Gabriela Araujo

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O efeito dominó do poder dispositivo de um sistema de justiça corrompido: a restrição de direitos fundamentais

A correta ou mais adequada interpretação das normas jurídicas é o grande desafio que vem  acompanhando a história evolutiva do Direito como ciência e, em pleno século XXI, ocupa atualmente o centro de uma crise institucional global, sobretudo no Brasil: ativismo judicial, crise da separação de poderes, politização do Poder Judiciário, judicialização da política, Estado de Exceção, “contrarrevolução jurídica”, Estado Pós-Democrático, são as consequências hoje atribuídas ao excesso de poderes do intérprete-juiz e do próprio “sistema” de justiça e à falta de mecanismos de controle para sua discricionariedade.

O cerne da questão reside, principalmente, na dificuldade que as teorias do direito até aqui desenvolvidas tiveram ao enfrentar a separação - ou não - entre direito e moral.

Admitir-se o direito posto, sem qualquer parâmetro crítico ou moral, pode gerar injustiças letais para a humanidade, como aconteceu com a ascensão dos regimes totalitários da primeira metade do século XX, que cometeram as maiores atrocidades amparados por um positivismo legal exegético cego.

Por outro lado, o desrespeito ao ordenamento jurídico posto em nome de uma moral ou justiça superiores também pode configurar um grande perigo, pois coloca o manejo do sistema jurídico sob o poder dispositivo – e muitas vezes arbitrário - daqueles responsáveis pela aplicação do direito, o que pode levar a sociedade à insegurança constante causada por tribunais kafknianos.

Na obra “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, de Hannah Arendt[1], o paradoxo causado pela interferência - ou não - da moral na aplicação do direito fica bastante evidente.

De um lado, verifica-se a obediência cega e amoral (desprovida de juízo de valor) de Eichmann à lei, quando este aceita sem questionar a imposição genocida das ordens recebidas de seus superiores nazistas – o direito posto.

E, de outro lado, temos todos os procedimentos (começando com o sequestro de Eichmann na Argentina) que cercaram a instalação de um tribunal de exceção em Jerusalém, cujo objetivo explícito, desde o início, era a condenação de Eichmann à morte, como uma forma moral de compensação ao povo judeu ou à humanidade pelo genocídio do qual o ex-oficial nazista fizera parte. 

Nota-se aí que o mesmo raciocínio schmittiano que embasou a perseguição ao povo judeu pelo regime nazista foi o que justificou a instauração de um tribunal de exceção em Jerusalém para condenar Eichmann.

Seria justificável, porém, sob o pretexto de se “fazer justiça” e seguindo princípios morais, excetuar o sistema jurídico válido para condenar um homem que, pelo contrário, deixou de considerar tais princípios ao cumprir cegamente um sistema jurídico válido, porém injusto?  Penso que não.

A resposta está, como sempre esteve, na proteção dos direitos e garantias individuais: já que é irrefutável a influência de juízos valorativos na aplicação do direito, o que pode garantir segurança jurídica para os cidadãos que a ele se submetem, senão o estrito respeito às garantias fundamentais, em especial o devido processo legal?

Negar o direito de defesa e criar regras específicas para condenar alguém, por mais convicção que se tenha de sua culpabilidade, apenas abrirá precedentes para que pessoas inocentes, no futuro, venham a ser vítimas desse mesmo sistema jurídico contaminado por agentes externos – e daí vale lembrar que a moralidade e a justiça são conceitos extremamente subjetivos.

Eis porque, independentemente da teoria interpretativa[2] adotada, é necessário que se imponham limites para a atividade do Estado-juiz na aplicação da lei, já que hoje este se confunde cada vez mais com o Estado-policial.

O combate à corrupção na administração do patrimônio público tem sido frequentemente usado como subterfúgio pela tríade do sistema de justiça formada por Judiciário, Ministério Público e Polícias, não apenas para usurpar os poderes do Legislativo e Executivo, mas muitas vezes também para amedrontar todos os seus integrantes que, em tese, seriam os legítimos representantes da vontade popular.

