74 anos depois, a mudança no papel do Brasil na Organização das Nações Unidas
Por Gabriela Shizue Soares de Araújo e Flavio de Leão Bastos Pereira[1]
O presente artigo foi publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico (Conjur), em 15 de outubro de 2019. Para acessar a versão original, no Conjur, clique aqui.
Créditos da Foto da Capa: Don Emmert / AFP
Já propunha Immanuel Kant, em 1795, em sua hoje clássica obra “À Paz Perpétua”, que a razão deveria guiar a construção de um estado de paz por meio de um pacto entre as nações, sob uma estrutura ou “liga” da paz, incumbida de garantir a sua perenidade.
Importantes fatos históricos como a Batalha de Solferino (21.6.1859), que levou à criação da Cruz Vermelha Internacional por obra do suíço Henry Dunant, e a Guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861-1865), já demonstravam, no primeiro caso, a crescente percepção de que fatos ocorridos na seara internacional exigiam atenção da comunidade internacional, bem como que, como no segundo exemplo, os conflitos armados passavam a alcançar níveis de barbarismo antes não imaginados. Some-se a tais exemplos os massacres colonialistas e o extermínio dos povos Nama e Herero na Namíbia cometido pelo império alemão (1904-1907), além do genocídio dos povos indígenas nas Américas.
A crescente espiral da violência e de extermínios em massa, que acompanhou a evolução das comunicações entre os povos e continentes, ganha novos patamares de conscientização com a 1ª Guerra Mundial, que leva à morte cerca de 20 milhões de seres humanos e o cometimento do genocídio do povo armênio, além de pavimentar o caminho para o mais trágico conflito da humanidade: a 2ª Guerra Mundial, da qual resultou algo mais que 50 milhões de mortos, além do legado histórico do Holocausto.
A exaustão das subsequentes guerras e genocídios gerou uma forte pressão para que se pensassem soluções para garantir uma convivência harmônica entre os Estados soberanos, bem como a construção de um estado de paz que não se revelasse efêmero, passageiro ou concernente apenas a duas nações beligerantes, mas relacionado a toda a comunidade internacional.
É sob tal contexto que nasce, em 24 de outubro de 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de construção da paz mundial por meio do estabelecimento de bases comuns de diálogo e para ações conjuntas garantidoras das condições necessárias à preservação da convivência pacífica entre os povos.
Com seu funcionamento garantido por meio da atuação de suas principais estruturas orgânicas (Assembleia Geral; Conselho de Segurança; Conselho de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Secretariado e Corte Internacional de Justiça), a ONU se caracteriza por ser um fórum global no qual são enfrentadas as principais questões atinentes à segurança internacional; incremento do desenvolvimento econômico, social e cultural; efetivação dos direitos humanos; fortalecimento das organizações sociais, dentre outros.
Os projetos humanitários das Nações Unidas atingem cifras surpreendentes, como por exemplo: manutenção da paz por meio de 14 missões de paz, com mais de cem mil peacekeepers; prestação de assistência humanitária e fornecimento de alimentos para cerca de 91.4 milhões de pessoas necessitadas em 83 países; garantia de vacinação para 45% das crianças no mundo, com cerca de 3 milhões de vidas salvas, anualmente; assistência a 71 milhões de refugiados das guerras, de perseguições e da fome; promoção e proteção dos direitos humanos por meio da aprovação e adesão de países a 80 tratados e declarações; coordenação de cerca de U$ 21.9 bilhões para atendimento a 131.7 milhões de necessitados; auxílio mensal a mais de 2 milhões de mulheres com complicações gestacionais, dentre outras cifras[1].
As Nações Unidas simbolizam, pois, não apenas a possibilidade de esperança para a vida de milhões de seres humanos, mas também o foro da razão, da conciliação e do entendimento mútuo, especialmente entre adversários que, a despeito de suas diferenças, celebram a razão e a inteligência.
No entanto, embora o Brasil seja um dos 51 (cinquenta e um) países fundadores da ONU, o recente discurso do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, na abertura da 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas, revelou um claro desalinhamento com os objetivos principais da organização, com ofensas e polêmicas acusações contra a imprensa nacional e estrangeira; desprezo com a proteção ambiental, negando o problema das queimadas e desmatamento da Amazônia e defendendo a lógica da exploração econômica desenfreada da floresta; retórica anti-indigenista e ofensas a uma de suas principais lideranças, o cacique Raoni; posição beligerante em relação a outros países e a ideologias diversas da sua; entre outras afirmações de tom considerado extremamente agressivo e numa direção divergente com o espírito de conciliação, paz e consenso, que sempre norteou a ONU.
