Uma “contrarrevolução jurídica” em evolução no Brasil

Uma “contrarrevolução jurídica” em evolução no Brasil

Como uma magistrada foi censurada pelo tribunal por garantir direitos fundamentais

Gabriela Araujo

Em 08 de fevereiro de 2017, por 15 votos a 9, em um processo administrativo proposto pelo desembargador Amaro Thomé Filho, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) decidiu aplicar a pena de censura à juíza Kenarik Boujikian, por esta ter assinado 11 decisões monocráticas com a concessão da liberdade, entre 2014 e 2015, a réus presos pelo crime de tráfico de drogas, que já haviam cumprido os tempos de pena a eles fixados.

Na ocasião, a magistrada integrava a 7ª Camara Criminal, como juíza substituta em segundo grau no tribunal paulista.

Uma das fundadoras da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e conhecida pelo seu engajamento na defesa dos direitos humanos, a juíza Boujikian foi acusada de desrespeitar o princípio da colegialidade, por ter concedido sozinha os 11 alvarás de soltura, e, segundo a acusação, por supostamente não ter agido de acordo com seu dever de cautela, ou seja, teria deixado de considerar as consequencias que suas decisões monocráticas poderiam provocar.

Note-se que, em todos os casos, as decisões foram devidamente fundamentadas e justificadas pelo excesso de prazo das prisões. Inconsequente seria a juíza se, convencida das ilegalidades das prisões, ainda assim optasse pela manutenção dessas pessoas confinadas em um sistema carcerário extremamente populoso e precário.

O dever de cautela, portanto, presume-se, deve ser medido, como corretamente o foi pela juíza Boujikian, de acordo com a preservação da dignidade humana e de seus direitos fundamentais, sendo inegável que as consequências de uma prisão prolongada ilegal seriam irreversíveis.

Ademais, todas as decisões monocráticas foram posteriormente submetidas ao colegiado do tribunal, de forma que poderiam ser eventualmente reformadas com novas expedições de mandados de prisão, o que não aconteceu nos casos concretos, já que as penas haviam sido de fato cumpridas e não havia razão para manutenção das privações de liberdade.

Tanto é assim que, em 29 de agosto de 2017, em sua 257ª Sessão Ordinária, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) absolveu a juíza Kenarik Boujikian e anulou a pena de censura dada pelo TJSP, considerando que a juíza agiu dentro do princípio do livre convencimento motivado e entendendo que eventuais irregularidades das decisões monocráticas ficariam superadas pela reapreciação dos recursos pelo órgão colegiado.

Prisões provisórias banalizadas: a evidência da “contrarrevolução jurídica” no país

A censura sofrida pela juíza Kenarik Boujikian, embora acertadamente retirada pelo CNJ, é um alerta para um movimento que vem acometendo nosso sistema judiciário: a banalização das prisões, sobretudo as provisórias, e a flexibilização dos direitos fundamentais.

Um estudo de 2014 feito pelo Ministério da Justiça coloca o Brasil como a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de 622.000 detentos.

Estamos atrás apenas da Rússia (673.800), China (1,6 milhão) e Estados Unidos (2,2 milhões). Quando se compara o número de presos com o total da população, o Brasil também está em quarto lugar, atrás da Tailândia (3º), Rússia (2º) e Estados Unidos (1º).

Essa posição no ranking mundial e a precariedade notória de nosso sistema prisional (superlotação, ausência de condições de higiene e vida dignas, ausência de medidas de ressocialização, etc) possuem relação direta com a banalização das prisões provisórias, que em dezembro de 2014 já respondiam por 40% da população carcerária brasileira, segundo o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional.

Aplicando-se o percentual de 40% sobre um universo de 622 mil detentos, obtém-se um número extremamente preocupante de quase 250 mil pessoas presas antes de serem julgadas em primeiro grau jurisdicional.

Ainda mais preocupantes são os indícios de que uma grande parte dessas pessoas poderia responder ao processo em liberdade, já que na pesquisa A Aplicação de Penas e Medidas Alternativas, realizada pelo IPEA, por demanda do DEPEN, constatou-se que 37% dos réus que responderam ao processo presos não foram condenados a pena privativa de liberdade.

Ou seja, por medidas como a adotada pelo TJSP, e também muito em razão de um retrocesso conservador observado nos últimos anos não apenas na sociedade brasileira, mas em todo o mundo (vide eleição de Trump nos EUA e o BREXIT na União Européia), os magistrados acabam optando pelas prisões provisórias, muitas vezes sem a presença dos requisitos necessários, ignorando as garantias individuais que em tese deveriam ser privilegiadas em seu discernimento.

Sob esse aspecto, o alerta de Boaventura de Sousa Santos sobre existir uma contrarrevolução jurídica em andamento é revelador.

A contrarrevolução jurídica, como bem esclarece o sociólogo em sua obra “Para uma revolução democrática da justiça1”, trata-se de uma forma de ativismo judiciário conservador que consiste em neutralizar, por via judicial, muitos dos avanços democráticos que foram conquistados nas últimas décadas pela via política.

