considerar legítimo um processo utilizado como instrumento de projeto político de poder do juiz oficiante na causa, que atuava em conluio com os procuradores para o estabelecimento de estratégias voltadas à condenação de seu “oponente”; não há como se considerar legítimo um processo em que o juiz se refere ao acusado como oponente e não como sujeito de direitos e em que os procuradores, sem qualquer compromisso com o cargo ocupado e com a atribuição de fiscais de lei, demonstraram tamanho ódio contra o acusado, ao ponto de tecerem comentários abjetos sobre a morte de sua esposa, neto e irmão; não, não há como se considerar legítimo um processo em que todos os direitos e garantias são violados. Processos desenvolvidos ao arrepio da lei não podem levar nem à condenação de um ex-presidente da República, nem a de ninguém.
Um precedente desse tamanho pode levar ao colapso todo o desenho constitucional de garantias e direitos fundamentais tão arduamente conquistados com a redemocratização e a Constituição Federal de 1988.
A lei é para todas e todos e não se materializa na figura do julgador. A lei não é o que acusador ou o julgador querem que ela seja. Essas violações em nome de falacioso combate à corrupção não podem ser validadas pelos demais órgãos do Judiciário. O que fez o ex-juiz em conluio com os procuradores precisa ser nominado de acordo com o que diz a verdadeira lei: crimes.
E se, por qualquer razão, ainda restava alguma dúvida sobre a atuação para além de parcial, mas promíscua do ex-juiz Sérgio Moro, vale ressaltar que este aceitou largar a magistratura para assumir o cargo de Ministro da Justiça oferecido pelo presidente que ele mesmo diretamente auxiliou a se eleger. Dessa vez não precisamos do The Intercept para lançar luz aos nossos olhos. O próprio ex-juiz assumiu claramente o seu projeto político quando aceitou o cargo oferecido no governo Bolsonaro.
Durante a sua estada no Ministério da Justiça, teve como único feito a apresentação do “projeto de lei anticrime”, que ao contrário do nome, de anticrime não tem nada, mas trata-se de verdadeira licença para o extermínio da população preta, pobre e periférica, por parte dos agentes policiais. Projeto mesquinho e com impactos muito negativos na pauta da política criminal do país, com aumentos de penas desproporcionais, equiparação de crimes comuns a hediondos, enfim, uma lástima. O projeto foi esvaziado nos grupos de trabalho da Câmara e Senado e foi aprovado já com alguma redução de danos.
O ex-juiz permaneceu à frente do Ministério da Justiça por 15 meses. O desgaste da imagem do Chefe do Executivo exigiu dele o distanciamento daquela figura, para que seu projeto político não naufragasse. Moro deixou o Ministério e ao fazê-lo procurou se colocar mais uma vez como herói da nação. Entretanto, a sociedade já entendeu quais são as suas reais intenções políticas, assim como os meios de que se utiliza para alcançá-las: exposição midiática de conversas não autorizadas parece ser um clichê, dissimulação e deslealdade, também.
Parafraseando Lenio Streck: o que fazer quando se sabe que se sabe?
Como se depreende da evolução dos fatos até aqui exposta, fica evidente que os atos ilícitos promovidos pela Lava Jato conduziram Jair Bolsonaro à Presidência da República e, com ele, o fechamento do ciclo do caos que nos remete ao início do texto.
O que se viu de lá para cá foram os desmontes às políticas públicas, a retirada de direitos trabalhistas e previdenciários, o negacionismo, o estímulo à violência e ao ódio.
Ah o ódio, como pode crescer tanto? Alcançou patamares inimagináveis: os negros, os indígenas, os quilombolas, as mulheres, as pessoas em situação de rua, a imprensa livre, o meio ambiente, a democracia – populações e bens tão caros à construção de uma sociedade mais igualitária, passaram a ser os principais alvos do ódio indiscriminado. Fake News e ameaças passaram a reger o nosso cotidiano. Ataques às instituições democráticas entraram na ordem do dia.
Definitivamente esse não era o cenário do país pré Lava-Jato. Ocorre que o desprezo aos direitos e garantias fundamentais e ao próprio texto constitucional foi incutido no senso comum, já que invocado diariamente para justificar as arbitrariedades cometidas pelos agentes públicos com poderes ilimitados da famigerada Operação Lava-Jato. Uma operação jurídico-político-midiática forjada no ódio, na perseguição, no autoritarismo, na força excessiva do Estado policial e no linchamento público de cidadãos, partidos políticos e empresas brasileiras.
Os retrocessos democráticos e especialmente a instabilidade institucional que enfrentamos hoje têm origem na Lava Jato e na atuação ilegal – e possivelmente criminosa - do ex-juiz Sérgio Moro e de seus cúmplices, ou, voltando a citar as palavras de Marco Aurélio de Carvalho, o bolsonarismo é filho de pai e mãe do lavajatismo.
A prática de qualquer ilegalidade no âmbito de um processo é reprovável, mas as praticadas no âmbito da Lava-Jato, por terem alcançado padrões jamais vistos na história do Judiciário brasileiro, necessitam de respostas à altura.
