Participação feminina na política e a democracia paritária: desafios para o Brasil
Este artigo faz parte da 2ª Edição da obra coletiva da ABRAT “Feminismo, Pluralismo e Democracia”, pela Editora RTM e sob a coordenação das Diretoras Alessandra Camarano, Karlla Patrícia de Souza e Arlete Mesquita.
Gabriela Shizue Soares de Araujo[1]
1. Quatro séculos de subcidadania da mulher brasileira.
O dia 24 de fevereiro é celebrado no Brasil como o “Dia da Conquista do Voto Feminino”, conforme dispõe a Lei nº 13.086 de 2015, simbolicamente sancionada pela primeira e única – até o momento - mulher eleita presidente do país, Dilma Vana Rousseff.
Referida data comemorativa remete-se à promulgação, por Getúlio Vargas, do Decreto nº 21.076, no dia 24 de fevereiro de 1932 - o Código Eleitoral Provisório -, quando finalmente foi reconhecido às mulheres o direito ao voto, em âmbito nacional[2].
No entanto, na ocasião, a conquista não poderia ainda ser considerada completa, posto que o voto feminino que se instituiu foi o facultativo – ao contrário do voto masculino, que era então obrigatório –, além de ser restrito às mulheres casadas (desde que mediante autorização dos maridos), viúvas e solteiras com renda própria. Tais restrições absurdas só foram eliminadas no Código Eleitoral de 1934, e apenas em 1946 é que o voto das mulheres passou a ser obrigatório, data em que se pode considerar que, pelo menos formalmente, os direitos políticos de homens e mulheres foram equiparados.
De qualquer forma, o dia 24 de fevereiro de 1932 marca a primeira grande vitória das mulheres brasileiras em sua secular luta por cidadania, o que se deu com um atraso de no mínimo 41 (quarenta e um) anos em relação aos homens, se considerado apenas o direito ao sufrágio em nível nacional, mas de longos 400 anos, se considerado o simples direito de participar da vida pública do país.
Afinal, se é verdade que foi a primeira Constituição da República, em 1891, que nacionalizou o sufrágio masculino, por outro lado, muito antes disso, desde os tempos da colonização, os homens – ainda que com restrições de renda, instrução ou raça - já participavam ativamente da política regional, enquanto as mulheres eram relegadas à marginalidade nos assuntos públicos e à sujeição exclusiva ao trabalho reprodutivo e doméstico não remunerado.
Nesse sentido, importa lembrar que as primeiras eleições no Brasil ocorreram já em 1532, para eleger o Conselho Municipal de São Vicente, em São Paulo, a primeira vila fundada na colônia portuguesa. À época, apenas os homens brancos, livres e de posses é que puderam votar e ser votados, o que não foi muito diferente nas demais eleições que ocorreram ao longo dos séculos e nas diversas regiões do país, em âmbito municipal e local. 1891, portanto, para o gênero masculino, representou apenas a data da federalização de um direito que já lhe era exclusivo desde sempre.
Sendo assim, não é exagero afirmar que o dia 24 de fevereiro de 1932 foi a data em que as mulheres brasileiras romperam finalmente com 400 (quatrocentos) anos de subcidadania e marginalização política – ao menos sob o ponto de vista formal.
Entretanto, a conquista da igualdade formal em termos de direitos políticos não foi suficiente para garantir às mulheres, de fato, a participação política paritária e ativa na condução do país: o número de mulheres que hoje, em pleno século XXI, se colocam como candidatas no processo eleitoral e que ocupam cargos no Executivo e Legislativo ainda é muito tímido, abissalmente desproporcional ao número de brasileiras aptas a votar, que nas Eleições Gerais de 2018 já representavam 52,5%[3], maioria do eleitorado nacional.
Infelizmente, quando se analisa a secular cultura machista e patriarcal que ainda impera na sociedade brasileira, conclui-se que não será somente com a simples concessão jurídico-formal de iguais direitos para as mulheres que as correlações de forças que monopolizam o poder político e econômico do país serão equilibradas.
É claro que a extensão do sufrágio já teve um grande impacto benéfico à democracia, ao incluir mais da metade da população nacional no jogo eleitoral, ampliando drasticamente a pluralidade e diversidade de partícipes na escolha dos agentes políticos. Entretanto, para que as mulheres possam dar o próximo passo rumo à igualdade material, e ocupem o papel de representantes e não apenas de representadas nas esferas públicas de poder, leis específicas e políticas afirmativas, como as de cotas, parecem indispensáveis.
Embora em maioria demográfica, inclusive se considerarmos exclusivamente o espectro do eleitorado apto a votar, as mulheres brasileiras continuam representando uma minoria política em termos de participação ativa em cargos eletivos ou de liderança institucional e governamental, o que não é muito diferente na maioria dos países ocidentais, posto que a discriminação de gênero e a exclusão da voz feminina nos espaços de poder fazem parte de um triste histórico compartilhado em nível global.
Em pesquisa[4] divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) em março de 2018, o Brasil ocupava, no cenário internacional, a 152ª posição entre os 190 países que informaram à Inter-Parliamentary Union – IPU o percentual de cadeiras ocupado por mulheres em exercício em suas câmaras baixas (equivalente à Câmara dos Deputados) ou parlamento unicameral.
De acordo com a pesquisa acima mencionada, em dezembro de 2017, enquanto a média mundial alcançou o patamar baixíssimo de 23,6% de participação feminina no parlamento, por sua vez, no Brasil, o resultado foi ainda pior: 10,5%, em um percentual inferior a todos os demais países sul-americanos! Bolívia e Argentina, por exemplo, apresentaram os quantitativos de representação feminina de 53,1% e 38,1%, respectivamente.
