Violência Política de Gênero e Lawfare no Brasil
Artigo de Gabriela Araujo originalmente publicado no volume II da obra “Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida”, organizada por Larissa Ramina e com a contribuição de diversos autores. Os volumes I, II e III estão disponiveis em pdf. A data da submissão do artigo para publicação foi novembro de 2021.
Por Gabriela Shizue Soares de Araujo
Introdução
Em 2016, quando a defesa técnica do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou a fazer uso do termo lawfare para denunciar o verdadeiro tribunal político – e corrompido - montado pela arbitrária e famigerada Operação Lava-Jato para perseguir, aprisionar e tentar retirar Lula da vida política , pouco se tinha conhecimento sobre tal conceito no Brasil.
Desde 2001, porém, o lawfare já vinha sendo estudado em âmbito mundial, aparentemente, a partir de artigo publicado pelo então coronel norte-americano Charles Dunlap Jr ., por meio do qual este criticava o uso (indevido) da lei ou de instrumentos jurídicos, incluindo tribunais, como verdadeiras armas de guerra, cuja finalidade seria alcançar objetivos militares operacionais previamente definidos.
No entanto, enquanto no Brasil o lawfare vem sendo recorrentemente utilizado para se referir a uma espécie de ativismo judicial punitivista e arbitrário, praticado por agentes corruptos infiltrados no sistema de justiça que almejam objetivos políticos, importa anotar a dubiedade do uso dessa mesma palavra pelos militares, incluído Dunlap Jr., no mais das vezes para defender as grandes potências e operações de guerra e atribuir, controversamente, a prática do lawfare justamente às organizações de defesa de direitos humanos.
Destarte, depreende-se que a palavra lawfare pode ser utilizada sob os mais variados enfoques ou acepções, importando, em verdade, a sua tradução literal - “guerra jurídica” ou “guerra pela lei” - e a forma como será manejada: no presente artigo, o conceito de lawfare será utilizado para nominar os séculos de perseguição jurídica e exclusão legal de metade da população mundial dos espaços de poder e decisão, simplesmente em razão de seu gênero.
Ora, não é novidade na história da própria Humanidade a utilização distorcida da lei e das instituições jurídicas como armas utilizadas para acossar, punir e eliminar inimigos, tantos não foram os tribunais de exceção, prisões infundadas, extorsões, confiscos e penas de morte aplicadas.
Não raro, as arbitrariedades eram cometidas em nome de uma suposta lei divina, a exemplo da “Santa” Inquisição e sua caça às bruxas direcionada principalmente às mulheres. Todavia, como será demonstrado nas linhas a seguir, não foi só durante a Inquisição que as mulheres foram as vítimas preferenciais do lawfare.
De fato, quando se faz um recorte de gênero, é possível afirmar que o lawfare historicamente vem sendo especialmente empunhado contra as mulheres, impedidas jurídica e legalmente de gozar de direitos civis e políticos desde a Democracia dos Antigos (século V a.C) e inclusive na fundação da Democracia Moderna (século XVIII): o Iluminismo e os lemas da igualdade, liberdade e fraternidade até hoje são romantizados em cima do sangue de tantas e tantas mulheres, mortas e violentadas sob o peso implacável do patriarcado, sem nunca sequer terem gozado de quaisquer desses direitos.
O presente artigo, assim, pretende trazer à tona uma das principais consequências da mais antiga, generalizada, massiva e violenta forma de lawfare já praticada, que é a violência contra as mulheres na política, ressaltando-se, porém, que o lawfare contra as mulheres é experimentado tanto na vida pública como privada e continua sendo praticado seja com o surgimento de novas legislações retrógradas, seja com a forma como os tribunais e demais instituições de Estado ainda lidam com as discriminações de gênero.
Insta ressalvar, ainda, que malgrado se reconheça que o lawfare contra as mulheres na política seja um fenômeno global, no presente artigo pretende-se delimitar o campo de estudo de forma um pouco mais direcionada para a situação do Brasil, país que ocupa a vergonhosa posição 93ª de um ranking de 156 países avaliados pelo Fórum Econômico Mundial no que se refere à paridade de gênero, caindo para a posição 108° quando se trata de participação feminina na política.
Com efeito, de acordo com o Global Gender Gap Report 2021 , relatório publicado em março de 2021 pelo Fórum Econômico Mundial, as disparidades entre os gêneros, em nível global, somente deverão ser eliminadas em aproximadamente 135,6 anos - muito embora a lacuna política de gênero deva consumir um tempo ainda maior, de 145,5 anos.
Consoante o supramencionado relatório, o Brasil somente superou 13,8% de desigualdades de gênero quanto ao empoderamento feminino na política: entre os fatores considerados incluem-se a baixa participação de mulheres em ministérios de Estado (atualmente são 3 mulheres para 20 homens) e no parlamento (aproximadamente 15%).
Tais dados ainda são consequências diretas dos estereótipos de gênero socialmente construídos que colocaram as mulheres por milênios em papéis domésticos e no cuidado dos vulneráveis, sem acesso à educação formal ou às atividades laborais, econômicas e políticas exclusivamente atribuídas aos homens, sedimentando uma dominação masculina que muitas vezes se traduziu e ainda se traduz em violência física, sexual, psicológica e econômica naturalizadas.
Em verdade, o que se pretende demonstrar a seguir é que, para sofrer as consequências de um lawfare estruturado e arraigado nas instituições, no Brasil e no mundo, basta ser mulher.
1. Desigualdade de Gênero na Política: o Brasil frente ao Mundo
Em outubro de 2021, a média mundial de participação feminina nos parlamentos era de 25,8% , enquanto a média das Américas era de 32,9%, de acordo com a União Interparlamentar, organização internacional que coleta dados globais sobre parlamentos nacionais dos países que a integram , produzindo um ranking mensal que classifica a posição de cada qual de acordo com o percentual de mulheres em sua composição.
