A nova lei para combater a violência política contra a mulher unida à Lei Maria da Penha
Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna do Fausto Macedo, em 30 de agosto de 2021 e disponível aqui.
Gabriela Shizue Soares de Araujo[1]
Marcelo Santiago de Padua Andrade[2]
No início de agosto de 2021 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº 14.192, que se destina a prevenir, reprimir e combater a violência política contra mulheres, trazendo novas regras para esse fim e promovendo alterações no Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965), na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/1995) e na Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997).
Com amparo na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ambas adotadas desde 1994 pelo Brasil, esta importante lei teve como objetivo equiparar o Brasil a países como Argentina, México e Bolívia (que já tinham legislação própria sobre violência política de gênero) e trouxe a definição legal do que é considerado violência política contra a mulher, qualificando como tal toda ação, conduta ou omissão que tenha a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos das mulheres, bem como qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de direitos e suas liberdades políticas fundamentais, em virtude de seu gênero (art. 3º da Lei 14.192/2021).
Importa notar, todavia, que o reconhecimento legal da existência reprovável de práticas de violência política contra as mulheres e correspondentes sanções, no Brasil, ficaram muito aquém do modelo legislativo boliviano e da própria “Lei Modelo Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra as Mulheres na Vida Política[3]”, instituída em 2016 pela Comissão Interamericana de Mulheres (CIM), no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), a qual prevê um extenso rol de obrigações para partidos políticos, instituições e órgãos públicos, e também estabelece expressamente que a violência contra as mulheres na vida política pode acontecer inclusive dentro da vida doméstica e nas relações interpessoais, e inclui, entre outras, variadas formas de violência física, sexual, psicológica, moral, econômica ou simbólica.
De qualquer forma, apesar de deficiente em relação aos parâmetros internacionais, dentre as bem-vindas novidades protetivas às mulheres na política, introduzidas pela lei brasileira, está o reconhecimento do caráter absolutamente ilícito de qualquer tipo de propaganda que deprecie a condição de mulher ou estimule sua discriminação em razão do gênero, ou em relação à sua cor, raça ou etnia (art. 243, X do Código Eleitoral).
No plano do Direito Penal, o Código Eleitoral passou a indicar os episódios que envolvam menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, como causas de aumento de pena para os crimes de divulgação de fato sabidamente inverídico, calúnia, difamação e injúria (art. 323, § 2º, II e art. 327, IV do Código Eleitoral), e, além disso, houve a criação do tipo penal do art. 326-B, que tipifica a conduta de “assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo”.
Na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95), a alteração se deu no art. 15, X, com a inserção da obrigação legal de que do Estatuto do Partido Político constem normas sobre prevenção, repressão e combate à violência política contra a mulher e, na Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997), por seu turno, inseriu-se norma (art. 46, II) que estabelece a obrigação de que, nas eleições proporcionais, os debates em Rádio e TV obedeçam à proporção de homens e mulheres estabelecida no § 3º do art. 10 desta Lei (cota mínima de 30% de gênero).
Mas uma disposição da Lei nº 14.192/2021 que é de suma importância é aquela contida no art. 2º, parágrafo único, que prescreve que “As autoridades competentes priorizarão o imediato exercício do direito violado, conferindo especial importância às declarações da vítima e aos elementos indiciários”.
Na sua parte final, a regra leva em consideração a situação de vulnerabilidade e hipossuficiência das mulheres vítimas de violência (incluindo-se aí a política) para reconhecer que suas declarações e os elementos indiciários terão especial importância na formação da convicção acerca da ocorrência dos ilícitos, especialmente porque estes, no mais das vezes, ocorrem por meio de atos praticados clandestinamente e sem a presença de testemunhas.
O aspecto mais relevante desse dispositivo, contudo, vale dizer, está na parte inicial do art. 2º, parágrafo único da Lei nº 14.192/2021, justamente no ponto em que preceitua que as autoridades competentes deverão priorizar o imediato exercício do direito violado.
Assim, para priorizar o imediato exercício dos direitos políticos das mulheres sob ameaça ou violados, será permitido o emprego de todos os meios e técnicas processuais, tais como tutelas inibitórias (destinadas a impedir a prática ou a continuidade do ilícito), tutelas de remoção de ilícito (que se relaciona com a remoção dos efeitos de uma ação ilícita que já ocorreu), a imposição de obrigações de toda natureza (tais como de fazer e não fazer) e quaisquer medidas de enforcement que se fizerem úteis ou necessárias para a obediência da lei e a fruição do direito que ela quer garantir.