Porém, se, por um lado, a participação feminina no parlamento brasileiro está abaixo tanto de países de alto desenvolvimento econômico e social, como Suécia (43,6%) e Finlândia (42%), como também abaixo de países de tradição cultural e religiosa mais conservadora com relação às mulheres, como Ruanda (61,3%), Senegal (41,8%), Timor Leste (32,3%) e Afeganistão (27,7%). Por outro lado, a despeito da posição do Brasil, há que se observar que a própria média mundial está bastante aquém de um almejado equilíbrio democrático dentro dos parâmetros dos direitos humanos no âmbito do direito internacional.
Basta notar que os Estados Unidos, país tido como uma das maiores potências econômicas do mundo contemporâneo, apresentou um resultado de apenas 19,4% de representação feminina no parlamento, o que demonstra que a simples concessão formal de igualdade de direitos, isoladamente, é insuficiente para corrigir as distorções e desvantagens sedimentadas em um processo milenar de dominação masculina e supressão da voz feminina da esfera pública de debate.
Faz-se premente, portanto, a priorização do combate à desigualdade de gênero nas normativas e tratados internacionais, com os devidos reflexos em legislações afirmativas nos Estados-partes, principalmente se considerarmos que a democracia, sob o aspecto evolutivo-histórico dos direitos humanos, inclui-se entre os direitos de quarta dimensão, e é concebida como o direito de todas as pessoas coexistirem de forma harmônica, em pleno gozo e exercício de suas liberdades civis e políticas, sob regras previamente consentidas e acordadas por uma pluralidade ampla de partícipes, respeitadas as diversidades, e em completo regime – formal e material - de igualdade.
Isso significa, em outras palavras, que a promoção efetiva da igualdade de gênero no acesso aos processos de tomada de decisão e nas esferas públicas institucionais de cada país configura um dos pressupostos fundamentais da própria subsistência da Democracia como meio de vida e como direito internacional positivo, do qual é titular o gênero humano[5], sem prejuízo da necessidade de se representar os demais pluralismos da sociedade, com os recortes de raça, etnia, religião, sexualidade, entre outros.
2. Igualdade de Gênero e Democracia Paritária
A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979, e ratificada por 189 Estados (2016), dentre eles o Brasil (1984), tem cumprido um papel importante na promoção da igualdade das mulheres na política, inclusive com a recomendação aos Estados-partes de adoção de medidas legais e judiciais afirmativas, como se extrai da leitura dos dispositivos abaixo transcritos:
“Artigo 3º - Os Estados-partes tomarão, em todas as esferas e, em particular, nas esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e o gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem.
(…)
Artigo 7º - Os Estados-partes tomarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na vida política e pública do país e, em particular, garantirão, em igualdade de condições com os homens, o direito a:
a) votar em todas as eleições e referendos públicos e ser elegível para todos os órgãos cujos membros sejam objeto de eleições públicas;
b) participar na formulação de políticas governamentais e na execução destas, e ocupar cargos públicos e exercer todas as funções públicas em todos os planos governamentais;
c) participar em organizações e associações não-governamentais que se ocupem da vida pública e política do país.”
(grifos nossos)
Desta forma, muito mais importante do que remover os empecilhos legais que por séculos excluíram as mulheres da vida pública, é necessário, antes de tudo, reconhecer que referidos empecilhos de fato existiram, o que contribuiu para posicionar o gênero feminino em abissal desvantagem social e cultural com relação ao gênero masculino.
É o que Nancy Fraser muito bem resume quando afirma que:
“O androcentrismo e sexismo predominantes exigem a mudança dos valores culturais (assim como de suas expressões legais e práticas) que privilegiam a masculinidade e negam respeito às mulheres. Exigem o descentramento das normas androcêntricas e a revalorização de um gênero desprezado. A lógica do remédio é semelhante à lógica relativa à sexualidade: conceder reconhecimento positivo a um grupo especificamente desvalorizado”[6].
Ainda segundo o pensamento de Fraser, como as normas culturais e sexistas estão institucionalizadas no Estado e na economia, as mulheres habitam um círculo vicioso de subordinação cultural e econômica: sua desvantagem econômica restringe sua participação igualitária na formação da cultura e nas esferas públicas, ao mesmo passo em que tais restrições político-culturais impedem o seu crescimento econômico. Eis porque, para corrigir as injustiças de gênero, é necessário que se recorra a dois tipos de remédios analiticamente distintos, porém entrelaçados: redistribuição e reconhecimento.
Daí decorre a necessidade de políticas e legislações específicas como forma de compensação da situação de desigualdade histórica e ao mesmo tempo complexa em que se encontra o gênero feminino.
Seja para conferir condições de igualdade com os homens no âmbito do mercado de trabalho e da economia, seja para conferir condições especiais que permitam a eliminação das desvantagens sociais e políticas em que se situam as mulheres, o que se deve buscar é a concretização do direito à igualdade em sua acepção material ampla, no sentido de se reconhecer as diferenças e respeitar as diversidades – inclusive identitárias – para se realizar um mínimo de justiça social.
Nessa linha, a Declaração de Direitos Humanos de Viena, em 1993, veio consolidar o reconhecimento das identidades das mulheres e das meninas como sujeitos de direito internacional, vistas dentro de suas especificidades e singularidades, como forma de garantir a sua luta – identitária - por igualdade[7]”.
Dois anos depois, na IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim, em setembro de 1995, deu-se um grande passo no sentido da universalização de políticas afirmativas reconhecedoras das injustiças históricas sofridas pelas mulheres em razão do gênero, assim como conferiu-se tratamento à situação da mulher sob a perspectiva de direitos, assumindo-se assim que a desigualdade entre homens e mulheres é uma questão de direitos humanos, e não apenas uma situação decorrente de problemas econômicos e sociais a serem superados.