Para tentar entender um pouco as razões desse baixo índice de participação feminina nos parlamentos globais, basta lembrar que, na maioria dos países ditos democráticos do Ocidente, as mulheres apenas conseguiram conquistar seus direitos políticos a partir do século XX, a exemplo do Brasil (1932) e da França (1945), ainda assim convivendo com legislações extremamente misóginas nas demais searas.
A conquista jurídica de igualdade de direitos perante a lei não foi suficiente, portanto, para dizimar uma cultura patriarcal construída por séculos e séculos de lawfare deliberado sobre metade da população mundial.
Ao mesmo tempo em que conquistaram o direito de acesso à educação e ao mercado de trabalho formal, as mulheres ainda enfrentam até hoje a injusta divisão sexual do trabalho e uma dupla jornada, permanecendo como responsáveis exclusivas pelos cuidados do lar e dos vulneráveis e vinculadas ao exercício de papéis desiguais que lhes foram atribuídos em razão de estigmas socialmente construídos sobre o seu gênero. Isso se reflete também em diferenças salariais e dificuldades de acesso a postos de direção e liderança, sendo frequentemente preteridas em privilégio dos homens.
E se as mulheres já enfrentam barreiras injustificáveis para ascender a carreiras profissionais e papéis sociais que tradicionalmente se reservou aos homens, para se destacarem para a vida pública e política, então, os obstáculos são ainda maiores!
Lamentavelmente, o reconhecimento dos espaços públicos como pertencentes a todas e todos, sem distinção de gênero, não é algo que esteja naturalizado na sociedade e ainda enfrenta duras resistências: durante a campanha e depois de eleitas, as mulheres são as vítimas preferenciais de todos os tipos de violências simbólicas, econômicas e até mesmo físicas, não raro praticadas por agentes políticos, o que se agrava consideravelmente quando se acrescentam outras opressões interseccionais.
Não só no Brasil, mas em diversos outros países do mundo, foi necessário instituir cotas de gênero para obrigar os partidos políticos a aceitarem um mínimo de mulheres como candidatas, e ainda assim a legislação é frequentemente burlada, quando não insuficiente.
A situação do Brasil em comparação com os demais países analisados pela União Interparlamentar, porém, é ainda mais dramática. Com base na composição da Câmara dos Deputados, apurou-se que, em outubro de 2021, o Brasil contava apenas com 15,2% de representação de mulheres no parlamento, ocupando a posição 142º do ranking mundial, atrás de absolutamente todos os países da América Latina e até de países de tradições mais conservadoras no que se refere aos costumes, como, por exemplo, o Iraque (78°) e o próprio Afeganistão (76º).
Vale dizer, contudo, que não é apenas na Câmara dos Deputados que as mulheres brasileiras se veem abissalmente sub-representadas.
Nas últimas Eleições Gerais, ocorridas em 2018, somente o Rio Grande do Norte elegeu uma mulher como governadora – Fátima Bezerra (PT) -, dentre as 27 unidades federativas do país.
Somando as deputadas estaduais eleitas nas assembleias legislativas de todos os Estados, chegou-se a uma média geral de 15% (161 mulheres), porém, com grandes disparidades regionais: o Mato Grosso do Sul não elegeu nenhuma mulher deputada estadual (de 24 vagas), enquanto o Estado de Goiás elegeu apenas duas mulheres deputadas (de 41 vagas), e mais outros onze Estados ficaram abaixo dos 15% de mulheres nas assembleias legislativas, como Paraná (7%), Rondônia (8%) e Espírito Santo (10%), por exemplo.
Já nas Eleições Municipais de 2020, realizadas em 5.570 municípios, apenas 12,04% deles elegeram mulheres como prefeitas e, na média geral, de todas as candidaturas à vereança, somente 16% das eleitas foram mulheres . Para piorar, ao se proceder a uma análise individual de cada um desses munícipios, 931 deles (ou 17% do total) não elegeram nenhuma mulher como vereadora , ou seja, a Câmara Municipal será ocupada, nessas localidades, exclusivamente por homens.
Importa notar que essa sub-representação feminina nos cargos eletivos é inversamente proporcional à sua presença no corpo social: as mulheres já são 52,8% do eleitorado brasileiro apto a votar e representam quase metade de todos os filiados a partidos políticos no país (47,72%) , segundo dados estatísticos publicados pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Assim, quase noventa anos depois de terem conquistado seus direitos políticos, desde o advento do Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, percebe-se que as mulheres brasileiras ainda não conseguem exercê-los em sua plenitude: embora estejam presentes maciçamente nas bases do eleitorado, não logram ver suas perspectivas representadas de forma minimamente proporcional nos espaços de poder e decisão.
2. Lawfare, Misoginia e Racismo: um quadro da violência política no Brasil
Não há como deixar de considerar que, desde os tempos em que o Brasil era colônia de Portugal, as influências do patriarcado cis heteronormativo branco europeu já se reproduziam na sociedade brasileira, sendo as mulheres, os pobres e as pessoas negras impedidos legalmente de gozar de quaisquer direitos políticos, de modo que 90 anos realmente parecem pouco tempo para destruir as barreiras estruturais e os estigmas de gênero que privilegiaram juridicamente os homens – e em especial os homens brancos - nesses espaços, por mais de 400 anos (pelo menos 353 deles de escravização também imoralmente legalizada dos negros).
No Brasil, portanto, o lawfare está intimamente entrelaçado pelo patriarcado, pela misoginia e pelo racismo, isso se não se quiser estender o debate também ao classismo, já que os espaços de poder e decisão sempre foram privilégios dos homens brancos e proprietários: se no passado, por imposição legal, hoje por ausência de leis antidiscriminatórias suficientes.
Segundo dados coletados pelo IBGE em 2019, 56,2% dos brasileiros se declararam como pessoas negras (pretas e pardas), e apenas 42,7% se declararam como pessoas brancas, sendo as 1,1% pessoas restantes autodeclaradas como amarelas e indígenas. No mesmo ano, o IBGE estimou que as mulheres eram maioria da população brasileira (51,8%), o que se reflete nos dados referentes ao eleitorado apto a votar, apurados pelo Tribunal Superior Eleitoral e mencionados anteriormente neste artigo.
