Aspectos polêmicos sobre as análises das prestações de contas nas eleições de 2020

Aspectos polêmicos sobre as análises das prestações de contas nas eleições de 2020

Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, escrito por Gabriela Araujo em co-autoria com Roberto Beijato Jr, em 05/02/2021. Acesse o original no site do Conjur aqui.

Em 2017 foi editada a Emenda Constitucional nº 97, que teve entre seus principais objetivos pôr fim ao modelo de coligações partidárias nas eleições proporcionais, dando nova redação ao parágrafo 1º, do art. 17, da Constituição Federal[1], reservando, contudo, a possibilidade de coligações nas eleições majoritárias, permanecendo estas, portanto, incólumes.

As coligações, quando constituídas, formam, na circunscrição do pleito em que celebradas, um "consórcio de partidos políticos formado com o propósito de atuação conjunta e cooperativa na disputa eleitoral".[2] Isto é, para os fins daquele pleito em específico é como se os partidos integrantes da coligação formassem um partido único, conforme art. 6º da Lei 9.504/1997.

Justamente em virtude da unidade dos partidos que optam por integrar uma coligação é que, por exemplo, de longa data se compreende que os partidos coligados não detêm legitimidade processual para ajuizamento autônomo de quaisquer ações relativas ao pleito no qual se dera a coligação.[3]

Constituindo as coligações a mesma função de um partido único na circunscrição do pleito, o que se tinha é que os votos angariados pela coligação proporcional, quando esta ainda era permitida por lei, eram contabilizados em conjunto e, a partir do quociente eleitoral, apurada a quantidade de cadeiras conquistadas pelas agremiações, eram considerados eleitos os candidatos mais bem votados de qualquer um dos partidos que integrassem a coligação.

Com a proibição das coligações proporcionais, que por expressa disposição do art. 2º da EC 97, se deu a partir das eleições de 2020, cada partido contará, em eleições para vereadores e deputados, tão somente, com os votos de candidatos que integrem a sua própria legenda e a hipótese de “puxadores de voto”, ou seja, a existência de candidatos muito bem votados que consigam aumentar consideravelmente o quociente partidário e o número de vagas a que tenha direito determinado partido, somente beneficiará candidatos do mesmo partido do “puxador de voto”, ao contrário do que ocorria antes, quando as vagas poderiam ser distribuídas para candidatos de partidos distintos.

Esta junção de esforços com o fito de aprimorar as chances dos partidos conquistarem lugares no parlamento era o cerne das coligações nas chapas proporcionais, mas por outro lado levantava um grande debate sobre a confusão e descontentamento provocados nos eleitores, que muitas vezes eram surpreendidos por coligações formadas por partidos de programas políticos e ideais completamente distintos, aliados por mera estratégia eleitoral, o que permitia que um cidadão que votasse em um partido com o qual tivesse concordância ideológica pudesse ter seu voto aproveitado por um partido com o qual discordasse programaticamente.  

Ocorre que a forma de cômputo de votos no sistema proporcional de “lista aberta”, utilizado no Brasil para o preenchimento de vagas no Poder Legislativo (exceto para o Senado), conforme explicado acima, gera de fato uma disfunção e o próprio enfraquecimento da identidade dos partidos perante a sociedade, o que não acontece no sistema majoritário, aplicado para o preenchimento de vagas no Poder Executivo e no Senado Federal, em que os votos dados a determinado candidato não poderão ser aproveitados por outro candidato, exceto seu próprio vice ou suplente (no caso do Senado).

Em uma coligação de partidos formada em torno de uma chapa majoritária, e utilizando o exemplo das eleições municipais, diversos partidos distintos apoiarão um único candidato a Prefeito, e seus candidatos a vereadores deverão pedir votos e fazer campanha e propaganda eleitoral para esse específico candidato a prefeito: o eleitor digitará na urna o número do partido do candidato a Prefeito da coligação e saberá que esse voto aproveitará tão somente ao candidato escolhido e seu próprio partido, não há possibilidade desse voto ser aproveitado por mais ninguém, ainda que a pessoa que tenha pedido tal voto seja um candidato a vereador de partido diverso – pertencente à coligação majoritária, porém.

No entanto, como tudo o que envolve propaganda eleitoral também enseja a necessidade de arrecadação e gastos eleitorais, o que se tem observado é que em muitos municípios a análise das prestações de contas de candidatos a prefeito nas Eleições 2020 tem sido realizada como se todas as coligações estivessem proibidas, inclusive a coligação majoritária.