A Conferência resultou em um conjunto de objetivos estratégicos e compromissos firmados pelos Estados-partes, aglutinados na Declaração e na Plataforma de Ação de Pequim[8], dentre os quais vale destacar o compromisso em adotar medidas para garantir às mulheres igualdade de acesso às estruturas de poder e ao processo de decisão, bem como sua participação em ambos:
“(...) Estamos convencidos de que: 13. O empoderamento da mulher e sua total participação, em base de igualdade, em todos os campos sociais, incluindo a participação no processo decisório e o acesso ao poder, são fundamentais para a realização da igualdade, do desenvolvimento e da paz; 14. Os direitos da mulher são direitos humanos; 15. A igualdade de direitos, de oportunidades e de acesso aos recursos, a divisão eqüitativa das responsabilidades familiares e a parceria harmoniosa entre mulheres e homens são fundamentais ao seu bem-estar e ao de suas famílias, bem como para a consolidação da democracia; 16. A erradicação da pobreza deve ser baseada em um crescimento econômico sustentável, no desenvolvimento social, na proteção ambiental e na justiça social, e requer a participação da mulher no processo de desenvolvimento econômico e social, oportunidades iguais e a plena participação, em condições de igualdade, de mulheres e homens, como agentes e beneficiários de um desenvolvimento sustentável orientado para o indivíduo; (...)”.
Dentre as diversas medidas com as quais se comprometeram os Estados-partes na ocasião, incluindo o Brasil, dá-se destaque para as seguintes:
“a) comprometer-se a estabelecer a meta de equilíbrio entre mulheres e homens nos organismos e comitês governamentais, assim como nas entidades da administração pública e no judiciário, incluídas, entre outras coisas, a fixação de objetivos específicos e medidas de implementação, a fim de aumentar substancialmente o número de mulheres e alcançar uma representação de paridade das mulheres e dos homens, se necessário mediante ação afirmativa em favor das mulheres, em todos os postos governamentais e da administração pública;
b) adotar medidas, inclusive, quando apropriado, nos sistemas eleitorais, para estimular os partidos políticos a incorporarem as mulheres a postos públicos eletivos e não eletivos, na mesma proporção e nas mesmas categorias que os homens;
(...)
d) examinar o impacto dos sistemas eleitorais sobre a representação política das mulheres nos organismos eletivos e considerar, quando procedente, a possibilidade de ajustar ou reformar esses sistemas;(...).”
Antes da realização da supramencionada IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, ainda em 1992, surgia o conceito de democracia paritária, por meio da Declaração Ministerial de Atenas[9], quando se ponderou que “a democracia requer paridade na representação e administração da nações, porque a sub-representação das mulheres nos níveis de decisão impede que sejam tidos em conta na sua totalidade os interesses e necessidades da população no seu conjunto".
Em 2007, na X Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, ministras e representantes dos Mecanismos de Defesa da Mulher de países latino-americanos e caribenhos subscreveram o que foi denominado como Consenso de Quito[10], reconhecendo “a paridade é uma condição determinante da democracia e uma meta para erradicar a exclusão estrutural das mulheres na sociedade”. Os postulados da paridade estabelecidos em Quito foram reiterados no XI Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, realizada em Brasília, em julho de 2010.
O chamado Consenso de Brasília[11], ratificando o Consenso de Quito e reafirmando seus objetivos de alcançar a igualdade no exercício do poder, na tomada de decisões, nos mecanismos de participação e de representação social e política, como realização do direito internacional à democracia, resultou em um acordo entre os países da região, incluindo o Brasil, no sentido de adotar diversas medidas para ampliar a participação das mulheres nos processos de tomada de decisões e nas esferas de poder, dentre as quais vale destacar a seguinte:
“3.d) Promover a criação de mecanismos e apoiar os que já existem para assegurar a participação político-partidária das mulheres que, além da paridade nos registros das candidaturas, assegurem a paridade nos resultados, garantam o acesso igualitário ao financiamento de campanhas e à propaganda eleitoral, assim como sua inserção nos espaços de decisão nas estruturas dos partidos políticos. Da mesma forma, criar mecanismos para sancionar o descumprimento das leis neste sentido” (grifos nossos)
Firmou-se, assim, como objetivo, a democracia paritária, com a finalidade de “alcançar mudanças reais que vão além do reconhecimento formal de direitos que, na prática, as mulheres não conseguem exercer em igualdade de condições com os homens[12]".
Portanto, a igualdade de gênero que se deve buscar na conjuntura sócio-política interna é justamente a igualdade material-fática com a qual o Estado brasileiro se comprometeu nos diversos tratados internacionais dos quais é signatário, e precisa ser construída tendo em vista as diferenças reais e o longo histórico de discriminação e exclusão da mulher brasileira das esferas públicas e de tomada de decisão no país. O que significa, necessariamente, a aplicação de políticas de cotas e afirmativas.
Como bem sintetiza Boaventura de Souza Santos “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades[13]”.
3. Políticas Afirmativas e Cotas de Gênero no Brasil
A Constituição Federal Brasileira de 1988, além de estipular o sufrágio universal e o voto direto e secreto com valor igual para todos (art. 14, caput, da CF), consagrou a igualdade formal de gêneros para participação política em diversos de seus dispositivos expressos, como quando trata do direito à dignidade (art. 1º, III, da CF), do princípio democrático (art. 1º, II, V e parágrafo único, da CF) e do próprio direito à igualdade (art. 5º, caput, da CF).
Entretanto, como já exposto anteriormente, a simples extensão do sufrágio ou a eliminação de limitações que por séculos excluíram as mulheres dos espaços de poder não são suficientes para reequilibrar as correlações de forças e realocar as mulheres em uma posição política de pertencimento e liderança.
Nessa esteira, desde o compromisso com a Plataforma de Ação de Pequim, em 1995, o Brasil começou a implementar, gradativamente, algumas políticas afirmativas para o fomento da participação feminina na política, com legislações específicas – apesar de muito tímidas perto das reais necessidades conjunturais.
