A simbologia de celebrar os 100 anos da Semana da Arte Moderna com mulheres como protagonistas
Artigo originalmente publicado em 11 de fevereiro de 2022, no Portal IG.
Foi pensando em ressignificar, para os dias atuais, o espírito de vanguarda, protesto e ruptura com o conservadorismo que marcou a Semana da Arte Moderna de 1922, que aceitei o convite de embarcar no projeto de celebração de seu centenário, no Theatro Municipal, que já vinha sendo idealizado pelas amigas Celeste Leite dos Santos, promotora de justiça e Gestora do projeto AVARC, e Vera Simões, curadora de arte e proprietária da Galeria VerArte.
Como se sabe, a Semana de Arte Moderna foi uma manifestação artístico-cultural que ocorreu no Theatro Municipal de São Paulo entre os dias 13 e 18 de fevereiro de 1922, com a participação de artistas plásticos, músicos, poetas e escritores, majoritariamente homens e brancos, oriundos da elite.
Apenas três mulheres se apresentaram, com suas obras e sua música, à época dos eventos que ocorreram dentro do Theatro: Anita Malfatti, Guiomar Novaes e Zina Aita, muito embora tenha sido Anita Malfatti a grande inspiradora do movimento modernista no Brasil, anos antes, quando suas pinturas, aquarelas e gravuras despertaram críticas acirradas do então colunista do jornal O Estado de São Paulo, Monteiro Lobato.
Essas mesmas mulheres e as outras que também são símbolo do movimento modernista, embora não tenham participado da Semana de Arte Moderna, como Tarsila do Amaral, Maria Pardos, Abigail de Andrade, Alice Santiago e Pagu, somente conquistariam seus direitos políticos dez anos depois, em 1932. Imagine o quanto era vanguardista elas se manifestarem publicamente com sua arte tão inovadora, quando nem direito ao voto elas usufruíam.
Infelizmente, passados cem anos, ainda há muito que se avançar e estamos longe demais da igualdade de gênero, longe demais de quebrar as correntes do patriarcado. Vivemos em um país onde as mulheres são a maioria do eleitorado apto a votar, mas não conseguem ocupar nem 15% dos assentos no parlamento; onde a violência de gênero e a misoginia agridem e matam mulheres diariamente; onde os estereótipos e os estigmas de gênero geram desigualdade econômica, social e política que privilegia os homens brancos cisgênero e heterossexuais, em detrimento de uma dupla jornada e da injusta divisão sexual do trabalho ainda vivenciada pelas mulheres.
Eis porque foi extremamente simbólico, emocionante e ao mesmo tempo, por si só, revolucionário, o que aconteceu nesta última segunda-feira, dia 07 de fevereiro de 2022, no Theatro Municipal de São Paulo: tal qual na Semana da Arte Moderna de 1922, contamos com a exposição de obras de artistas plásticas, com música ao piano e canto, com a leitura de manifesto e declamação de poesia. Porém, ao contrário de cem anos atrás, dessa vez as mulheres foram maioria e a grande pauta da noite foi a defesa da igualdade de gênero e da paridade, com todos os seus contornos interseccionais.
Com a curadoria de Vera Simões, da Galeria VerArte, foram expostas obras em homenagem aos modernistas, de autoria de onze mulheres: Antonietta Tordino, Dóris Geraldi, Fernanda Fernandes, Gaby Alves, Leila Lagonegro, Malu Mesquita, Patricia Lopes, Rose Rossetti, Silvana LaCreta Ravena, Vera Pimenta, Zetti Neuhaus e Zina Kossoy; e do fotógrafo Máximo Hernández.
Todas as expositoras foram homenageadas com medalhas e a artista plástica nonagenária Antonietta Tordino, que chegou a participar do movimento modernista, emocionou-se ao falar sobre a simbologia de estar no Theatro Municipal, celebrando os 100 anos da Semana da Arte Moderna, tendo sua filha, Cecília de Arruda, como cerimonialista do evento.
Ao piano, Cristiane Jordão Santana interpretou músicas de Villa Lobos. Tivemos também a belíssima voz da cantora lírica Natália Sabrina Assunção Lago, que cantou o Hino Nacional diante das escadarias internas do Theatro Municipal.
Celeste Leite dos Santos recitou o poema de sua autoria “As Sapas”, uma paráfrase ao poema “Os Sapos”, do modernista Manuel Bandeira, declamado por Ronald de Carvalho durante a Semana de Arte Moderna de 1922. Contudo, em sua versão, Celeste remeteu-se à misoginia e à violência de gênero sofrida pelas mulheres.
A mim coube a leitura do manifesto elaborado pelo Grupo “Brasil Mulheres: Juntas pela Democracia”, de cuja construção participei ao lado de mais de trinta mulheres, sob iniciativa de Marta Suplicy, clamando por mais direitos para as mulheres e igualdade de gênero e por meio do qual levantamos dezenove pontos primordiais que desejamos que sejam levados em conta, debatidos e futuramente compromissados em um grande pacto nacional, de forma interseccional, antirracista e considerando as múltiplas diferenças e desigualdades entre mulheres.