A Res. 23.607/2019 do TSE, que regulamenta a prestação de contas para as eleições de 2020, estabelece, em seu art. 17, no que tange aos recursos oriundos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), a vedação de repasses e doações entre candidatos que não integrem o mesmo partido ou não pertençam à mesma coligação:

Art. 17. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) será disponibilizado pelo Tesouro Nacional ao Tribunal Superior Eleitoral e distribuído aos diretórios nacionais dos partidos políticos na forma disciplinada pelo Tribunal Superior Eleitoral (Lei nº 9.504/1997, art. 16-C, § 2º).

§ 1º Inexistindo candidatura própria ou em coligação na circunscrição, é vedado o repasse dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para outros partidos políticos ou candidaturas desses mesmos partidos.

§ 2º É vedado o repasse de recursos do FEFC, dentro ou fora da circunscrição, por partidos políticos ou candidatos:

I - não pertencentes à mesma coligação; e/ou

II - não coligados.

Como o dispositivo acima transcrito proíbe o repasse de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) entre partidos políticos ou candidatos não coligados, e considerando a extinção das coligações nas eleições proporcionais (EC 97/2017) a partir das eleições de 2020, em algumas localidades tem-se encampado o errôneo entendimento de que deveriam ser consideradas como ilícitas as eventuais doações, ainda que estimadas, entre a campanha do candidato à majoritária em favor de campanha de candidato da proporcional por partido que integre sua coligação,  tendo conduzido a pareceres pela desaprovação ou aprovação com ressalvas, de contas de candidatos a majoritária em que este expediente ocorreu.

Temos aqui, portanto, e com a devida vênia, uma interpretação que ignora o real significado das coligações e sua persistência nas eleições majoritárias. Ora, integrando o partido do candidato à majoritária coligação com outros partidos, fato é que para aquele pleito, tais partidos exercem a função de um partido único, de modo que uma doação estimada do candidato a majoritária para o proporcional que integre sua coligação será considerada tal como se fosse uma doação para um integrante de seu próprio partido, nada conflitando com o já transcrito parágrafo 2º, do art. 17 da Res. 23.607/2019, já que estamos diante, efetivamente, de partidos coligados.

A prosperar o entendimento de alguns setores técnicos, teríamos, como consequência, o fato de que nenhum candidato a proporcional, no Brasil inteiro, poderia ter materiais de campanha financiados pelo FEFC em conjunto com o candidato da majoritária de sua coligação, o que não apenas contraria a lógica do pleito, como a mens legis da EC 97/2017, quando vedou as coligações nas eleições proporcionais. Ademais, prosperando este entendimento, a desaprovação de contas nos mais de 5.500 municípios brasileiros seria generalizada, na medida em que é da praxis eleitoral - não vedada pela Res. 23.607/2019 - que os materiais de campanha dos candidatos às eleições proporcionais seja acompanhado pelo candidato à majoritária.

Os recursos oriundos do FEFC destinam-se a fazer frente a gastos de campanha, podendo ser utilizados para confecção de materiais impressos, por exemplo. Suponhamos que o partido de candidato à majoritária em um determinado município tenha se coligado a outros 4 partidos para aquele mesmo pleito. Como vimos, as coligações para fins das eleições majoritárias permanecem intocadas. Por óbvio, o cargo da majoritária, como o de Prefeito, no caso das eleições de 2020, é único e, portanto, tem-se em cada pleito uma única vaga para cada cargo, de modo que o concorrente a este cargo será de um partido e os demais partidos coligados terão candidatos próprios na eleição proporcional, apoiando o candidato majoritário que é de outro partido.

Pois bem, imaginemos que o candidato a majoritária é do partido "X", o qual integra uma coligação com os partidos "W", "Y" e "Z". Extremamente comum e da própria prática eleitoral é que os materiais impressos de campanha, tais como santinhos, adesivos, etc., dos candidatos a proporcional venha com menção, foto e número de campanha do candidato a majoritária do partido "X", já que entre tais partidos existe uma coligação, então, portanto, a relação entre eles e a Justiça Eleitoral, bem como para os fins contábeis em questão, é como se formassem um partido único, no que tange àquele pleito e a sua circunscrição.   