No caso do Brasil, tais avanços foram solidificados na Constituição Federal de 1988, hoje sob real risco de extinção.

Fatores como o perfil técnico-burocrático do judiciário e o caráter elitista do direito (privilégio de poucos especialistas), são relevantes para isso, mas o Poder Judiciário não age sozinho e precisa ser provocado.

E aí entra o entendimento tácito entre as elites político-economicas e judiciais que Boaventura de Sousa Santos bem elucida: a partir de decisões judiciais concretas, essas elites são encorajadas a provocar cada vez mais o Poder Judiciário, tomando como base o ativismo conservador ou contrarrevolucionário de suas elites judiciais.

Setores progressistas ou simplesmente garantistas do Poder Judiciário, por outro lado, como é o caso da juíza Boujikian, são obrigados a assumir posições cada vez mais defensivas, sob pena até mesmo de prejudicar suas próprias carreiras.

A espetacularização dos julgamentos judiciais

Há ainda um componente adicional que colabora para essa “contrarrevolução jurídica” que é a utilização de um ativismo judicial conservador na supressão de direitos e garantias fundamentais: a influência devastadora da mídia (também integrante das elites) sobre os tribunais e o Poder Judiciário como um todo.

O problema dos julgamentos paralelos realizados pelos meios de comunicação social, sobretudo a televisão, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, é “o perigo da feitura de justiça à medida da opinião pública, ao possibilitar que a opinião pública, que a mídia ajuda a formar, ‘entre’ para a sala do tribunal podendo produzir reinterpretações do real no sentido da sua aproximação às expectativas da comunidade”.

É a espetacularização dos julgamentos judiciais, como se fosse uma forma de entretenimento, explorada irresponsavelmente por setores da mídia, que acaba gerando uma pressão das grandes massas difícil de ser ignorada pelo magistrado.

Tomemos como exemplo o recente caso do juiz que decidiu soltar um homem após este ter ejaculado em uma mulher dentro do coletivo na Avenida Paulista, em São Paulo, pois não viu ali presentes os requisitos para a prisão preventiva. Apesar dos diversos artigos e manifestações dos mais renomados juristas e criminalistas do país que entenderam a decisão do juiz como juridicamente correta, isso não impediu a instalação de um verdadeiro tribunal popular inquisitivo, que além de clamar pela imediata prisão do acusado, ainda passou a perseguir a figura pessoal do juiz.

Inicialmente insuflada por alguns setores da mídia, a situação perdeu o controle nas redes sociais, em que até manifestações em frente à casa do juiz foram convocadas, além das muitas palavras de ódio, intimidações, ameaças a ele dirigidas, talvez na intenção de fazer o magistrado “mudar de ideia”.

Embora a fundamentação da decisão de soltura possa ter sido insensível para com a vítima e talvez muito sucinta - e isso é um problema que está se espraiando no Poder Judiciário como um todo: a economia excessiva na fundamentação das decisões judiciais -, o fato é que não estavam ali presentes os requisitos necessários para uma prisão provisória, para privar o homem de um direito individual que lhe é garantido pela Constituição, mesmo supostamente sendo um criminoso: o direito à liberdade, que só pode ser restringido nos casos expressamente previstos em lei e atendendo o princípio do devido processo legal.

Nesse mesmo sentido, em artigo intitulado “Caso do ejaculador: de como o Direito nos funda e a moral nos afunda”, Lenio Luiz Streck, sempre brilhante, alerta: “(...) meu ponto é que a legitimidade para determinar a punição adequada a determinado ato pertence ao Direito, não à moral pessoal de cada um. E nem à moral da voz das ruas e das redes, as Eríneas contemporâneas. Aliás, nunca se sabe como é essa voz...”.

A atividade do magistrado, como aplicador e intérprete das normas, deve ser sempre orientada e limitada por essas próprias normas, tendo como lei e parâmetro maior a Constituição.

Sua imparcialidade e lisura ao analisar um caso concreto são fundamentais para a própria segurança do sistema, uma vez que decisões contaminadas por pressões e motivos externos ao processo não prejudicarão apenas aquele caso sob análise, mas contribuirão para que a própria noção de Estado Democrático de Direito entre em colapso.

Infelizmente, a sociedade ocidental atravessa um período de retomada do fanatismo, conservadorismo, moralismo e punitivismo que não eram vistos desde a ascensão dos regimes totalitaristas no século passado. As prisões provisórias em excesso e toleradas, ou pior, incentivadas pela opinião pública, são um grande reflexo dessa crise.

A História está aí para nos lembrar: não há instituições democráticas que resistam às repetidas medidas de exceção. E o que Boaventura de Sousa Santos chama de contrarrevolução jurídica nada mais é do que um caminho para o Estado de Exceção e para a consequente destruição de seus principais atores.

 

 

1 Santos, Boaventura de Sousa (2014), Para uma revolução democrática da justiça. Coimbra: Almedina.

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