Em países como a Alemanha, por exemplo, a falta de imparcialidade de procuradores e juízes é punida com pena de reclusão. Espera-se que aqui, ainda que tardiamente, ao menos se reconheça a nulidade dos processos em que a relação de promiscuidade entre o órgão acusador e o julgador tenha se estabelecido. Note que propositadamente não utilizamos o termo parcialidade, já que o ocorrido na Lava Jato foi além, ultrapassou a esfera da suspeição para adentrar em práticas eventualmente criminosas.
A ideia de que o órgão ministerial não precisa ser isento e imparcial é falaciosa. Ao Ministério Público incumbe a função de atuar como fiscal da lei, de modo que assim precisa agir para buscar elementos de prova que conduzam não só à condenação, mas também à absolvição de pessoas acusadas, caso contrário, a atribuição se torna vazia.
Todas as garantias inerentes à magistratura foram estendidas ao Ministério Público, de forma que as obrigações também o precisam ser. Já passou da hora de se determinar, com a responsabilidade que o cargo requer, a obrigatoriedade de isenção que seus representantes devem assumir no processo penal.
À advocacia não são conferidos direitos à inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e vitaliciedade, por essa razão o compromisso do defensor é com os direitos e garantias assegurados ao seu constituído, diferentemente do Ministério Público, que tem por lei a incumbência de fiscalizar a aplicação da lei sem adoção de um lado, sob pena de nulidade dos atos praticados.
Nesse sentido, a aprovação do projeto de lei n.º 5282/2019, conhecido como “Anastasia Streck” se mostra extremamente necessária, para que não experimentemos novos escândalos judiciários como os promovidos pela Lava Jato, em que não pairam dúvidas de que os procuradores e o agora ex-juiz Sérgio Moro tinham um lado bem definido, o de acusar, arbitrariamente e ilegalmente, com preferência a alvos por eles conjuntamente discriminados. A moralidade administrativa que rege tais carreiras foi massacrada por seus representantes.
No que toca à função do Ministério Público, o projeto estabelece a inclusão de dois parágrafos ao artigo 156 do Código de Processo Penal:
“§1º Cabe ao Ministério Público, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito ou procedimento investigativo a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com este Código e a Constituição Federal, e, para esse efeito, investigar, de igual modo, na busca da verdade processual, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa.
§2º O descumprimento do § 1º implica a nulidade absoluta do processo.” [6]
E como já citamos esse importante projeto de lei inspirado em pareceres do professor Lenio Streck, que desde o início, e em conjunto com diversos outros grandes nomes da advocacia e da academia, vem denunciando as práticas ilegais desenvolvidas no âmbito da Lava Jato, vale também invocar aqui a sua célebre frase: o que fazer quando se sabe que se sabe?[7]
O protagonismo dessa decisão está nas mãos da mais alta Corte do país, incumbida da missão de resgatar o Estado de Direitos e não permitir que o Estado de Barbárie, instalado a partir das violações de direitos produzidas com a deflagração da Operação Lava Jato e agigantado após as eleições de 2018, se perpetue.
Outrora, o véu do desconhecimento blindava o enfrentamento real da questão, mas e agora? As revelações trazidas pelo The Intercept não nos permitem mais a alegação de falta de conhecimento. Os fatos tornaram-se públicos. A verdade nos foi revelada e escancarada.
Não há alternativas como resposta. O reconhecimento da suspeição e consequente parcialidade do ex-juiz e dos procuradores que atuaram de forma criminosa na Lava Jato é a única medida possível para o resgate do nosso Estado de Direitos e da Democracia. E especialmente para recuperar a credibilidade da população em nosso sistema de justiça, após tantos anos combalido pela imagem de implacável, parcial e corrompível. Esse foi o triste legado da Lava-Jato para o país. Cabe ao Supremo Tribunal Federal reagir e devolver as instituições aos seus devidos eixos.
Como diz o ditado: a justiça tarda, mas não falha. Façamos então justiça à Lava-Jato.
[1] Advogada. Mestre e Doutoranda em Direito Constitucional pela PUC-SP. Professora de Direitos Humanos e de Direito Eleitoral na Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenadora da Extensão na Escola Paulista de Direito. Coordenadora do Núcleo da Memória dos Direitos Humanos da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. Membro do Observatório de Candidaturas Femininas e da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SP.
[2] Advogada criminalista. Pós-graduada em Direito Penal Econômico pela FGV, Especialista em Direitos Humanos, Raça e Gênero pela Faculdade de Direito da USP. Presidente da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/SP, Diretora do IDDD, Coordenadora-adjunta do Núcleo de Sistema Penitenciário do IBCCRIM.
[3] Dados obtidos a partir de divulgação do Fórum de Segurança Pública.
[4] Dados obtidos a partir de divulgação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.
[5] Fonte: https://www.conjur.com.br/2019-out-07/fosse-hoje-teria-duvidas-vetar-nomeacao-lula-gilmar. Acesso em 16/07/2020.
[6] Disponível em: legis.senado.leg.br
[7] STRECK, Lenio Luiz. Suspeição de Moro: o que fazer quando se sabe que se sabe?. Conjur. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-25/lenio-streck-suspeicao-moro. Acesso em: 16/07/2020