No entanto, basta assistir qualquer sessão na TV Câmara ou na TV Senado para perceber que os homens brancos, minoria social, dominam a agenda política do país e as pautas a serem debatidas, excluindo a possibilidade de que as perspectivas da maioria da população brasileira sejam devidamente representadas.
Em 2018, das 513 vagas disponíveis na Câmara dos Deputados, 62,57% foram ocupadas pelos homens brancos (321 eleitos), apesar de serem a minoria dos candidatos, seguidos pelos homens negros (113 eleitos) com 22,02%. Por sua vez, se as mulheres brancas (63 eleitas) só conseguiram ocupar 12,28% dos assentos, as mulheres negras, maioria social ao se aplicar o recorte de raça e gênero (posto que representam 28% da população brasileira), ficaram com apenas 2,5% das vagas disponíveis (13 mulheres negras eleitas) .
Nesse sentido, vale trazer à baila parte das conclusões do projeto de pesquisa aplicada denominado “Democracia e Representação nas Eleições de 2018: Campanhas Eleitorais, Financiamento e Diversidade de Gênero ”, realizado pela FGV Direito, em parceria com a CEPESP (EESP/EAESP), que constatou que as receitas de financiamento de campanha dos homens brancos também foram desproporcionalmente superiores às de mulheres, especialmente de mulheres negras, nas Eleições de 2018:
“Os homens brancos representam 43,1% de todos os candidatos, mas concentram cerca de 60% das receitas de campanha. Homens negros, mulheres brancas e mulheres negras são proporcionalmente subfinanciados. A receita total média entre os homens brancos também é maior do que a dos demais grupos. Sob este aspecto, a raça/cor das candidaturas parece ser preponderante em relação ao gênero, pois os homens negros apresentaram uma receita total média menor do que as mulheres brancas. É possível identificar que os recursos privados vão majoritariamente para candidatos homens e brancos. Tanto as doações de pessoas físicas como as próprias contribuições dos candidatos foram em torno de 70% direcionadas a esse grupo de candidatos. A proporção é bem parecida entre os dois grupos de competitividade eleitoral”.
Se esses dados podem parecer por si só assustadores, importa anotar que eram ainda piores nas eleições anteriores: mesmo após a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, as mulheres jamais conseguiram chegar a 10% da composição da Câmara dos Deputados e eram ainda mais subfinanciadas.
O diferencial das Eleições de 2018 é que estas já se realizaram sob o impacto de decisões jurisprudenciais advindas do Supremo Tribunal Federal (ADI 5617/DF) e do Tribunal Superior Eleitoral (Consulta nº 0600252-18/DF) que obrigaram os partidos políticos a destinarem um percentual mínimo de recursos públicos de campanha e de visibilidade em propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV, na medida proporcional do número de candidatas registradas para os cargos de deputadas ou vereadoras.
Até então, sem essa obrigatoriedade, era comum a prática antidemocrática dos partidos políticos utilizarem os recursos públicos recebidos do Tesouro Nacional quase que exclusivamente nas candidaturas de homens – majoritariamente brancos -, por eles consideradas mais viáveis, além de destinarem o tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão também de forma desigual em privilégio de candidaturas masculinas.
Não é à toa que se fala, portanto, em machismo estrutural, em raízes patriarcais operando nas instituições e na forma como agem, em especial nos partidos políticos, onde, malgrado as mulheres sejam quase metade das filiadas, não conseguem sequer se verem representadas nem em 20% da composição dos órgãos partidários de direção.
Como explicar de outra forma as famigeradas candidaturas laranjas ou fictícias de mulheres, apresentadas pelas mais variadas instâncias partidárias e das mais diversas ideologias? Não obstante desde a edição da Lei nº 9.504, em 30 de setembro de 1997, os partidos políticos já fossem obrigados a registrar pelo menos 30% das suas chapas proporcionais com candidatas mulheres, tem sido cada vez mais recorrente a fraude às cotas de gênero, o que explica em parte as razões delas ainda não terem produzido os efeitos esperados rumo à democracia paritária no Brasil.
Apenas reciclando as antigas práticas do lawfare que há milênios buscam afastar as mulheres da política, os líderes partidários antes preferem registrar nomes meramente proforma de mulheres, apenas para cumprir a cota imposta por lei, do que investir em candidaturas femininas realmente competitivas – o que significaria ter que correr o risco de dividir os votos dos homens e abdicar de privilégios.
Embora a Justiça Eleitoral venha acirrando cada vez mais a fiscalização e a punição às fraudes às cotas de gênero, inclusive com a cassação de parlamentares eleitos sob o benefício de chapas que cometeram esse desvio, infelizmente, nas Eleições de 2020, tais condutas fraudulentas continuaram e a tendência é que continuem nas próximas eleições, se o cenário permanecer inalterado e os responsáveis não passarem a ser punidos de forma mais eficaz.
Mesmo sob a vigência de decisões conjuntas do Supremo Tribunal Federal (ADPF 738/DF) e do Tribunal Superior Eleitoral (Consulta TSE nº 0600306-47/DF) determinando também o repasse proporcional de recursos de campanha às candidaturas de pessoas negras, ainda assim as mulheres negras formam o maior grupo de pessoas que receberam de 0 a 2 votos nas Eleições Municipais de 2020, o que é um dos principais indícios de que foram possivelmente utilizadas como laranjas. Já as mulheres brancas representaram o segundo grupo de pessoas com 0 a 2 votos, seguidas pelos homens negros, conforme apurou a Gênero e Número :
“Enquanto homens (84%) e pessoas brancas (53,5%) são maioria entre os vereadores eleitos no Brasil no último domingo, mulheres (68%) e pessoas negras (60%) são maioria entre um grupo que o sistema eleitoral brasileiro insiste em perpetuar: as possíveis candidaturas laranjas. Análise preliminar da Gênero e Número, feita com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mostra que o expediente das candidaturas laranja continua”.