A Lei nº 9.100, de 29 de setembro de 1995, foi a primeira a introduzir cotas eleitorais no Brasil, mas era restrita às eleições municipais que ocorreriam em 3 de outubro de 1996.
No entanto, ao mesmo tempo em que referida lei estabeleceu, em seu artigo 11, §3º, que 20% (vinte por cento), no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deveriam ser preenchidas por candidaturas de mulheres, no caput do mesmo artigo ficou disposto que cada partido ou coligação poderia registrar candidatos até 120% (cento e vinte por cento) do número de lugares a preencher. O percentual anterior era de 100%, ou seja, os homens não perderam espaço para as candidaturas femininas.
Em 30 de setembro de 1997, adveio a Lei nº 9.504/97, instituindo definitivamente as cotas de gênero em nível nacional, com reserva de um percentual mínimo de candidaturas para o Legislativo, como se observa no artigo 10, caput e §3º, in verbis:
“Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais, até cento e cinqüenta por cento do número de lugares a preencher
(...).
§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo”.
(Redação original)
Descartando a nomenclatura anterior de reserva de vagas específicas para candidaturas femininas, o legislador optou em estipular percentuais mínimos e máximos para candidaturas de cada sexo, o que não deixa de ser uma tentativa malfadada de negar a realidade brasileira: ora, é a mulher que sofre discriminação de gênero e é historicamente excluída dos espaços de poder, de modo que a posição inversa, de necessidade real de reserva de vagas mínimas para homens, está muito longe de acontecer.
Em suma, a Lei nº 9.504/97 definiu como política de cotas a reserva de vagas, ainda sem obrigar os partidos a preencherem efetivamente as vagas com candidatas mulheres, mas apenas obrigando-os a reservá-las às mulheres, em um percentual de 30% (trinta por cento). Bastava, portanto, apenas que as vagas que seriam destinadas às mulheres não fossem preenchidas por homens, sem prejuízo de também não serem preenchidas por mulheres, isto é, de ficarem vagas.
Em 2009, com a minirreforma eleitoral, tais discrepâncias foram corrigidas e os partidos e coligações foram obrigados efetivamente a preencher os 30% das vagas em eleições proporcionais com candidatos de um dos sexos, o que significa dizer, com candidatas mulheres. A opção de apenas reservar vagas ou deixar vagas vazias finalmente foi descartada e os partidos que não preenchessem o percentual mínimo de mulheres passaram a ter que retirar candidaturas masculinas, até conseguir compor o percentual legal.
É o que se observa pela nova redação dada ao §3º do artigo 10 da Lei nº 9.504/97, pela Lei nº 12.034/2009: “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.”
Ainda dentro da perspectiva de combate à desigualdade de gênero, a Lei nº 12.034, de 29 de setembro de 2009, conhecida como lei da minirreforma eleitoral, alterou dispositivos da Lei nº 9.096/95, a Lei dos Partidos Políticos, para implementar políticas afirmativas para as mulheres, tais como: (i) a obrigatoriedade dos partidos políticos aplicarem os recursos oriundos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres conforme percentual a ser fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total (art. 44, inciso V); e (ii) a obrigatoriedade da propaganda partidária gratuita promover e difundir a participação política feminina, dedicando às mulheres o tempo que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 10% (dez por cento) (art. 45, inciso IV – posteriormente revogado com a extinção da propaganda partidária, pela Lei nº 13.487, de 2017).
Tais dispositivos da Lei dos Partidos Políticos foram alterados novamente com a Reforma Eleitoral de 2015, expressa na Lei nº 13.165, de 29 de setembro de 2015, ainda com vistas a fomentar a participação feminina dentro das instâncias partidárias e na sociedade:
“Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados:
(...)
V - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e mantidos pela secretaria da mulher do respectivo partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata o inciso IV, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total;
(...)
§ 5º O partido político que não cumprir o disposto no inciso V do caput deverá transferir o saldo para conta específica, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deverá ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade.
(...)
§ 7º A critério da secretaria da mulher ou, inexistindo a secretaria, a critério da fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, os recursos a que se refere o inciso V do caput poderão ser acumulados em diferentes exercícios financeiros, mantidos em contas bancárias específicas, para utilização futura em campanhas eleitorais de candidatas do partido, não se aplicando, neste caso, o disposto no § 5º.
“Art. 45. A propaganda partidária gratuita, gravada ou ao vivo, efetuada mediante transmissão por rádio e televisão será realizada entre as dezenove horas e trinta minutos e as vinte e duas horas para, com exclusividade:
(...)
IV - promover e difundir a participação política feminina, dedicando às mulheres o tempo que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 10% (dez por cento) do programa e das inserções a que se refere o art. 49”.
A principal contribuição da Reforma Eleitoral, porém, veio expressa no artigo 9º da Lei nº 13.165, de 29 de setembro de 2015, in verbis:
“Art. 9º Nas três eleições que se seguirem à publicação desta Lei, os partidos reservarão, em contas bancárias específicas para este fim, no mínimo 5% (cinco por cento) e no máximo 15% (quinze por cento) do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para aplicação nas campanhas de suas candidatas, incluídos nesse valor os recursos a que se refere o inciso V do art. 44 da Lei no 9.096, de 19 de setembro de 1995”.
O dispositivo acima transcrito estabeleceu que, nas três eleições que se seguissem à publicação da Lei nº 13.165/2015 (ou seja, nas eleições de 2016, 2018 e 2020), os partidos deveriam reservar, em contas bancárias específicas para este fim, no mínimo 5% (cinco por cento) e no máximo 15% (quinze por cento) do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para aplicação nas campanhas de suas candidatas, incluídos nesse valor a parcela do Fundo Partidário relativa à criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, prevista na Lei nº 9.096/1995, art. 44, § 7º.
