Do golpe ao negacionismo: o que aconteceu com a memória do Brasil?

Do golpe ao negacionismo: o que aconteceu com a memória do Brasil?

Artigo publicado originalmente no Estadão, no Blog do Fausto Macedo, em 01/04/2020, em co-autoria com o professor Flávio Leão Bastos Pereira. Para ler o artigo direto no Estadão, clique aqui.

O mês de março marca duas datas que simbolizaram um grande retrocesso na história dos povos latino-americanos no que tange à busca pela consolidação do regime democrático no continente, o que até hoje gera consequências no dia a dia de seus cidadãos.

No Brasil, em 31 de março de 1964, iniciava-se o movimento golpista articulado entre parte das Forças Armadas, empresariado, setores da sociedade civil e apoio dos Estados Unidos, especialmente por meio da atuação em território brasileiro do embaixador Lincoln Gordon. A deposição forçada do presidente democraticamente eleito resultou numa ditadura militar que perduraria por vinte e um anos, levando até mesmo setores que apoiaram a derrubada do governo Jango à mudança de posição diante das sistemáticas violações dos direitos humanos e crimes contra a humanidade cometidas durante o regime.

Doze anos após, em 24 de março de 1976, era instaurado na Argentina o regime ditatorial denominado “projeto de reorganização nacional”, que levaria o país a um dos mais cruéis regimes da América do Sul, dentre outros, com cerca de trinta mil desaparecidos.

Fato é que a ditadura brasileira inspirou e se articulou com os regimes de exceção posteriormente instaurados no continente, como se pode comprovar inclusive pela famigerada Operação Condor, fruto de um projeto conjunto entre as ditaduras então vigentes na Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai e que seria a causa de atentados terroristas e assassinatos de opositores até mesmo no exterior, como foi o caso do opositor chileno ao regime de Pinochet, Orlando Letelier del Solar, político e diplomata que morreu em atentado cometido pela polícia secreta de Pinochet (DINA) em Washington, a 21 de setembro de 1976.

É possível inferir, assim, que o golpe de 1964 no Brasil foi também inspiração para a consolidação do terrorismo de Estado na América do Sul, posto que resultou em um regime político ditatorial que estabeleceu a censura; retirou da legislação a possibilidade de impetração do Habeas Corpus em casos considerados típicos de crimes políticos; sistematizou a tortura, os assassinatos e os desaparecimentos forçados; impôs aos povos indígenas verdadeiro genocídio - como comprova o denominado Relatório Figueiredo, disponível na página oficial do Ministério Público Federal[1]; entre outras violências de Estado.

De fato, para além da ruptura com o respeito ao pluralismo político e cultural, o regime legou ainda a cultura de violência de Estado que até hoje perdura especialmente sobre as parcelas pobres, negras e periféricas brasileiras, além das minorias, como os povos indígenas, apenas para citarmos um exemplo. Herdamos, mesmo após a redemocratização, e sob a vigência da garantista Constituição de 1988, diversos mecanismos – inclusive estruturais – que remetem ao violento estado de exceção do antigo regime.

Isso se deve muito à forma como o país optou por lidar com seu passado recente. Embora avanços tenham sido conquistados, como os brilhantes trabalhos desenvolvidos pela Comissão de Anistia até o ano de 2019 e também pela Comissão Nacional da Verdade, além das comissões estaduais e municipais, muito pouco se avançou, por outro lado, no que tange às demais fases da justiça de transição, especialmente com relação à punição dos perpetradores de crimes contra a humanidade e crime de genocídio contra os povos indígenas.

Ora, tratamos nesta seara da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, portanto de normas de direito internacional de jus cogens, isto é, impostas a todos os Estados independentemente de adesão a qualquer tratado internacional, compromisso tal assumido pelas Nações Unidas após 1945, diante das barbáries nazi-fascistas e que inspiraram posteriores regimes terroristas de Estado.

O Estado brasileiro, ao contrário de outros Estados sul-americanos, tem se negado a revisitar a memória das violências praticadas pela ditadura militar, com a devida punição dos torturadores, construção de memoriais relevantes e debate público amplo do assunto – quase como se ainda estivesse devendo algo à “transição negociada” do regime.

A despeito dessa resistência, há que se destacar a postura exemplar do Ministério Público Federal, que prossegue na efetivação de denúncias contra torturadores, no país, especialmente após as decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos Gomes Lund e outros vs. Brasil e Wladimir Herzog e outros vs. Brasil e que reconheceram que os crimes contra a humanidade cometidos pelo regime ditatorial estabelecido em 64 são imprescritíveis e exigem sua investigação e punição.

Infelizmente, verifica-se que os obstáculos presentes no caso brasileiro para efetivação das etapas de uma justiça de transição eficaz vêm gerando posicionamentos negacionistas com relação à ditadura militar e favorecendo a divulgação de discursos que não encontram eco na comprovação histórica, assim como ocorre em relação ao negacionismo de outras grandes tragédias da humanidade, como os genocídios ocorridos ao longo do século XX – há quem negue, pasmem, o holocausto do povo judeu na Europa! - ou mesmo em relação à escravidão dos povos africanos.