Ainda consoante a mesma matéria da Gênero e Número, em 2020, o padrão de descumprimento da jurisprudência sedimentada em favor das políticas afirmativas se repetiu, tal qual ocorrera em 2018, com o sub-financiamento de mulheres e pessoas negras, em benefício dos homens brancos:
“De acordo com a plataforma 72 horas, pessoas brancas receberam 62,5% das verbas dos Fundos Eleitoral e Partidário, enquanto homens ficaram com 73,3%. Os números contrariam as determinações do TSE sobre gênero e raça, segundo as quais 30% da verba das legendas deve ser endereçada a mulheres que concorrem nas urnas. Este ano, o TSE também decidiu que candidaturas negras deveriam receber financiamento proporcional. Como 50% das candidaturas eram negras, esta deveria ser a fatia dos fundos encaminhada para estes concorrentes. O livro “Candidatas em jogo: um estudo sobre os impactos das regras eleitorais na inserção de mulheres na política”, da Fundação Getúlio Vargas, mostra que, nas eleições de 2014 e 2018, mulheres negras foram o grupo mais subfinanciado”.
O que se verifica constantemente no Brasil, em especial partindo de partidos políticos, agentes políticos e instituições, em verdade, trata-se de uma modalidade de lawfare que se expressa pela violência política de gênero, violência política sexista ou violência contra as mulheres na política, todos termos sinônimos que servem para designar quaisquer ações, condutas ou omissões, inclusive simbólicas, praticadas em razão de discriminação de gênero, e cujo propósito seja minar, anular, impedir ou restringir os direitos políticos das mulheres, como bem previsto na “Declaração sobre Assédio Político e Violência Contra as Mulheres ” (OEA, 2015).
A violência política de gênero costuma se expressar antes mesmo da viabilização das candidaturas femininas – devido à resistência dos partidos em aceitarem mulheres como candidatas -, assim como durante a campanha – com a falta de recursos, além de perseguições e ameaças -, e com ainda maior gravidade sobre as poucas mulheres que sucedem em se eleger, mesmo com tantos obstáculos e violências a elas impostos no decorrer de toda a corrida eleitoral.
Reitera-se aqui o que já foi dito algumas vezes no decorrer do presente artigo: quando se acrescem fatores interseccionais, como raça, orientação sexual, identidade de gênero, a violência também se acirra, como se pode extrair da pesquisa publicada pelo Instituto Marielle Franco sobre a Violência Política contra As Mulheres Negras nas Eleições de 2020 . Das 142 entrevistadas, 78% declararam ter sofrido violência virtual durante a campanha, 62% declararam ter sofrido violência moral e psicológica, 55% sofreram violência institucional, 44% foram vítimas de violência racial, 42% sofreram violência física, alarmantes 32% das candidatas negras entrevistadas sofreram violência sexual durante a campanha e 28% declararam terem sido vítimas de violência de gênero e/ou LGBTQIA+.
Os dados coletados pelo Instituto Marielle Franco se referem à violência política de gênero eleitoral, mas depois de eleitas as mulheres sofrem ainda mais graves formas de violência. É comum que sejam constantemente interrompidas em suas falas, impedidas de participar de comissões parlamentares importantes, agredidas no exercício de suas funções (verbalmente, sexualmente e fisicamente), julgadas por estigmas de gênero, inclusive pelos próprios colegas agentes políticos, entre outras formas de violência.
Antes mesmo de se mencionar textualmente qualquer nome específico neste artigo, certamente as leitoras e leitores devem ter se lembrado de pelo menos um caso de violência contra as mulheres na política cometido no Brasil ou no mundo, pelo simples fato de serem mulheres, mas dificilmente conseguiriam se lembrar de algum episódio de violência política praticado contra um homem pelo simples fato dele ser homem.
No Brasil, dentre os inúmeros casos diários de violência política de gênero, e apenas a título de exemplo, pode-se citar alguns deles que foram tristemente notórios, como (i) o feminicídio político da vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ) em pleno centro do Rio de Janeiro, em 2018; (ii) a importunação sexual sofrida pela deputada Isa Penna (PSOL/SP), que teve seus seios tocados por um colega deputado em meio a uma sessão legislativa na ALESP, em 2020 ; (iii) os ataques com incitação ao crime de estupro, direcionados pelo então deputado Jair Bolsonaro à deputada federal Maria do Rosário (PT/RS), ao dizer mais de uma vez (2003 e 2014) que não a estupraria porque “ela não merecia” e porque “era muito feia” ; e (iv) o tratamento misógino dado, com o apoio da imprensa, à única mulher a presidir o Brasil, impedida de cumprir até o fim o seu segundo mandato, Dilma Rousseff.
Em análise comparativa dos casos de lawfare sofridos pelas presidentas Dilma Rousseff, no Brasil, e Cristina Fernandez Kirchner, na Argentina, ressaltando que o caso de Dilma atingiu uma magnitude ainda mais grave por ela ter sido destituída forçadamente do seu cargo, Indiana Rocío Azar e Luiza Tavares da Motta escrevem:
“Ao tratar, portanto, do lawfare no Brasil e na Argentina, especificamente nos casos em que as mulheres que se encontravam em cargos políticos foram vítimas desse instituto, é possível perceber a violência de gênero que se apresenta então no meio político: a não aceitação, por exemplo, da palavra “presidenta” no vocabulário – tanto no caso argentino, quanto no brasileiro –, a representação midiática das ex-presidentas como “loucas” e “incapazes” de estar no meio político, são apenas exemplos dos estereótipos ainda remanescentes de um sexismo que afasta as mulheres da política, de modo a prejudicar, em muito, a representatividade política de mais de 50% da população, seja no Brasil, seja na Argentina.