Com isso, direitos e garantias individuais vêm sendo violados diariamente e impunemente, seja por meio de conduções coercitivas ilegais, seja por meio da exposição midiática de prisões cautelares de pessoas públicas, ou, pior, por decisões do próprio Supremo Tribunal Federal que retiram definitivamente direitos individuais dos cidadãos, como, por exemplo, quando determinou o encarceramento imediato de réus condenados em segunda instância, mesmo com recursos pendentes.

Essa cruzada moralista incentivada pela mídia sensacionalista em um pretenso combate à corrupção, que começou a tomar corpo com o julgamento da Ação Penal 470 (vulgo Mensalão) e a instituição de uma questionável “teoria do domínio do fato”, e hoje se materializa na centopéica e prolongada Operação Lava-Jato, tem aberto precedentes para que o sistema de justiça seja utilizado como instrumento – ainda não se sabe em prol de quais forças – de um grande retrocesso democrático, já que vem autorizando sucessivas medidas de exceção sobre direitos fundamentais constitucionalmente protegidos.

O suicídio do ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier, em outubro deste ano, após ter sido submetido a uma prisão sensacionalista, vexatória e comprovadamente arbitrária, não foi suficiente para evitar semelhante injustiça, dessa vez cometida contra o reitor e a vice-reitora da Universidade Federal de Minas Gerais, que foram conduzidos coercitivamente a prestar depoimentos, no último dia 06 de dezembro, sob ampla cobertura da mídia, sem sequer terem sido previamente intimados para tanto.

Menos de duas semanas depois, neste dia 19 de dezembro, o Supremo Tribunal Federal, em decisão liminar, proferida na ADPF 444 MC/DF, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, reconheceu a inconstitucionalidade das conduções coercitivas, em qualquer hipótese, por violarem os preceitos fundamentais previstos no artigo 5º, caput, LIV e LVII da Constituição Federal. 

Irreparáveis, porém, os danos já causados pelas arbitrárias conduções coercitivas até aqui autorizadas indevidamente pelo Poder Judiciário, que já atingiram centenas de investigados na Operação Lava-Jato[3] e em outras mega-midiáticas-operações:  sem intimação prévia, sem qualquer resistência, com amplo e desproporcional aparato policial e imprensa devidamente avisada.

Da mesma forma, o manuseio do instituto das delações premiadas como instrumento de tortura contra réus presos – entregue o alvo por mim escolhido ou sua prisão cautelar nunca será revogada – já não está restrito à “república de Curitiba”, mas vem sendo utilizado em diversas comarcas espalhadas pelo país.

E nem se fale então das recorrentes violações às prerrogativas dos advogados, que nada mais são do que ataques ao direito de defesa de todos os cidadãos.

Trata-se do efeito dominó do poder dispositivo e arbitrário de um sistema de justiça de exceção inquisitivo e corrompido, muito semelhante ao tribunal kafkniano que condenou Josef K[4] na fictícia obra “O Processo”, de Franz Kafka, escrita em 1920, mas tão contemporânea à realidade brasileira.

Em recente artigo publicado no Conjur, Pedro Estevam Serrano é certeiro ao colocar o Estado-juiz que viola direitos fundamentais como agente do pior tipo de corrupção, que é aquela que se apropria dos direitos constitucionalmente garantidos: “(...) quando o Estado restringe, limita ou, mais intensamente, esvazia o sentido desses direitos, retirando seu significado e transformando-os em mera declaração simbólica, temos a apropriação privada, pela autoridade que interpreta a ordem jurídica, do bem comum mais caro ao conjunto da sociedade. Podemos dizer assim que, hoje, o pior tipo de corrupção, no sentido moral e político da expressão, não é a apropriação do dinheiro público, mas sim a do significado daquilo que representa os direitos constitucionalmente garantidos”.