Há aqui a expressão de uma visão moderna do direito fundamental de ação que contempla, em essência, um direito público subjetivo a procedimentos e técnicas capazes de dar efetividade ao direito material, cabendo ao julgador, se necessário for, conformar e adaptar procedimentos considerando-se a realidade social e a natureza do direito material a fim de fazer com que a tutela jurisdicional produza todos os efeitos jurídicos que dela se espera, sem nenhuma diminuição.
E nesse contexto em que se pode assentir que existe um dever de máxima eficiência na atuação de todas as autoridades na luta contra a violência política de gênero, é intuitivo perquirir que seria possível afirmar a existência de um microssistema de tutela das mulheres contra todo tipo de violência, composto especialmente pela intersecção da Lei nº 14.192/2021 e da Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha.
Primeiro porque ambas as leis (como fica claro pela Justificativa da Lei nº 14.192/2021 e pelo art. 1º da Lei nº 11.340/2006) são derivações da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. E ainda que a Lei Maria da Penha se destine precipuamente a proteger mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, não há dúvidas de que há uma relação estreita entre os bens jurídicos que as duas leis buscam tutelar: basicamente a dignidade, a liberdade, a igualdade, a plenitude existencial e o bem-estar físico e psíquico das mulheres.
O art. 7º da Lei nº 11.340/2006, ao tipificar os atos de violência doméstica e familiar contra as mulheres, serve-se da locução entre outras, deixando claro com isso que as hipóteses ali indicadas são meramente exemplificativas e que a incidência daquelas normas tende a se expandir. E o já mencionado art. 2º da Lei nº 14.192/2021, por sua vez, destaca a necessidade de atuação do Poder Público de forma a buscar garantir às vítimas de qualquer violência política o imediato exercício do direito violado, não existindo uma tipicidade fechada quanto aos mecanismos cabíveis para se possibilitar à mulher o efetivo gozo e fruição dos direitos garantidos pela lei.
A interpretação sistemática e teleológica dessas normas, portanto, conduz à conclusão de que são cabíveis as aplicações de medidas protetivas da Lei Maria da Penha para casos de violência política de gênero. Aliás, enquanto o Poder Legislativo não providencia um modelo único sistematizado que abarque a proteção contra todas as formas de violência contra a mulher, tal opção interpretativa será o mais próximo que se poderá chegar, por ora, da Lei Modelo Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra as Mulheres na Vida Política.
Assim, imaginando-se a situação de uma mulher que venha a ser vítima de assédio político (art. 326-B do Código Eleitoral), poderá ser solicitada e deferida - sempre a depender da gravidade e das peculiaridades do caso concreto - medida protetiva similar àquela indicada no art. 22, III, a da Lei 11.340/2006, determinando-se com isso que o agressor mantenha determinada distância da vítima.
É certo que uma medida como esta poderá ter impacto (relevante) na cadência de uma campanha eleitoral ou da própria atividade do Legislativo ou do Executivo, devendo justamente por isso ser adotada com os devidos cuidados e reflexões, mas, toda vez que colocados os prós e contras na balança e esta pender para o lado da necessidade da medida, terá a autoridade competente o dever de adotá-la.
Por fim, é importante anotar que tramita nesse instante na Câmara dos Deputados o Projeto de Novo Código Eleitoral (PLP nº 112/2021) que, substancialmente, assegura os direitos indicados pela Lei nº 14.122/2021 (pela inserção de regras explícitas nesse sentido em seu corpo) ao mesmo tempo em que revoga expressamente essa recentíssima lei (art. 905). Quando o referido Projeto trata do Crime de Violência Política Contra Mulheres (art. 885), faz alusão ao especial valor probatório às declarações da vítima e às provas indiciárias; mas nenhuma disposição do Projeto que tramita repete a parte inicial do art. 2º, parágrafo único da Lei nº 14.122/2021, que indica a necessidade de se priorizar o imediato exercício do direito violado (em matéria de violência política contra mulheres).
É claro que essa omissão não é suficiente para invalidar a conclusão quanto à existência de um microssistema de tutela das mulheres contra todo tipo de violência, mas nos parece que seria importante que o Novo Código Eleitoral repetisse aquele conteúdo como forma de marcar posição e não permitir que nenhum centímetro das conquistas obtidas pelas mulheres na luta pelo merecido protagonismo na vida política nacional seja perdido.
[1] Advogada e professora universitária, Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP, Coordenadora Adjunta do Observatório de Candidaturas Femininas da OAB/SP.
[2] Advogado, Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP, membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SP.
[3] OAS. Comisión Interamericana de Mujeres. Mecanismo de Seguimiento de la Convención de Belém do Pará (MESECVI). Ley Modelo Interamericana para Prevenir, Sancionar y Erradicar la Violencia contra las Mujeres en la Vida Politica. Disponível em: https://www.oas.org/es/mesecvi/docs/LeyModeloViolenciaPolitica-ES.pdf