O que se pode anotar, deste modo, é que a manipulação dos institutos jurídicos no lawfare, quando voltada a mulheres, assume ainda uma nova força: a da violência de gênero; se manifesta e se coloca não apenas a partir do uso do judiciário, mas também a partir e com base em estereótipos de gênero capazes de reforçar a aparente legitimidade, que passa a contar também com o apoio popular (vale lembrar que os escândalos jurídicos são amplamente utilizados nas instâncias do lawfare), do afastamento dessas mulheres do poder ”.
No mesmo sentido, a pesquisa “Violência Política e Eleitoral no Brasil – Panorama das violações de direitos humanos de 2016 a 2020”, publicada pela Terra de Direitos e Justiça Global, concluiu que a violência política dirigida contra as mulheres está concentrada em ataques direcionados à sua dignidade e a um não reconhecimento de seu pertencimento ao ambiente político: “a baixa representação de mulheres na política e a estigmatização do seu papel levam a uma dinâmica de não reconhecimento das mulheres como iguais, o que faz com que sua dignidade seja o principal alvo de ataque”, e não por um acaso os agressores são, quase que hegemonicamente, os homens .
Não basta, portanto, estabelecer uma igualdade formal perante a lei, se há diversos óbices materiais e estruturais que impedem as mulheres de gozarem de fato dessa igualdade: é preciso ir além, é preciso pensar em garantias antisdiscriminatórias que busquem a paridade nos espaços de deliberação política.
No entanto, como se lerá no capítulo a seguir, o Brasil vem caminhando a passos lentos em termos de políticas afirmativas, para não dizer em sentido contrário.
3. Violência Política de Gênero e Lawfare: quando o inimigo está dentro das instituições políticas
Reconhecendo que as históricas desigualdades política, econômica e social de gênero são malefícios que impedem a consolidação das democracias em âmbito mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) incluiu a igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas como o 5º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) do plano global de ação para mudar o mundo até 2030 (Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável) e há diversos acordos internacionais firmados tanto no âmbito das Nações Unidas como da Organização dos Estados Americanos para implementar políticas afirmativas e cotas de gênero a fim de acelerar esse objetivo, sendo o Brasil signatário de quase todos eles.
Dentre os principais documentos internacionais aderidos pelo Brasil, pode-se mencionar o “Marco Normativo para Consolidar a Democracia Paritária ” (2015), por meio do qual os Estados-membros do Parlatino reconhecem um modelo de democracia no qual a paridade e a igualdade substantiva encarnam os dois eixos estruturantes de qualquer Estado inclusivo e que se pretenda democrático, bem como se comprometem a adotar “medidas legislativas e quaisquer outras necessárias para atingir a representação paritária efetiva entre homens e mulheres em cargos públicos em todos os poderes e as instituições do Estado, em todos os níveis”.
De fato, a maioria dos países que estão no topo do ranking mundial de participação feminina no parlamento adotam ou já adotaram alguma cota de gênero como uma forma de quebrar as barreiras visíveis e invisíveis que discriminam a ascensão de mulheres aos espaços que histórica e juridicamente lhes foram negados por tantos anos.
Trata-se, em verdade, de uma obrigação histórica de reparação que deve ser assumida pelos Estados para remover os obstáculos impostos pelo lawfare usado de forma institucional pelo patriarcado para gozar do acesso sistemático aos corpos e às vidas daquelas que socialmente a dominação masculina conviria a definir como o “sexo frágil”, docilizado e submisso, restrito a uma esfera privada não apenas doméstica, mas também “domesticada”.
Sob essa perspectiva, objetivando demonstrar como se faz o uso do lawfare no Brasil, ou da lei como arma, para se tentar tirar as mulheres do campo político – o que hoje se entende como violência política de gênero, neste capítulo serão apresentadas algumas das esparsas legislações com políticas afirmativas e cotas de gênero já implementadas no Brasil, cujas resistências em cumpri-las ou tentativas de burlá-las só não são maiores do que as frequentes ameaças de retrocessos que são colocadas ano após ano em discussão no Congresso Nacional.
Como se poderá verificar, as conquistas até aqui alcançadas pelas mulheres, em termos de direitos políticos, advieram seja da pressão pelo cumprimento de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, ou por influência de decisões jurisprudenciais, com implacável fiscalização da Justiça Eleitoral, tendo em vista a dificuldade em se propor uma agenda inclusiva em um parlamento onde somente em 2018 os homens deixaram de ser mais de 90% dos eleitos, passando mesmo assim a ocupar esmagadores 85% dos assentos da Câmara dos Deputados.
O lawfare contra as mulheres brasileiras na política, portanto, não cessou quando finalmente os óbices legais e jurídicos para que votassem e fossem votadas foram eliminados, há menos de um século. Pelo contrário, esse lawfare misógino resiste diariamente, seja impedindo que cotas de gênero mais assertivas sejam criadas – como as tão almejadas reservas de assentos no parlamento – ou que penalidades mais duras sejam aplicadas aos partidos políticos, seja com a propositura de projetos de lei que restringem ou revogam as já insuficientes políticas afirmativas existentes.
Senão, vejamos.
A primeira lei de cotas de gênero para preenchimento de vagas no Poder Legislativo, no Brasil, surgiu na esteira da pressão internacional por democracia paritária promovida durante a IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim, em setembro de 1995, e da qual emergiram a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim.
Inicialmente, a Lei nº 9.100, de 29 de setembro de 1995 , estabelecia cotas de candidaturas restritas às eleições municipais que ocorreriam em 3 de outubro de 1996, mas posteriormente adveio a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, a qual instituiu as cotas legislativas para reserva de candidaturas às chapas proporcionais de forma definitiva e em nível nacional, conforme se lê da redação original de seu artigo 10, §3º, abaixo transcrita:
“Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais, até cento e cinqüenta por cento do número de lugares a preencher. (...) § 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo”. (Redação original, posteriormente alterada)
Ocorre que os partidos políticos passaram a interpretar o dispositivo supra de forma distorcida, entendendo que apenas deveriam deixar reservadas as vagas destinadas às mulheres, não sendo obrigados a realmente ocupá-las.