Entretanto, em 15 de março de 2018, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ADI 5617[14], de Relatoria do Ministro Edson Fachin, para: i) declarar a inconstitucionalidade da expressão "três", contida no art. 9º da Lei 13.165/2015, eliminando o limite temporal até então fixado; ii) dar interpretação conforme à Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015 de modo a (a) equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do Fundo alocado a cada partido, para as eleições majoritárias e proporcionais, e (b) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhe seja alocado na mesma proporção; iii) declarar a inconstitucionalidade, por arrastamento, do § 5º-A e do § 7º do art. 44 da Lei 9.096/1995.
Com isso, o Supremo Tribunal Federal eliminou o limite temporal restrito a três eleições e estipulou a proporcionalidade de investimento dos recursos do fundo partidário ao número de candidaturas femininas.
Guardando simetria com a decisão do Supremo Tribunal Federal, em 22 de maio de 2018, o Plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em resposta a uma consulta pública apresentada por 14 parlamentares (Consulta nº 0600252-18.2018.6.00.0000 Brasília/DF), decidiu[15] que os partidos políticos deverão reservar também pelo menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC)[16] para financiar candidaturas femininas, devendo ainda o mesmo percentual ser considerado em relação ao tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV. E mais: referida correspondência proporcional deverá ser respeitada também na hipótese de percentual de candidaturas femininas superior ao mínimo de 30%, com a devida correspondência entre o valor destinado às campanhas femininas, o tempo de propaganda eleitoral, e o número de candidatas.
Portanto, após as supra referidas decisões do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal, que ampliaram o alcance da tímida legislação afirmativa existente, as Eleições Gerais de 2018 foram as primeiras eleições no Brasil em que, além da obrigatoriedade de se preencher o mínimo de 30% das vagas com candidaturas femininas, os partidos políticos foram também obrigados a destinar às candidatas recursos mínimos na mesma proporção e o espaço correspondente em sua propaganda eleitoral.
Trata-se de um grande avanço, tendo em vista que a tradição patriarcal está ainda muito arraigada nos próprios partidos políticos, com baixa densidade de debate e participação feminina em suas instâncias internas.
Em verdade, apesar de as leis de cotas revelarem uma estratégia bem-sucedida para incrementar a presença das mulheres nos parlamentos, sua eficácia ainda depende da dinâmica dos partidos, que atuam como filtros nos processos eleitorais, como já havia sido apontado no estudo intitulado “El aporte de las mujeres a la igualdad en América Latina y el Caribe[17]”, na já citada X Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, ocorrida em Quito, em 2007, há mais de 10 anos, portanto:
“Durante os foros virtuais de que participaram as autoridades dos mecanismos nacionais de promoção do progresso da mulher, realizados no começo de 2007, em preparação para a Décima Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, as participantes foram coincidentes em apontar os partidos políticos como as forças mais reticentes ao ingresso das mulheres nos parlamentos. O acesso diferenciado aos recursos econômicos para as campanhas —ou seja, ao financiamento pelo empresariado— costuma beneficiar mais os homens cuja rede de capital social está mais desenvolvida, em virtude da natureza mais poderosa e da frequência dos elos masculinos no mundo público”. (tradução livre)
Antes das Eleições de 2018, apesar da obrigatoriedade legal dos partidos apresentarem pelo menos 30% de candidaturas de um dos sexos, era comum o preenchimento dessas vagas com candidatas “laranjas”, ou seja, mulheres que não eram candidatas de fato, que sequer faziam campanha ou movimentavam recursos, e que não raro eram remuneradas para representar esse papel.
Da mesma forma, era comum que as mulheres candidatas de fato, que tinham interesse real em ser representantes eleitas pelo povo para ocupar a esfera pública de poder, fossem boicotadas com a falta de recursos e de visibilidade, em partidos com direções predominantemente masculinas e machistas.
Assim, quando se fala em cotas de gênero para inclusão feminina na política, é preciso pensar além do registro de candidaturas, mas no período posterior a esse registro: nos recursos a que as mulheres terão acesso para se viabilizar como candidatas e participar do pleito eleitoral até o fim, seja sob o aspecto financeiro, seja sob o aspecto publicitário, o que passa pela necessidade de uma democratização dentro da própria organização interna do partido e do fomento à formação de uma massa crítica voltada para a perspectiva de gênero.
Sobre a obrigatoriedade de democratização paritária das instâncias partidárias, já se manifestou o Tribunal Superior Eleitoral:
“A autonomia partidária contida no § 1º do art. 17 da CF/88 não significa soberania para desrespeitar, direta ou indiretamente, valores e princípios constitucionais: é imperativo que agremiações observem a cota de gênero não somente em registro de candidaturas, mas também na propaganda e assegurando às mulheres todos os meios de suporte em âmbito intra ou extrapartidário, sob pena de se manter histórico e indesejável privilégio patriarcal e, assim, reforçar a nefasta segregação predominante na vida político-partidária brasileira.” (Representação nº 32255, Acórdão, Relator(a) Min. Antonio Herman De Vasconcellos E Benjamin, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 53, Data 17/03/2017, Página 135-136).
No mais, é tão real a afirmativa de que a adoção isolada do sistema de cotas para o registro de candidaturas não é suficiente para combater eficazmente a desigualdade de gênero na política, que, mais de vinte anos após a implementação da primeira legislação de cotas no país, ainda assim, não conseguimos chegar nem perto da média mundial de participação feminina na política.
Já citamos anteriormente, no presente artigo, uma pesquisa publicada pelo IBGE em 2018, tendo como referência o número de deputadas mulheres que compõem a Câmara dos Deputados.
