Proposta de um sistema parlamentarista no Brasil: a cara do nosso déficit democrático

Proposta de um sistema parlamentarista no Brasil: a cara do nosso déficit democrático

A problemática do déficit democrático – em outras palavras, o enorme distanciamento entre o povo e seus representantes eleitos - tem sido um tema muito recorrente em meus artigos, pois trata-se de uma patologia do sistema de representação já anunciada desde o século XX, quando se sobrepuseram as teorias democráticas “elitistas” [1] de Schumpeter e Downs, em desfavor de uma construção mais deliberativa habermasiana ou minimamente participativa, como tantos outros cientistas políticos defendiam, inclusive Hannah Arendt.

O modelo democrático que herdamos construiu-se predominantemente sob a premissa schumpteriana de que a “irracionalidade das massas” deveria ser controlada através da limitação da participação popular apenas ao voto e à delegação de poderes a representantes provenientes das elites, estes sim dotados de racionalidade política, já que o cidadão comum não teria capacidade nem interesse político para participar diretamente das tomadas de decisão.

Não se pode dizer ao certo se Downs[2] influenciou a realidade política atual ou se foi apenas uma previsão acertada, quando posicionou a teoria democrática sob uma lógica adversarial, em que os interesses dos indivíduos e dos grupos estariam em permanente conflito,  mais ou menos numa dicotomia amigo-inimigo schmittiana.

Sob esse raciocínio, os cidadãos não votariam pensando no bem comum e na coletividade, mas sim em seus interesses individuais, da mesma forma que, para se manter no poder, os partidos e governos maximizariam os benefícios oferecidos aos cidadãos, sendo irrelevante, nesse sentido, o ideal do bem comum e da vontade geral de um determinado povo – o que inverte completamente a lógica democrática original.

Como se pode perceber, a influência dessa teoria do século passado é bastante visível no sistema democrático brasileiro e explica, em parte, a crise institucional que atravessamos.

Esse modelo pode ter sido adequado (ou aceitável) no período pós-guerras, em que a simples consolidação global das democracias como forma de governo já configurou um grande avanço, considerando-se especialmente o trauma causado por regimes totalitários e genocidas como o nazista, mas não é suficiente para a sociedade tecnológica, globalizada e interativa do século XXI.

A excessiva burocratização dos órgãos estatais, a falta de transparência (accountability) dos processos que envolvem as tomadas de decisão mais relevantes para a sociedade, o descompromisso de partidos e agentes políticos com os programas e as propostas apresentadas, a ausência de mecanismos que possibilitem o controle social dos atos governamentais ou parlamentares (plebiscito, referendo, veto popular, recall etc), todos esses são reflexos de uma patologia da democracia contemporânea que, aliás, não é exclusividade brasileira.

A crise institucional e o déficit democrático estão no foco da eclosão de manifestações populares por todo o mundo, desde a Primavera Árabe (2010), até o “Occupy Wall Street” (2011), o 15M, na Espanha (2011) e as jornadas de junho no Brasil (2013).

Ironicamente, a mesma “irracionalidade das massas” que levou os adeptos do “elitismo democrático” a reduzirem a participação popular apenas às eleições, hoje se concretiza de forma desorganizada e descontrolada no mundo virtual: o advento das mídias sociais e da internet derrubaram fronteiras e devolveram ao povo uma “esfera pública” de debate que lhe vinha sendo negada pelas instituições formais.

O problema é que, como esse debate é fragmentado e descentralizado, favorece-se a criação de nichos identitários, a proliferação de desinformação (fake news, boatos) e a manipulação político-partidária de pautas populares, além da exacerbação do “prazer de condenar”, manifesto nos cada vez mais frequentes “linchamentos digitais”.

Sobre essa nova dinâmica dos linchamentos digitais, empresto-me das palavras de Francisco Bosco, que analisa muito bem esse fenômeno em sua mais recente obra, “A vítima tem sempre razão?: lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro”:

“Unidas todas por um ideal qualquer, as pessoas agem como um enxame de abelhas atacando moralmente um indivíduo identificado como tendo cometido um crime contra esse ideal. Crime, aliás, nem sempre real (melhor dizendo: a própria noção do que é real está em jogo), e quase sempre desproporcional à sua punição”[3]

A formação de nichos ideologicamente identificados já é automaticamente potencializada por programas e softwares autômatos dos provedores das redes sociais e acaba facilitando o discurso schmittiniano da homogeneização e da democracia identitária, que tanto embasou o regime nazista de Hitler e hoje reaparece em outras roupagens, tendo como ponto em comum a eleição de um inimigo que deve ser afastado ou eliminado.

Quando se desvirtuou o sentido original da democracia – governo do povo para o povo -, burocratizando-se e terceirizando-se demasiadamente o exercício do poder, e negando-se a viabilização de espaços para participação popular e debate público organizados, deu-se vazão justamente àquilo que mais se temia: a exacerbação dos conflitos no lugar do consenso.