Até que a redação da lei fosse alterada, mais de dez anos depois, as instâncias partidárias entendiam que estavam autorizadas a registrar chapas proporcionais inclusive 100% masculinas, desde que registrassem até 70% do número de candidaturas a que teriam direito, deixando os 30% restantes “reservados” ou “vagos” para as candidaturas femininas, que permaneciam inviabilizadas.
Após intensa pressão jurisprudencial e da opinião pública é que o parlamento – diretamente influenciado pela lógica patriarcal partidária, vale lembrar – editou a Lei nº 12.034, de 29 de setembro de 2009, alterando a redação do §3º do artigo 10 da Lei nº 9.504/97, para substituir a expressão “deverá reservar” por “preencherá”, in verbis: “§ 3o Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”.
Vale anotar que foi a partir daí que se proliferaram também as candidaturas femininas laranjas ou fictícias, manobra usada pelos partidos políticos para continuarem excluindo as mulheres da disputa eleitoral. Quando perceberam que não poderiam mais deixar as “vagas” delas vazias, então passaram a preenchê-las de forma fraudulenta.
A mesma Lei nº 12.034/2009 instituiu uma nova política afirmativa para incentivar a participação feminina na política, obrigando os partidos políticos a investirem pelo menos 5% dos recursos públicos recebidos do Fundo Partidário para a promoção e difusão da participação política das mulheres, alterando o artigo 44 da Lei n° 9.096, de 19 de setembro de 1995, para acrescentar-lhe o inciso V , cuja redação atual segue in verbis:
“Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados: (...) V – na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e executados pela Secretaria da Mulher ou, a critério da agremiação, por instituto com personalidade jurídica própria presidido pela Secretária da Mulher, em nível nacional, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total”; (Redação dada pela Lei n. 13.877, de 2019, redação em vigor no ano de 2021).
Ademais, a Lei nº 12.034/2009 também estabeleceu que o partido que não destinasse 5% dos recursos do Fundo Partidário para o incentivo da participação de mulheres na política, no ano subsequente, em compensação, deveria “acrescer o percentual de 2,5% (dois inteiros e cinco décimos por cento) do Fundo Partidário para essa destinação, ficando impedido de utilizá-lo para finalidade diversa” (§5º, do art. 44, da Lei nº 9.096/95).
Ainda assim, apesar dos percentuais todos serem ínfimos, os partidos políticos resistiam em cumpri-los, de modo que, em 2015, a Lei nº 13.165 trouxe alterações ao artigo 44 da Lei nº 9.096/95.
Embora a primeira impressão, somente pela leitura individualizada da nova redação do §5º do artigo 44, pudesse ser de que o dispositivo estaria sendo recrudescido, por outro lado, ao se analisar os §§5º-A e 7º recém-criados, ficava facilmente verificável que a real intenção da nova lei era flexibilizar referida política afirmativa, posto que passou a permitir às legendas deixarem de aplicar os recursos originariamente reservados às Secretarias de Mulheres, acumulando-os em seguidos exercícios, para aplicação exclusiva em campanhas eleitorais:
“Art. 44(...)
§ 5º O partido político que não cumprir o disposto no inciso V do caput deverá transferir o saldo para conta específica, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deverá ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade. (Redação dada pela Lei n. 13.165, de 2015, em vigor no ano de 2021).
(...)
§ 5o-A. A critério das agremiações partidárias, os recursos a que se refere o inciso V poderão ser acumulados em diferentes exercícios financeiros, mantidos em contas bancárias específicas, para utilização futura em campanhas eleitorais de candidatas do partido. (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015) (Declarado Inconstitucional pela ADI nº 5.617, em 2018)
(...)
§ 7o A critério da secretaria da mulher ou, inexistindo a secretaria, a critério da fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, os recursos a que se refere o inciso V do caput poderão ser acumulados em diferentes exercícios financeiros, mantidos em contas bancárias específicas, para utilização futura em campanhas eleitorais de candidatas do partido, não se aplicando, neste caso, o disposto no § 5º. (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015) (Declarado Inconstitucional pela ADI nº 5.617, em 2018)”
Percebe-se que a supra referida Lei nº 13.165, de 29 de setembro de 2015, aliás, trouxe em seu texto diversos “jabutis” escondidos sob o disfarce de benefício às candidaturas de mulheres. É o que se verifica pela redação de seu artigo 9º, o qual ao mesmo tempo em que parecia introduzir finalmente a obrigatoriedade de os partidos investirem percentuais mínimos do Fundo Partidário a serem destinados ao financiamento de campanhas eleitorais femininas, por outro lado, limitava tais percentuais a um máximo irrisório:
“Art. 9º Nas três eleições que se seguirem à publicação desta Lei, os partidos reservarão, em contas bancárias específicas para este fim, no mínimo 5% (cinco por cento) e no máximo 15% (quinze por cento) do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para aplicação nas campanhas de suas candidatas, incluídos nesse valor os recursos a que se refere o inciso V do art. 44 da Lei no 9.096, de 19 de setembro de 1995”.
Ora, a destinação legal de percentuais mínimos de 5% (cinco por cento) de recursos públicos para financiamento de campanhas femininas chega até a ser um escárnio, se considerado que, nos termos do artigo 10, §3º da Lei nº 9.504/97, os partidos são obrigados a registrar pelo menos 30% (trinta por cento) de suas chapas proporcionais com candidaturas de mulheres, e, além disso, ao se estipular um teto máximo de 15% (quinze por cento) de repasses para as mulheres, assume-se legalmente que as candidatas serão subfinanciadas, à razão da metade de sua presença no pleito eleitoral.