Uma outra pesquisa[18], publicada no ano anterior, em março de 2017, pela ONU Mulheres, em parceria com União Interparlamentar (UIP), traz um panorama um pouco mais detalhado sobre a participação política das mulheres no mundo e serve aqui também como parâmetro.
De acordo com essa pesquisa, em 2017, com apenas uma ministra, o Brasil ficou na 167ª posição no ranking mundial de participação de mulheres no Executivo, entre os 174 (cento e setenta e quatro) países analisados.
Em relação ao ranking da participação no Congresso, o país ficou na 154ª posição, com 55 (cinquenta e cinco) das 513 (quinhentas e treze) cadeiras da Câmara dos Deputados ocupadas por mulheres, e 12 (doze) dos 81 (oitenta e um) assentos do Senado preenchidos por representantes femininas.
Considerados tais dados, o resultado[19] das Eleições Gerais de 2018 acena para uma tímida melhora na democracia brasileira, sob o aspecto da diminuição da desigualdade de gênero, muito provavelmente como um reflexo já imediato dos repasses obrigatórios de recursos para as campanhas femininas e das cotas de gênero que garantiram também acesso mínimo à propaganda eleitoral gratuita.
Foram eleitas 77 (setenta e sete) deputadas federais, um aumento de 51% em relação às 51 (cinquenta e uma) deputadas eleitas em 2014. Isso quer dizer que a Câmara vai ter 15% de mulheres em sua nova composição, contra 10% na composição anterior. No entanto, Maranhão, Sergipe e Amazonas não elegeram nenhuma mulher deputada federal.
No Senado, que neste ano é renovado em dois terços de seus assentos, foram eleitas 7 (sete) mulheres, que, somadas à bancada atual, passam a representar 12 (doze) de um total de 81 (oitenta e uma) cadeiras - um número que se mantém estável comparado à configuração anterior. Ou seja, nada mudou.
Nas Assembleias Legislativas dos Estados, foram eleitas 161 (cento e sessenta e uma) deputadas, representando 15% dos deputados estaduais eleitos, o que significa um aumento de 35% em relação a 2014.
Porém, no Mato Grosso do Sul, dos 24 (vinte e quatro) deputados estaduais eleitos, nenhum é mulher. Em Goiás, com 41 (quarenta e um) deputados estaduais eleitos, apenas duas foram mulheres. Rondônia e Paraná também não conseguiram alcançar sequer 10% de deputadas estaduais eleitas.
Apesar de algumas discrepâncias nos Estados, contudo, o balanço geral é de um aumento em 5% no percentual de participação feminina no parlamento, o que pode significar que a política de cotas de gênero passaram a ter real aplicabilidade apenas nas Eleições de 2018, quando somadas a outras políticas que não apenas a reserva de vagas.
Existem outras medidas que poderiam acelerar consideravelmente o processo de democratização paritária no sistema político-partidário brasileiro, como, por exemplo, aliado às cotas para candidatura de mulheres, como já ocorre atualmente, que se introduzisse também uma reserva de vagas a serem preenchidas exclusivamente por mulheres no próprio parlamento.
Ou, ainda, que se avançasse mais no objetivo de democracia paritária já acordado nos documentos internacionais com os quais o Brasil se comprometeu, no sentido de pelo menos reservar 50% das candidaturas às mulheres.
Afinal, considerando a população mundial e brasileira que já é maioria feminina, não é possível que um Estado se considere verdadeiramente democrático nem com 30%, muito menos com 15% de representação política feminina, como é o caso do Brasil.
4. Considerações Finais
A dificuldade de participação da mulher na política, mesmo representando a maioria da população, obviamente decorre de uma carga histórica de discriminação e exclusão que se reflete em todos os outros setores, principalmente se considerarmos o contexto do Brasil, um país de origem colonial, escravocrata e fundamentalmente religioso, que ainda sofre com tradições oligárquicas incutidas nos principais meios de produção, na mídia e nas mais diversas esferas de poder.
Por outro lado, inegável que, com as mulheres conquistando cada vez mais direitos, quebrando tabus e buscando disputar igualitariamente o mercado de trabalho, os homens, gênero até então dominante, ainda têm uma forte resistência em sua aceitação, muito permeada pelo medo e um tanto pela ignorância, mas eminentemente pelo conforto da posição conquistada.
Não é para menos. Afinal, quando de fato incluída no mercado de trabalho, a mulher se torna um elemento verdadeiramente competitivo e indispensável. Tanto é assim, que os lares brasileiros estão gradativamente passando a ser chefiados por mulheres: em 1995, 23% dos domicílios tinham mulheres como pessoas de referência; vinte anos depois, esse número chegou a 40%[20].
Entretanto, as mulheres ainda ganham em média menos do que os homens, mesmo tendo mais tempo de estudo e qualificação. Segundo informações extraídas do estudo de Estatísticas de Gênero, divulgado em março de 2018 pelo IBGE[21], as mulheres trabalham, em média, três horas por semana a mais do que os homens, combinando trabalhos remunerados, afazeres domésticos e cuidados de pessoas, e, mesmo assim, e ainda contando com um nível educacional mais alto, elas ganham, em média, 76,5% do rendimento dos homens.
A insistência nessa cultura oligárquica e preconceituosa, porém, além de ser um óbice ao desenvolvimento democrático e um ataque aos direitos humanos, gera também um prejuízo de ordem econômica para o qual talvez poucos tenham se atentado.
É fato inconteste que a participação das mulheres no mercado de trabalho representa uma força por trás do crescimento global e da competitividade. No caso do Brasil, sabe-se que a diminuição em 25% das diferenças de gênero no mercado de trabalho poderia aumentar o PIB em 382 bilhões de reais, e acrescentar 131 bilhões de reais às receitas tributárias, conforme o estudo Perspectivas Sociais e de Emprego no Mundo – Tendências para Mulheres 2017[22], da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O combate a todas as formas de desigualdade, inclusive a desigualdade de gênero, portanto, não se trata de uma agenda de caráter exclusivamente humanitário, mas deve ser priorizado também por sua relevante vantagem econômica e como fator diferencial para o desenvolvimento nacional.