Em meados do século passado, Hannah Arendt[4] já defendia que de nada adiantava conquistar liberdades individuais, sem que se consolidasse uma esfera pública para o debate (liberdades públicas), alertando que “onde não existe oportunidade de formar opiniões podem existir estados de ânimo – ânimo das massas, ânimo dos indivíduos, este tão volúvel e inconfiável quanto aquele - , mas não opinião”. E daí para a implosão do regime democrático – pela falta de confiança nas instituições, é um pulo.

Se os Estados não puxarem para si a institucionalização do debate público, o que já é previsto, mas não aplicado, na maioria das Constituições ocidentais, as vozes do povo continuarão cada vez mais sendo canalizadas para a anárquica “esfera pública digital”.

Desde Habermas até Boaventura de Sousa Santos e Thomas Piketty, os mais respeitados pensadores contemporâneos defendem a intensificação da participação popular e a criação de novos e mais eficazes instrumentos de interação entre o povo e seus representantes eleitos como única forma possível de sair dessa crise da democracia representativa. Não se defende a extinção do sistema de representação, pelo contrário, defende-se a sua potencialização pela abertura ao debate e às intervenções diretas, em alguns casos – seja através de consultas populares, seja através do controle parlamentar (recall), seja através do incentivo à formação de assembleias e associações populares, entre outros.

No caso do Brasil, apesar de nossa Constituição de 1988 ter adotado expressamente o modelo de democracia semi-direta[5], não existe uma tradição de acionamento dos mecanismos de participação direta nela previstos.

Por exemplo, em âmbito nacional, o plebiscito foi convocado uma única vez, em 1993, para consultar a população sobre qual a forma e o sistema de governo que deveriam ser adotados no país (como todos sabem, venceu a república presidencialista). Do mesmo modo, só tivemos um referendo convocado em nível nacional, em 2005, sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições no país (a população optou pela não proibição).

Ainda assim, com a crise de representatividade enfrentada pelo parlamento e pela crescente (e perigosa) aversão à política institucional desenvolvida pelo povo brasileiro, ainda há parlamentares que defendem a alteração do nosso sistema de governo para o parlamentarismo.

Existem, inclusive, algumas propostas de emenda constitucional tramitando nesse sentido  (PEC 32/2015, PEC 102/2015PEC 245/2016, PEC 9/2016, mas que parecem estar pendentes apenas em razão da iminência do julgamento pelo STF de um Mandado de Segurança (MS 22.972 – Relatoria Alexandre de Moraes), proposto há mais de 20 anos, que discute justamente a tese da inconstitucionalidade de deliberação pelo Congresso Nacional de PEC orientada a alterar o sistema de governo.

Nem seria necessário aqui adentrar na análise da completa inconstitucionalidade de tais propostas, evidentemente violadoras de cláusula pétrea, já que o que se destaca é o escandaloso descaso dos representantes eleitos perante o povo soberano (se é que ainda pode assim ser chamado): pretendem dele subtrair a única tomada de decisão direta da qual participou nessas quase três décadas de vigência da Constituição Federal.

É daí que se explica tamanho empoderamento do Poder Judiciário e dos agentes públicos do sistema de justiça – cada vez mais identificados como instrumentos de um Estado de Exceção vindouro – e de poderes externos à configuração constitucional originária, como a mídia e as redes sociais.

Se o povo não consegue se identificar com aqueles representantes que em tese deveriam agir em seu interesse, se não há espaço para participação popular e, nas raras ocasiões em que esse espaço é aberto, suas opiniões são desrespeitadas, pode-se até por um curto período manter-se uma “ditadura da representação”, mas ela não se sustentará por muito tempo. E o que vem depois dela, como extraímos dos exemplos da História, é o terror.

 

 

[1] Os principais elementos dessa teoria do “elitismo democrático”, como bem resume Leonardo Avritzer, são: (i) o realismo, (ii) a proposição das elites enquanto portadoras da racionalidade, (iii) a identificação da racionalidade com a maximização dos benefícios públicos e (iv) a defesa da desejabilidade de um baixo grau de participação política. (AVRITZER, Leonardo. “A Moralidade da Democracia: ensaios em teoria habermasiana e em teoria democrática”. Perspectiva: São Paulo, 2017. p. 112.)

[2] DOWNS, Anthony (1957). “An economic theory of democracy”. New York: Harper & Brothers.

[3] BOSCO, Francisco. “A vítima tem sempre razão?: lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro”. São Paulo: Todavia, 2017. p. 15

[4] ARENDT, Hannah. “Sobre a Revolução”. 1ª Ed. São Paulo: Cia das Letras, 2011. p. 336.

[5] Constituição Federal: “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular (...)”.

 

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