Por outro lado, o genocídio negro, indígena e das populações jovens periféricas no Brasil; o racismo religioso; a letalidade policial e o sucateamento da estrutura investigativa e de inteligência; o encarceramento em massa; a necropolítica aplicada às minorias; a adoção de políticas públicas armamentistas; o incentivo de lideranças políticas à intolerância religiosa e sexual; o feminicídio e a transfobia; a recusa em se resgatar a memória, a verdade e a justiça de transição para os crimes praticados por torturadores na ditadura militar; enfim, nenhuma dessas e de outras tantas violações reiteradas a direitos humanos, e extremamente rechaçadas pela Carta das Nações Unidas, foram lembradas como uma realidade preocupante para o Brasil, no supramencionado discurso presidencial, mas ainda assim são responsáveis por colocar agora em risco a reeleição do país como membro do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, para o período de 2020 a 2022.
Não há como ignorar que, já nos seis primeiros meses de 2019, o Brasil recebeu o recorde de doze cartas de relatores da ONU reprovando sérias violações de direitos humanos no país, sem contar as dezenas de denúncias protocoladas até o momento e que aguardam apreciação, como, por exemplo, a denúncia apresentada pela OAB à Comissão de Direitos Humanos da ONU, em face da postura antidemocrática e negacionista do Estado brasileiro com relação à ditadura militar instalada no país entre 1964-85.
A situação é tão crítica que levou quase duzentas organizações da sociedade civil brasileira, apoiadas por várias organizações estrangeiras, regionais e internacionais, a se reunirem em uma coalizão ampla, para publicarem um manifesto, nesta terça-feira, dia 08/10, declarando que o Estado brasileiro não reúne as condições mínimas para pleitear a renovação da sua candidatura ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Em carta aberta, que será entregue a todos os Estados-membros da ONU, as entidades da sociedade civil criticaram a posição que vem sendo assumida pelo governo brasileiro nos espaços das Nações Unidas, citando como exemplos: o desmantelamento do Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, em violação ao Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura da ONU; o desmonte dos conselhos de participação social; o rechaço ao reconhecimento de gênero, mediante explicação de voto durante a 41ª Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos; e a “agressão ao defensor de direitos Humanos Jean Wyllys, durante a 40ª sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos”; entre tantas outras condutas consideradas ultraconservadoras e dissonantes com o espírito conciliador e aberto das Nações Unidas.
A despeito da radical mudança do Estado brasileiro na postura diplomática externa, porém, há que se reconhecer que as imensas desigualdades econômicas e sociais e a herança patriarcal, oligárquica e escravocrata sempre foram e continuam sendo os principais desafios a serem superados pelo Brasil, desde que ingressou na ONU, há 74 anos, como um de seus pioneiros fundadores, até o presente momento, em que aparentemente se verifica um retrocesso do país com relação às poucas conquistas alcançadas na promoção da universalidade dos direitos humanos.
Não há como se comprometer com a paz mundial e a igualdade entre os povos, se o país não puder firmar o mesmo compromisso dentro de seu próprio território. Enquanto assim o for, a assinatura da Carta das Nações Unidas, para o Brasil, continuará sendo uma mera declaração de intenções.
[1] Gabriela Shizue Soares de Araujo. Professora de Direitos Humanos e de Direito Eleitoral e Coordenadora da Extensão na Escola Paulista de Direito. Coordenadora do Núcleo da Memória dos Direitos Humanos da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. Mestre e Doutoranda em Direito Constitucional pela PUC-SP.
Flavio de Leão Bastos Pereira. Professor de Direitos Humanos e Direito Constitucional. Professor Colaborador do Departamento de História da UNICAMP. Coordenador do Núcleo Temático de Direitos Humanos da Escola Superior da Advocacia da OAB/SP e Co-fundador do Observatório Constitucional Latino-Americano.
[2] UNITED NATIONS. The Essencial UN. Disponível em https://www.un.org/en/essential-un/.