Não é por menos que a diminuição da desigualdade na taxa de presença das mulheres no mundo do trabalho se tornou um compromisso assumido pelos países que compõem o G20, em cumprimento inclusive dos mais recentes acordos internacionais comprometidos com o direito ao desenvolvimento.
Se o Brasil quiser evoluir economicamente e se tornar verdadeiramente competitivo nas relações exteriores, vai precisar acompanhar o mundo nessa visão das relações sociais, investindo em políticas afirmativas para combater as desigualdades e repudiando de forma contundente qualquer forma de discriminação.
A Constituição Federal brasileira de 1988 contém um arcabouço principiológico bastante consistente no combate à discriminação de gênero, como se pode extrair de seu artigo 5º, inciso I, que assegura a igualdade entre homens e mulheres, e de seu artigo 7º, inciso XXX, que proíbe a discriminação no mercado de trabalho em função do sexo. O que falta é dar concretude, fortalecer os princípios que já estão em nossa Constituição, com a produção de leis afirmativas eficazes na redução das desigualdades entre os gêneros.
Em verdade, cabe ao Estado, cabe ao Poder Judiciário, cabe ao aplicador da lei, cabe muito ao Poder Legislativo, mas cabe principalmente ao povo brasileiro cumprir esse papel. Com o poder do voto, que hoje pertence majoritariamente às próprias mulheres, é possível aumentar a representação feminina no Parlamento e nos cargos executivos, e com isso garantir a diversidade e a democracia na produção de leis e na condução deste país, incluindo aí a redução das desigualdades em todas as esferas sociais.
As cotas de gênero para participação feminina na política e quaisquer políticas afirmativas que caminhem nesse sentido do reconhecimento e redistribuição constituem apenas um passo importante para se chegar ao objetivo final, que é a democratização paritária e, principalmente, a dissipação dos preconceitos relacionados ao gênero, não apenas nas esferas públicas de poder, mas também nas relações familiares, sociais, econômicas, religiosas e culturais.
O fim último é o aprofundamento da democracia paritária, mas dentro de uma concepção de igualdade real, o que só poderá ser conquistado com o desenvolvimento de políticas públicas que cada vez mais contemplem e priorizem as especialidades dentro do próprio segmento do gênero feminino, daí entendendo-se que mesmo as mulheres podem ter privilégios históricos e divisões entre si que não podem ser ignorados. Ademais dos recortes regionais e econômicos, há que se considerar a priorização na proteção das mulheres negras, das mulheres indígenas, das mulheres refugiadas, das mulheres com deficiência, das mulheres homossexuais e das mulheres transexuais.
Uma abordagem interseccional, que contemple gênero, sexo e raça, não deve passar despercebida, na medida em que, reconhecendo-se tanto as diferenças entre as mulheres como as diferenças entre mulheres e homens, seja possível estudar e aplicar meios eficazes de eliminação das desigualdades, respeitada a diversidade e as identidades, abrindo-se assim a esfera pública de debate a toda uma pluralidade de pensamentos e modos de vida que habitam o mundo contemporâneo, sempre com o objetivo de promover a inclusão e a democracia.
[1] Advogada, professora de Direito Constitucional e Eleitoral na Escola Paulista de Direito, mestre e Doutoranda em Direito Constitucional na PUC-SP e coordenadora da Extensão na Escola Paulista de Direito.
[2] Antes disso, em 25 de novembro de 1927, em Mossoró/RN, a professora Celina Guimarães Viana conseguiu o reconhecimento de seu direito ao voto por meio da Lei Estadual 660/1917. Um ano depois de Celina conseguir o título de primeira eleitora do Brasil, em 1928, foi a vez de Luíza Alzira Soriano Teixeira ser a primeira prefeita eleita no Brasil e na América Latina, na cidade de Lajes/RN.
[3] Segundo informações oficiais publicadas no sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral. http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Agosto/brasil-tem-147-3-milhoes-de-eleitores-aptos-a-votar-nas-eleicoes-2018 Acesso em 17/02/2019.
[4]Referida pesquisa intitulada “Gênero - Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil”, seguiu todos os standards internacionais do Conjunto Mínimo de Indicadores de Gênero - CMIG (Minimum Set of Gender Indicators - MSGI) estipulado pela Comissão de Estatística das Nações Unidas (United Nations Statistical Commission), somando-se aos esforços de sistematização de informações destinadas à produção nacional e à harmonização internacional de estatísticas de países e regiões relativamente à igualdade de gênero e ao empoderamento feminino. Disponível no sítio eletrônico do IBGE, no seguinte endereço: https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/multidominio/genero/20163-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html?=&t=o-que-e Acesso em 17/02/2019.
[5] Sobre a concepção da democracia dentro do conceito de direitos humanos internacionalizados, emprestamos as palavras de Paulo Bonavides: “O conceito de democracia, enquanto direito de uma nova categoria, emerge da grande revolução democrática da cidadania, levada a cabo com a universalização dos direitos humanos, mediante o reconhecimento de que estes já não são unicamente direitos fundamentais, apenas por lograrem inserção normativa no corpo da Constituição de um Estado, mas também por se lhes reconhecer, ao mesmo passo, uma ascensão gradativa de positividade e postulação direta, numa ordem jurídica superior, que é o direito internacional”. (BONAVIDES, Paulo. Teoria geral do Estado. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 378)
[6] FRASER, Nancy. 2001. “From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a ‘postsocialist’ age”. In: S. Seidman; J. Alexander. (orgs.). 2001. The new social theory reader. Trad. De Julio Assis Simões. Londres: Routledge, pp. 285-293.