Todos esses retrocessos tentados por via legislativa somente foram impedidos pelo Supremo Tribunal Federal, que, em 15 de março de 2018, julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5617/DF proposta pelo Procurador-Geral da República, nos seguintes termos:
“(i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “três ” contida no art. 9º da Lei 13.165/2015; (ii) dar interpretação conforme à Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015 de modo a (a) equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do fundo alocado a cada partido, para eleições majoritárias e proporcionais, e (b) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhes seja alocado na mesma proporção; (iii) declarar a inconstitucionalidade, por arrastamento, do § 5º-A e do § 7º do art. 44 da Lei 9.096/95”.
Em suma, e graças às decisões das Cortes Superiores, que têm se portado como verdadeiras guardiãs dos direitos políticos das mulheres e contra o retrocesso e o lawfare praticado pela lógica de dominação masculina ainda imperante nos partidos políticos e no Poder Legislativo, hoje, no Brasil, as cotas de gênero e políticas afirmativas existentes são as seguintes:
(i) cotas de gênero com reservas de candidaturas de 30% para as mulheres nas chapas proporcionais (art. 10, §3º, da Lei nº 9.504/97);
(ii) obrigatoriedade de os partidos políticos repassarem ordinariamente no mínimo 5% dos recursos recebidos do Fundo Partidário para criação e manutenção de programas de difusão e promoção da participação política de mulheres, executados pelas Secretarias de Mulheres das próprias agremiações (art. 44, inc. V, da Lei nº 9.09/95);
(iii) por interpretação das Cortes Superiores, mas sem previsão legal específica, obrigatoriedade de os partidos repassarem percentuais proporcionais de recursos públicos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral (FEFC), em anos eleitorais, para as candidaturas de mulheres, seguindo a proporcionalidade com que estão representadas em cada chapa (ADI 5617/DF e Consulta TSE n. 0600252-18/DF ).
(iv) por interpretação das Cortes Superiores, mas sem previsão legal específica, obrigatoriedade de os partidos viabilizarem às candidaturas femininas tempo proporcional de propaganda em rádio e TV na razão de sua apresentação (Consulta TSE n. 0600252-18/DF);
(v) em 25 de agosto de 2020, o Tribunal Superior Eleitoral, em resposta à Consulta TSE n° 0600306-47/DF, decidiu aplicar o recorte racial às cotas de gênero para financiamento de campanhas e para o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, determinando que fossem repartidos entre mulheres negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações.
Lamentavelmente, no entanto, e como já abordado ao longo do presente artigo, os partidos insistem em descumprir recorrentemente os poucos incentivos legais e jurisprudenciais à inclusão de mulheres na política acima expostos, e o Poder Legislativo, ainda composto esmagadoramente por homens, segue a pauta das direções partidárias para tentar fugir dessa obrigatoriedade e isentar suas próprias legendas das penalidades aplicadas pela Justiça Eleitoral.
Tome-se como exemplo, novamente, a obrigatoriedade legal dos partidos repassarem o valor irrisório de apenas 5% do Fundo Partidário para os programas de incentivo à participação de mulheres na política, um percentual muito aquém do número de mulheres hoje filiadas aos partidos políticos.
Ora, o propósito inicial desses repasses é justamente o empoderamento da participação feminina na política para além das campanhas eleitorais, de modo que as mulheres consigam participar minimamente da vida partidária e da construção dos ideais programáticos na condução dos partidos, inclusive com a sua ascensão a cargos de direção e liderança intrapartidários.
Entretanto, e consoante informações disponíveis no site do Tribunal Superior Eleitoral, desde 2009 que a grande maioria das agremiações partidárias vêm tendo suas contas reprovadas ou aprovadas com ressalvas por não terem cumprido com a aludida legislação. Em 2020, o TSE informou o resultado do julgamento das contas partidárias referentes ao exercício de 2014 : pelo menos 23 partidos deixaram de cumprir a cota mínima de 5% do total de recursos recebidos do Fundo Partidário para programas que incentivem a participação feminina na política, dos 32 partidos registrados naquele ano. Em 2019, 25 partidos tinham violado a norma e sido penalizados. O mesmo ocorre maciçamente em âmbito regional, no julgamento das contas dos Diretórios Estaduais pelos Tribunais Regionais Eleitorais.
Diante desse quadro, o Poder Legislativo, diretamente controlado pelas legendas partidárias, ambos, por sua vez, hegemonicamente compostos por homens – notadamente brancos -, concedeu uma verdadeira autoanistia aos infratores, por meio da Lei n. 13.831/2019, que introduziu os artigos 55-A, 55-B e 55-C à Lei n. 9.096/1995:
“Art. 55-A. Os partidos que não tenham observado a aplicação de recursos prevista no inciso V do caput do art. 44 desta Lei nos exercícios anteriores a 2019, e que tenham utilizado esses recursos no financiamento das candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade.
Art. 55-B. Os partidos que, nos termos da legislação anterior, ainda possuam saldo em conta bancária específica conforme o disposto no § 5º-A do art. 44 desta Lei poderão utilizá-lo na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres até o exercício de 2020, como forma de compensação.
Art. 55-C. A não observância do disposto no inciso V do caput do art. 44 desta Lei até o exercício de 2018 não ensejará a desaprovação das contas”.
Já foi apresentada a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6230/DF para questionar essa malfadada autoanistia, porém, enquanto o julgamento não ocorre, alguns Tribunais Regionais Eleitorais dos Estados já vêm aceitando a sua incidência, isentando de penalidades os partidos políticos infratores.
Mais recentemente, novas tentativas de retrocessos para a pauta da democracia paritária surgiram, como a Proposta de Emenda à Constituição nº 18, de 2021, e o Projeto de Lei nº 1.951, de 2021, ambas aprovadas no Senado Federal e encaminhadas à Câmara dos Deputados (ainda pendentes de deliberação nesta última casa quando o presente artigo foi escrito) .