Entre as mulheres que construíram o manifesto ao meu lado, estavam presentes no Theatro Municipal também a filósofa e escritora Djamila Ribeiro; a secretária municipal de Cultura e embaixadora da Pan-African Council, Aline Torres; e a escritora e multi-artista Preta Ferreira; todas elas homenageadas naquela noite por seu trabalho e apoio à arte e à cultura no Brasil.
Aliás, dentre as demais pessoas que receberam homenagens, a maioria delas, eram mulheres, como a artista plástica e primeira-dama do Estado de São Paulo, Bia Dória; a colecionadora de artes e fundadora da Esfera Mulheres, Ana Lúcia Suplicy Funaro Camargo; e a primeira-dama do município de São Paulo, Regina Carnovale Nunes.
Vale lembrar que, dentro da programação da noite, houve também a leitura de mais um manifesto em celebração ao centenário da Semana da Arte Moderna, que coube ao advogado Davi Lago, marido da cantoria lírica Natália Sabrina Assunção Lago.
O cerimonial foi encerrado de forma muito simbólica, com Preta Ferreira, acompanhada de Emilio Moreira no violão, cantando, para uma plateia emocionada, a música de sua autoria “Minha Carne”, que remete à escravidão, ao racismo, e aos estigmas carregados especialmente pelas mulheres negras.
Em meio aos 250 convidados presentes, destaque para autoridades, como o Secretário Estadual de Justiça e Cidadania, Fernando José da Costa, o deputado estadual Emidio de Souza, o cônsul-geral da Itália, Domenico Fornara, acompanhado da vice-consul Livia Satullo; a presidente do sindicato de delegados da polícia civil do Estado de São Paulo, Raquel Gallinati; a presidente do sindicato da Polícia Federal do Estado de São Paulo, Susanna do Val; e a Vice-Presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, desembargadora Consuelo Yoshida. Estavam também presentes a chef Bela Gil; a socióloga Rosangela Silva, esposa do ex-presidente Lula; Cláudia Angélica Martinez, do She Invest; e o empresário João Camargo, presidente da Esfera Brasil.
Ainda como um marco comemorativo do centenário da Semana de Arte Moderna, a Galeria VerArte vai promover uma série de exposições por São Paulo, entre os dias 01 e 28 de fevereiro, com destaque para os murais na Fachada do Conjunto Nacional e em estações do Metrô.
Celeste Leite dos Santos e eu pretendemos expandir os manifestos pela igualdade de gênero e de combate à violência contra as mulheres, com a promoção de seminários, encontros e intervenções com a temática, porque, como já escrevi aqui antes, lamentavelmente, ainda em pleno século XXI, ser mulher ainda é um ato revolucionário e de resistência! E seguindo o que já conclamava nossa musa modernista Pagu: “Esse crime, esse crime sagrado de ser divergente, nós o cometeremos sempre”!
Por fim, antes de compartilhar o poema “As Sapas”, de Celeste Leite dos Santos, gostaria de finalizar o presente texto com um pedido às leitoras e leitores, para que adiram ao nosso manifesto Brasil Mulheres 2022, disponível no seguinte link: https://brasilmulheres.com.br/ , para que leiam as obras de Djamila Ribeiro, especialmente “Quem tem Medo do Feminismo Negro?”, e para que ouçam as músicas de Preta Ferreira ou leiam o seu livro autobiográfico “Minha Carne: diário de uma Prisão”.
AS SAPAS (Celeste Leite, 2022)
Caminhando graciosa,
Sai da névoa,
Em silêncio, a sapa-andarilha.
A luz a resseca.
Dores profundas a cercam,
Recorda o sapo-boi:
- “Você foi porque quis!”
- “Não fui”- “Foi”- “Não fui”.
A sapa-tanoeira,
Condoída com o veneno,
Suspira: “Não é paranoia.
- Nem mistificação”.
Vede como Pasárgada,
Onde comandam os sapos-cururu!
Que arte! E nunca rimam
Com o outro sexo.
A nossa trova é boa,
Separa o joio.
Faz rimas com
Redes de apoio.
Vai por noventa anos
Que nos foi dada a norma:
Reduziu sem danos
A voluntariedade ao voto.
Clame a saparia
Anuncie o certo:
- “Nada de espinhos ou veneno
- A nossa melodia é rap”.
Retruca o sapo-cururu,
Da beira do rio....:
- “Nada de rupturas ou protestos
- “A nova regra já foi dada”.
Clama em acinte,
O sapo-tanoeiro:
- “O comando da Nação é Lavor de joalheiro.
- “Ou bem de hierarquia”.
Tudo quanto a define,
Tudo quanto é vário,
Obedece ao princípio,
Desde o início.
Outras, sapas-pipas,
Falam em protesto,
(um mal que todos conhecem)
- “Não define! – “Define!”- “Não define”
Longe dessa grita,
Lá onde mais surge,
A luz no horizonte,
Veste o manto da paridade;
Lá, talhada no mundo,
Resistindo as adversidades,
Andarilha reconstruída,
Batalhadora que é
Une pela dor,
As diferentes nações,
Longe do conforto,
Da beira do rio...