[7] É o que se verifica no §18 da referida Declaração de Viena, parcialmente transcrito a seguir: “18. Os Direitos Humanos das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos Direitos Humanos universais. A participação plena das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural, aos níveis nacional, regional e internacional, bem como a erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo, constituem objetivos prioritários da comunidade internacional; Disponível no sítio eletrônico da ONU Mulheres: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_viena.pdf Acesso em 15/02/2019.
[8] Disponível no sítio eletrônico da ONU Mulheres: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2014/02/declaracao_pequim.pdf . Acesso em 15/02/2019.
[9] A Declaração de Atenas é o documento produzido pela primeira cúpula europeia “Mulheres no Poder”, com a participação de ministras e ex-ministras da Europa, realizada em novembro de 1992.
[10] Disponível no sítio eletrônico do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero: http://www.observatoriodegenero.gov.br/eixo/internacional/compromissos-internacionais/compromisso-internacionais/?searchterm=quito . Acesso em 18/02/2019.
[11] Disponível no sítio eletrônico do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero: http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/noticias/spm-divulga-boletim-da-xi-conferencia/?searchterm=consenso . Acesso em 18/02/2019.
[12] CABANILLAS, Beatriz Llanos. A modo de introducción: caminos recorridos por la paridad en el mundo. In: La apuesta por la paridad: democratizando el sistema político en América Latina. Los casos de Ecuador, Bolivia y Costa Rica. Perú: IDEA Internacional/ CIM Comisión Interamericana de Mujeres, 2013. p. 17-46.
[13] SANTOS, Boaventura de Sousa & NUNES, João Arriscado. (2003), "Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade". In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.), Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, pp. 25-68.
[14] Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. ART. 9º DA LEI 13.165/2015. FIXAÇÃO DE PISO (5%) E DE TETO (15%) DO MONTANTE DO FUNDO PARTIDÁRIO DESTINADO AO FINANCIMENTO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS PARA A APLICAÇÃO NAS CAMPANHAS DE CANDIDATAS. PRELIMINAR DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. REJEIÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA À IGUALDADE E À NÃO-DISCRIMINAÇÃO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao examinar as alegações de inconstitucionalidade de norma, deve fixar a interpretação que constitucionalmente a densifique, a fim de fazer incidir o conteúdo normativo cuja efetividade independe de ato do Poder Legislativo. Precedentes. 2. O princípio da igualdade material é prestigiados por ações afirmativas. No entanto, utilizar, para qualquer outro fim, a diferença estabelecida com o objetivo de superar a discriminação ofende o mesmo princípio da igualdade, que veda tratamento discriminatório fundado em circunstâncias que estão fora do controle das pessoas, como a raça, o sexo, a cor da pele ou qualquer outra diferenciação arbitrariamente considerada. Precedente do CEDAW. 3. A autonomia partidária não consagra regra que exima o partido do respeito incondicional aos direitos fundamentais, pois é precisamente na artificiosa segmentação entre o público e o privado que reside a principal forma de discriminação das mulheres. 4. Ação direta julgada procedente para: (i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “três ” contida no art. 9º da Lei 13.165/2015; (ii) dar interpretação conforme à Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015 de modo a (a) equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do fundo alocado a cada partido, para eleições majoritárias e proporcionais, e (b) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhes seja alocado na mesma proporção; (iii) declarar a inconstitucionalidade, por arrastamento, do § 5º-A e do § 7º do art. 44 da Lei 9.096/95. (ADI 5617, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-211 DIVULG 02-10-2018 PUBLIC 03-10-2018). Disponível no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748354101 Acesso em 15/02/2019.
[15] Voto da Relatora, ministra Rosa Weber, disponível no seguinte endereço eletrônico, da Revista Consultor Jurídico: https://www.conjur.com.br/dl/voto-rosa-weber-consulta-publica.pdf Acesso em 15/02/2019.
[16] Introduzido pela Reforma Política que ocorreu em 2017, por meio da Lei nº 13.488, de 06 de outubro de 2017, o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) surgiu para compensar a proibição de doações de pessoas jurídicas, instituindo assim uma espécie de financiamento público das campanhas, custeado em parte por emendas das bancadas ao Orçamento e em parte pela economia gerada com o fim da propaganda partidária obrigatória fora do período eleitoral.
[17]Disponível no sítio eletrônico da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL): https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/2855/1/S3282007_es.pdf Acesso em 18/02/2019.
[18] Disponível no sítio eletrônico da ONU : https://news.un.org/en/story/2017/03/553332-un-reports-slow-womens-political-parity-launches-latest-women-politics-map#.WMrtAm8rKiO Acesso em 18/02/2019
[19] Informações disponíveis no sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral: http://www.tse.jus.br/
[20] Dados destacados no estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça com base em séries históricas de 1995 a 2015 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, disponível no sítio eletrônico do IPEA: http://www.ipea.gov.br/retrato/ Acesso em 18/02/2019.
[21] Referida pesquisa intitulada “Gênero - Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil”, seguiu todos os standards internacionais do Conjunto Mínimo de Indicadores de Gênero - CMIG (Minimum Set of Gender Indicators - MSGI) estipulado pela Comissão de Estatística das Nações Unidas (United Nations Statistical Commission), somando-se aos esforços de sistematização de informações destinadas à produção nacional e à harmonização internacional de estatísticas de países e regiões relativamente à igualdade de gênero e ao empoderamento feminino. Disponível no sítio eletrônico do IBGE, no seguinte endereço: https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/multidominio/genero/20163-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html?=&t=o-que-e Acesso em 17/02/2019.
[22] Disponível no sítio eletrônico da Organização Internacional do Trabalho: https://www.ilo.org/global/research/global-reports/weso/trends-for-women2017/WCMS_557245/lang--pt/index.htm