Decorridos 56 anos do golpe de 1964, os discursos negacionistas encontram nas novas gerações – carentes de um enfrentamento correto da memória do que foi a ditadura militar no país - terreno fértil para a propagação de falsidades históricas que não encontram amparo nas comprovações arqueológicas, documentais, testemunhais, econômicas e sociais.

Mas, que não se engane: referidos discursos têm por escopo objetivos de cunho ideológico e extremistas, que normalmente buscam enfraquecer o regime democrático, apesar de valerem-se de suas próprias vias e conquistas.

A situação é agravada quando governos adotam tais discursos, incapazes de distinguir entre questões político-partidárias e civilizacionais.  

É o que se verificou lamentavelmente em nota oficial do Ministério da Defesa do Brasil, publicada na sua página oficial, denominada “Ordem do dia Alusiva ao 31 de março de 1964[2]”, em que se faz referência ao golpe civil-empresarial-militar como se tivesse sido um “movimento de 1964”, e mais, afirma-se que tal “movimento” teria sido um “marco para a democracia brasileira”.

A nota, assinada pessoalmente pelo Ministro de Estado da Defesa, busca justificar e ainda exaltar os vinte e um anos de ditadura militar e retrocesso democrático vividos no país, com o argumento negacionista e falacioso de que o “entendimento de fatos históricos apenas faz sentido quando apreciados no contexto em que se encontram inseridos”. Seria o caso de se questionar qual o contexto que teria o condão de justificar torturas e estupros, por exemplo, cometidos nos porões da ditadura, reconhecendo-se que o direito internacional ao qual o Estado brasileiro adere desde as primeiras Leis de Genebra, incrimina mesmo combatentes que cometam violações das leis e costumes de guerra.

O que importa, para o negacionista ou revisionista dos fatos históricos - que não raro pode coincidir com um verdadeiro fascista -, não são os fatos, mas a versão que ele precisa dar aos fatos para poder impor a sua vontade e alcançar objetivos de cunho político-ideológicos. Aqui, também, a verdade é a primeira a ser sacrificada.

É o que vivemos hoje em diversas outras searas, com a ampla disseminação de “fake news” e negação meramente argumentativa – para não dizer autoritária - de dados históricos e científicos: temos os terraplanistas, os adeptos do movimento “anti-vacina” ou da “cura gay” e, ainda, aqueles que acreditam que a pandemia do coronavírus é apenas uma “gripezinha”.

Eis porque os lemas “relembrar para jamais esquecer”, “memória, verdade e justiça”, são tão reiterados por pensadores (como George Santayana); intelectuais (como William Faulkner); por juristas; pelos militantes de Direitos Humanos e acadêmicos de distintas áreas e searas do conhecimento. De fato, se não conseguirmos lidar com a nossa história para relembrar as violações de direitos e liberdades sofridas, os sacrifícios e a dura luta para superar tais violações, e como nos é cara a democracia, corremos sempre o risco dos retrocessos, hoje em curso. E isso pode custar até mesmo as nossas vidas: se não pela violência estatal de forma concreta, como durante o regime de exceção instaurado em 1964, até mesmo pela negação da própria ciência. A ver.

[1] O Relatório Figueiredo, que apurou matanças de comunidades inteiras, torturas e toda sorte de crueldades praticadas contra indígenas em todo o país, durante a ditadura militar, está disponível na página eletrônica do Ministério Público Federal, no seguinte endereço: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/grupos-de-trabalho/violacao-dos-direitos-dos-povos-indigenas-e-registro-militar/relatorio-figueiredo

[2] Veja a íntegra da nota no site oficial do Ministério da Defesa: https://www.defesa.gov.br/noticias/67417-ordem-do-dia-alusiva-ao-31-de-marco

Sobre os Autores:

Flávio de Leão Bastos Pereira é Doutor e Mestre em Direito. Professor de Direitos Humanos e Direito Constitucional. Professor colaborador do Depto. de História da UNICAMP. Especialista em Genocídio pelo International Institute for Genocide and Human Rights Studies (Zoryan Institute e Universidade de Toronto - Canada). Membro do rol de especialistas da International Nuremberg Principles Academy (Alemanha). Coordenador do Núcleo Temático de Direitos Humanos da Escola Superior da Advocacia da OAB/SP. Professor convidado das Escolas Superiores do Ministério Público do Estado e da União. Membro do Núcleo da Memória dos Direitos Humanos da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. Advogado.

Gabriela Araujo é Mestre e Doutoranda em Direito Constitucional pela PUC-SP. Professora de Direitos Humanos e de Direito Eleitoral na Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenadora da Extensão na Escola Paulista de Direito. Coordenadora do Núcleo da Memória dos Direitos Humanos da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. Advogada.

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