Sob o argumento de que se estaria constitucionalizando a obrigatoriedade de os partidos políticos destinarem pelo menos 5% dos recursos públicos recebidos de Fundo Partidário na promoção e difusão da participação feminina na política, hoje já prevista na Lei n° 9.096/95, na verdade, a Proposta de Emenda à Constituição nº 18, de 2021, permite aos partidos políticos que acumulem tais recursos por meses e anos seguidos, para utilizá-los de uma vez só nas campanhas eleitorais de suas candidatas, tal como já previra anteriormente a Lei nº 13.165/2015, na parte declarada inconstitucional pela ADI 5617/DF.
Já o Projeto de Lei nº 1.951, de 2021, também aprovado no Senado, apesar de estabelecer reserva de cadeiras para mulheres nas Casas Legislativas, por outro lado, revoga uma das principais conquistas no que se refere não apenas à participação feminina na política, mas também à democracia intrapartidária, devolvendo ao §3º do artigo 10 da Lei nº 9.504/97 a redação original: “deverá reservar”.
Se os partidos deixarem de serem obrigados a preencher os 30% (trinta por cento) mínimos de candidaturas de mulheres nas chapas proporcionais, serão desestimulados de capacitar e incluir mais mulheres na política ou de abrir espaços para as novatas, ao mesmo tempo em que as reservas de assentos privilegiarão aquelas mulheres com capital político, familiar e financeiro já consolidados.
Ainda, tanto a PEC nº 18/2021, como o PL nº 1.951/2021, além de ignorarem as cotas raciais que já foram até aplicadas nas Eleições de 2020, por decisão conjunta das Cortes Superiores, retiram deliberadamente a exigência de proporcionalidade de investimentos com recursos públicos e visibilidade em propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV a serem destinados às candidaturas femininas, impostas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral, estabelecendo apenas o mínimo fixo de 30% (trinta por cento), independentemente de eventualmente os partidos apresentarem um número superior de candidaturas femininas, o que permitirá, mais uma vez, que os homens (brancos) sejam privilegiados.
Outras propostas legislativas que implicavam retrocessos para as mulheres na política foram derrubadas em 2021, como a Proposta de Emenda Constitucional nº 125, de 2011, que inicialmente havia sido conhecida como a “PEC do Distritão”, pois pretendia alterar o sistema eleitoral para preenchimento de vagas no Poder Legislativo, que atualmente é proporcional em lista aberta, para o sistema majoritário com voto único intransferível, ou o famigerado “distritão”, o que, além de desperdiçar muitos votos e enfraquecer os partidos políticos, privilegiando pessoas ao invés de projetos, consubstanciar-se-ia na pior das opções para quaisquer minorias políticas, as mulheres entre elas.
Entretanto, em meio a tantas ameaças de retrocesso e tantos projetos de lei misóginos em debate no Congresso Nacional, em 2021, quase que como um milagre, foi aprovada uma legislação que poderá representar um bom instrumento de defesa para as mulheres vítimas de violência política no Brasil.
Trata-se da Lei nº 14.192/2021 , publicada em 05 de agosto de 2021, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, tipificando a violência política de gênero como crime, impondo inclusive pena de reclusão aos seus infratores.
Nos termos da nova legislação aprovada, considera-se violência política contra a mulher “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher” (artigo 3º) e “qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo”. (artigo 3º, parágrafo único).
Assim, aplicando-se o princípio da proibição do retrocesso, aliado aos dispositivos da Lei nº 14.192/2021, talvez se tenha algum escudo para defender os direitos políticos das mulheres diante do lawfare contínuo praticado pelas instituições políticas brasileiras.
Conclusão
No Brasil, quem usa a lei como verdadeira arma para perseguir politicamente as mulheres é especialmente o órgão responsável por implementá-la: o próprio Poder Legislativo, sob o comando das organizações partidárias, ambos espaços majoritariamente – ou quase que hegemonicamente – liderados por homens brancos cis heteronormativos e altamente resistentes a abdicarem de seus privilégios.
Por outro lado, como visto nos capítulos anteriores, o Poder Judiciário, por meio de suas Cortes Superiores, tem se portado como o principal defensor das mulheres contra os retrocessos, muitas vezes, inclusive, agindo no contra-ataque: se de um lado o Poder Legislativo edita uma lei antidemocrática que retira direitos consolidados, de outro lado o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral não apenas a extirpam do ordenamento, mas a interpretam de forma a expandir os direitos das mulheres.
Fica até a dúvida se o lawfare existiria apenas quando se visasse atacar ou restringir direitos, ou se seria possível também usar essa terminologia para se referir ao uso de todos os meios jurídicos cabíveis para defender e dar maior efetividade à concretização dos direitos humanos. Nesse sentido, o Congresso Nacional estaria frequentemente invocando o lawfare do mal e o Supremo Tribunal Federal faria jus ao lawfare do bem, pelo menos sob o ponto de vista da ampliação e defesa dos direitos políticos das mulheres.
É preciso, de todo modo, que se tenha a compreensão de que a sub-representação de mulheres nos espaços eletivos e de poder político se deve a um lawfare institucionalizado que se expressa por meio de violência política de gênero e por ações e omissões deliberadas que têm justamente a finalidade de restringir os direitos políticos das mulheres desde a fundação deste país.
A lei, no Brasil e no mundo, foi usada por um longo período como arma para negar às mulheres o direito ao voto, o direito de serem votadas, o direito ao divórcio, o direito sobre suas propriedades, representando uma verdadeira guerra dos homens contra as liberdades sexuais daquelas cujos corpos sempre pretenderam subjugar.
A mera conquista legal do sufrágio feminino, portanto, não foi capaz de derrubar privilégios secularmente consolidados às custas da construção de uma cultura misógina que estimula padrões de discriminação e violência de gênero. Para subverter essa lógica, é preciso proatividade e um enfrentamento direto, o que exige implementação de cotas de gênero, políticas afirmativas para inclusão de mulheres nos espaços deliberativos, e compromisso real das instituições com a democracia paritária.
Referências
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