Por uma democracia paritária e sólida
Artigo publicado originalmente no Estadão em 13 de fevereiro de 2023
Por Gabriela Shizue Soares de Araujo e Marina de Mello Gama *
Talvez poucas pessoas se lembrem, mas a primeira mulher ministra de Estado no Brasil foi a jurista Esther de Figueiredo Ferraz, surpreendentemente ainda nos tempos de ditadura militar, no governo de João Baptista Figueiredo, tendo sido a titular da pasta de Educação e Cultura de 1982 a 1985. O presidente José Sarney (1985-1990), primeiro civil ainda eleito de forma indireta, mas seguindo o seu antecessor, nomeou também uma única mulher ministra.
Depois disso, mesmo com a redemocratização e sob a égide da Constituição de 1988, as mulheres continuaram sendo minoria na formulação de políticas públicas do país: ao todo, desde a fundação da República, até 2022, quando findou o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, foram apenas 32 mulheres que passaram pelos ministérios de Estado, sendo imperioso lembrar que Dilma Rousseff foi a única mulher eleita presidente do Brasil (2011-2016) e que todos os vice-presidentes brasileiros foram homens.
Fernando Collor de Melo (1990-1992), o primeiro presidente eleito direta e democraticamente após vinte e um anos de ditadura militar, nomeou só duas mulheres como suas ministras, enquanto Itamar Franco (1992-1994) teve três mulheres por ele empossadas. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), por sua vez, escolheu duas ministras, distribuídas uma para cada um dos seus mandatos.
Foram os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff os que contemplaram o maior número de mulheres em ministérios. Tanto em seu primeiro (2003-2006) como em seu segundo (2007-2010) mandato, Lula nomeou mulheres para cinco ministérios diferentes, sendo que no primeiro mandato foram seis nomeadas, já que houve revezamento no Ministério das Mulheres. Já Dilma Rousseff (2011-2016) nomeou treze mulheres como ministras em seus quase seis anos de governo, tendo quatro delas alternado entre dois ministérios.
O que parecia ser um sinal de que a pluralidade e diversidade de ideias e identidades passaria a evoluir gradativamente na formação dos primeiros escalões do Poder Executivo, entretanto, logo sofreu um revés extremo, o que acabou repercutindo nas demais instituições políticas e sociais com o acirramento de episódios de violência política de gênero e discriminação.
O retrocesso foi tão abrupto, que após Dilma Rousseff ter sofrido um impeachment em uma conjuntura de machismo e até mesmo misoginia que se formou no parlamento e na opinião pública, Michel Temer (2016-2018), o vice-presidente que sucedeu a primeira mulher presidente do Brasil, entrou para a história como o único presidente (ainda que interino) do período pós ditadura militar que não escolheu nenhuma mulher para ser sua ministra, tendo formado um ministério hegemonicamente masculino e branco. Jair Bolsonaro (2018-2022), por sua vez, teve quatro mulheres ministras ao longo do seu mandato, sendo duas para o mesmo ministério, em períodos diferentes. Porém, a fusão do Ministério das Mulheres com o Ministério dos Direitos Humanos, por meio da criação do "Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos", acabou por enfraquecer as pautas e políticas públicas destinadas à busca da igualdade e especialmente à proteção das mulheres e meninas contra a violência e discriminação de gênero.
Os direitos humanos das mulheres, das pessoas LGBTI+, dos indígenas, quilombolas, enfim, dos extratos sociais que não se enquadravam no padrão "homens brancos cis heteronormativos" foram os mais atingidos por esse nebuloso período de ataques, disseminação de notícias falsas, retrocessos e perdas, que foi marcado desde o impeachment de Dilma Rousseff até o fim do mandato de Jair Bolsonaro.
A eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para seu terceiro mandato e a forma como seu ministério foi composto parece trazer um sopro de esperança para um Brasil mais inclusivo, democrático e aberto à verdadeira participação social: logo de partida já foram nomeadas onze mulheres ministras, o que representa quase 30% dos trinta e sete Ministérios de Estado criados, merecendo destaque a diversidade e outros avanços simbólicos que se espera que repercutam como um espelho nos demais cargos a serem preenchidos não apenas pelo governo, mas nas demais instituições e poderes constituídos.
Quatro mulheres negras (entre pretas e pardas) foram nomeadas: Anielle Franco (Ministra da Igualdade Racial), Marina Silva (Ministra do Meio Ambiente), Margareth Menezes (Ministra da Cultura) e Luciana Santos (Ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação). A criação do Ministério dos Povos Indígenas trouxe também a nomeação da primeira mulher indígena como ministra, Sônia Guajajara.
Cida Gonçalves assumiu o Ministério das Mulheres, Daniela de Souza Carneiro comandará o Ministério do Turismo, Esther Dweck é a nova ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, e Simone Tebet ficou com o Ministério do Planejamento e Orçamento. Além disso, pela primeira vez, mulheres assumirão os Ministérios da Saúde (Nísia Trindade), do Esporte (Ana Moser) e de Ciência, Tecnologia e Inovação.
Entretanto, há que se pensar em políticas públicas mais perenes, para que a ocupação feminina dos espaços decisórios e de gestão não dependam exclusivamente da vontade política individual de quem eventualmente estiver no poder.Afinal, persiste no país uma cultura muito incrustada nas relações sociais e nas instituições de desmerecimento do papel feminino em razão de padrões comportamentais que o patriarcado impingiu às mulheres, o que muitas vezes repercute em violência, mas no geral impede que tenham a mesma oportunidade de trabalho e remuneração que os homens.
A cada nove minutos, uma mulher é estuprada e quatro mulheres por dia são vítimas de feminicídio no Brasil. Elas ocupam menos de 18% dos assentos na Câmara dos Deputados e, na iniciativa privada, são menos de 40% das gerentes, apenas 1,2% de CEOs, e representam só 10,4% dos cargos em conselhos.
Para mudar esses números, há exemplos e exemplos de políticas afirmativas já adotadas em outros países e que funcionam: leis de cotas para preenchimento de vagas em conselhos de administração e diretorias executivas de empresas privadas e públicas, paridade de gênero em quaisquer conselhos e comitês de participação social, formação de gabinetes com um percentual mínimo de mulheres, critérios de diversidade para ingresso em carreiras públicas ou para seleção em empresas privadas etc.
Importa notar que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, acompanhou o movimento do presidente Lula ao confiar a presidência dos principais bancos públicos do país a duas mulheres: Rita Serrano comandará a Caixa Econômica Federal e Tarciana Medeiros será a primeira mulher a presidir o Banco do Brasil desde que foi fundado, em 1808.
Com efeito, só atingiremos uma democracia paritária e sólida, quando as mulheres finalmente puderem participar em igualdade com os homens em direitos, voz, visibilidade e ocupação de espaços, em todas as esferas da sociedade. O governo atual deu um ótimo sinal com as 11 ministras nomeadas, mas pode fazer ainda muito mais. É o que esperamos.
*Gabriela Shizue Soares de Araujo, advogada. Doutora e professora de Direito Constitucional na PUC/SP. Coordenadora do Grupo Prerrogativas
*Marina de Mello Gama, mestre em Direito Público pela Universidade de Salamanca (Espanha). Advogada e atualmente secretária de Assuntos Jurídicos e da Justiça da Prefeitura de Cotia/SP