Igualmente usual que a campanha do candidato à majoritária faça frente às despesas de tais materiais impressos nos quais figura o candidato à majoritária ao lado de candidatos da proporcional, de modo que a candidatura de um apoie a do outro, como já dito alhures. Aliás, nesta hipótese, por força do art. 38, §2º da Lei 9.504/97 é possível que a despesa seja lançada apenas na prestação de contas da campanha que efetivamente arcou com os custos, sendo desnecessário o seu lançamento nas prestações dos candidatos à proporcional que eventualmente não despenderam com os materiais[4]. Trata-se, assim, de uma doação que, a exemplo daquelas mencionadas no parágrafo 6º, do art. 28 da Lei 9.504/97, é dispensada de ser apresentada na prestação de contas por expressa previsão legal.

Verifica-se, entretanto, uma certa confusão conceitual, em casos como os exemplificados acima, quando alguns setores técnicos invocam a proibição das coligações proporcionais ao apontar a ocorrência de eventuais doações ilícitas, posto que estamos tratando aqui de operações ocorridas estritamente no âmbito das coligações majoritárias, absolutamente legítimas, inclusive sem qualquer intercorrência com o Ministério Público ou juízos responsáveis pela fiscalização da propaganda eleitoral, pelos quais passaram a análise de milhares de “dobradas” entre candidatos proporcionais e majoritários de partidos distintos.

O Juízo da 201ª Zona Eleitoral de Itapecerica da Serra/SP (prestação de contas eleitoral nº 0601086-06.2020.6.26.0201), em resposta a apontamento do setor técnico que apontava irregularidade em doações efetuadas por candidato a prefeito para candidatos à vereança de partidos da sua coligação na majoritária, ao nosso ver, foi preciso em sua decisão:

“Ocorre que a Resolução 23.607/2019 do TSE, que regulamenta a prestação de contas eleitorais, não apresenta VEDAÇÃO EXPRESSA à repartição desses recursos entre candidatos da mesma coligação, mas de partidos diferentes. Em uma coligação para o cargo majoritário, impossível seria a existência de mais de um candidato a prefeito, cuja vaga por município é única.

Some-se a isso o fato de que a Constituição Federal, em seu art. 17, §1º, proíbe coligação nas eleições proporcionais, o que conduz à interpretação de que a referida Resolução do TSE só poderia ser aplicada às coligações para as eleições majoritárias. Se o partido do candidato a Vereador encontra-se coligado ao do candidato a Prefeito que recebeu FEFC, não se depreende do art. 17 da Resolução que o compartilhamento de recursos estaria proibido.

O regramento do art. 17 da Resolução nº 23.607/2019 do TSE é recente e não há posicionamento jurisprudencial consolidado a seu respeito até o momento. Sendo assim, entendo temerária a postura de sancionar o candidato recebedor de FEFC pelo compartilhamento dessa verba com candidatos a cargo e partido distintos no mesmo pleito, mas coligados formalmente de maneira regular.”

Ao proibir as coligações nas eleições proporcionais, a EC 97/2017 veda o repasse, por exemplo, entre candidatos ao cargo de vereador que integrem partido diverso, já que entre estes sim as coligações foram extintas. Para os cargos majoritários e as relações entre estes e os candidatos às proporcionais, as coligações persistem de modo intocável.

Certamente esta questão subirá aos tribunais, pelo que aguardaremos a pacificação jurisprudencial do tema. Nos parece, contudo, evidente, evidentíssimo, aliás, que a permanência das coligações para as eleições majoritárias demandam que se considere, nas relações entre o candidato ao cargo majoritário e os candidatos a cargos proporcionais de partidos que façam parte da coligação, os efeitos da coligação, tratando-a como se fosse um partido único no que tange às questões atinentes ao pleito para o qual fora celebrada.

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[1] Art. 17. (...) § 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.

[2] GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 131.

[3]A única exceção aqui é para ação que vise discutir a validade jurídica da própria formação da coligação, conforme art. 6º, §4º da Lei 9.504/97 e inúmeros precedentes no âmbito do C. TSE. Conferir, entre outros: AgRg no Respe nº 365-33.2012.6.13.0044. Relatora Ministra Nancy Andrighi, j. em 13.11.2012

[4] Art. 38.(...) § 2o  Quando o material impresso veicular propaganda conjunta de diversos candidatos, os gastos relativos a cada um deles deverão constar na respectiva prestação de contas, ou apenas naquela relativa ao que houver arcado com os custos. (grifos nossos).

 

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