Todos os avanços conquistados com as Constituições rígidas do pós segunda guerra, construídas sobre os pilares da democracia, da separação de poderes e da preservação dos direitos e garantias fundamentais, que o Brasil incorporou em sua Constituição Cidadã de 1988, parecem estar em cheque – por um desequilíbrio e voluntarismo exacerbado em prol do Poder Judiciário.

Nossos tribunais, invocando a ponderação de princípios e uma abertura do sistema baseadas no uso deturpado[5] da teoria da argumentação, têm justificado uma interpretação alargada e descriteriosa[6] da Constituição, inclusive para a restrição de direitos individuais básicos e para fomentar um ativismo judicial que invade, em muito, a esfera política reservada aos demais Poderes instituídos.

Enganam-se, portanto, aqueles que aplaudem violações de direitos fundamentais, mesmo que as vítimas das violações sejam seus desafetos políticos ou pessoas de proeminência na sociedade. Trata-se de uma falsa sensação de que a justiça alcançaria todos, quando na verdade é a corrupção da violação dos direitos e garantias individuais constitucionalmente previstos que está se sacramentando por meio desses perigosos precedentes.

A própria subsistência do nosso Estado Democrático de Direito depende da interpretação adequada do ordenamento jurídico, tendo como parâmetro máximo de validade a Constituição Federal e as garantias individuais, como bem defende Luigi Ferrajoli, segundo quem “(...) o paradigma garantista do constitucionalismo rígido exige que o Poder Judiciário seja o mais limitado e vinculado possível pela lei e pela Constituição, conforme o princípio da separação de poderes e a natureza quanto mais legítima mais cognitiva – e não discricionária – da jurisdição”.[7]

O que fazer, porém, com o descontrole do Poder Judiciário?

Por um lado, cabe aos demais Poderes instituídos, principalmente ao Poder Legislativo, reagir diante das usurpações de suas funções pelo Judiciário, que ocorrem frequentemente sob o pretexto de correção de antinomias ou supostas lacunas no sistema jurídico – o que deveria ser prerrogativa exclusiva do Legislativo, representante legítimo da vontade popular.

Por outro lado, cabe à doutrina a difícil tarefa de desenvolver uma teoria da decisão que consiga enfrentar de maneira pragmática e eficiente a influência da moral na aplicação do Direito.

Mas, sobretudo, cabe a toda a sociedade se insurgir e resistir, enquanto é tempo, a esse ativismo judicial descontrolado, responsável, em grande parte, por essa permanente crise institucional que vivemos. Enquanto houver aplausos, o espetáculo vai continuar...

 

[1] ARENDT, Hannah. “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

[2] Lenio Streck traça um panorama geral das teorias do direito contemporâneo coexistentes, compostas, de um lado, pelos positivistas, divididos entre inclusivistas (Hart, Coleman, Waluchow) e exclusivistas (Raz, Marmor), e, de outro lado, pelos interpretativistas (Dworkin), jusnaturalistas contemporâneos (Finnis, Grisez) e teóricos da razão comunicativa (Alexy, Günther).

[3] Em trecho da decisão do ministro Relator Gilmar Mendes sobre a medida cautelar na ADPF 444 MC/DF, o abuso das conduções coercitivas no âmbito da Lava-Jato fica claro: “Para ficar no exemplo mais rumoroso, foram executadas 222 conduções coercitivas na Operação Lava Jato – até 14.11.2017, de acordo com o site lavajato.mpf.mp.br. Apenas para ilustrar, é mais do que a soma de todas as prisões no curso da investigação – 218, sendo 101 preventivas, 111 temporárias, 6 em flagrante. Mas a condução coercitiva não é uma exclusividade da Lava Jato. Mesmo investigações de perfil mais baixo passaram a valer-se da técnica. Por outro lado, em inquéritos policiais não batizados como operações, a condução coercitiva é rara ou inexistente.”

[4] “O processo”, de Franz Kafka, foi escrito em 1920 e se assemelha à história de milhares de cidadãos que se submetem hoje ao sistema de justiça brasileiro: arbitrário, burocrático, punitivo e sensacionalista.

[5] Nesse sentido, até o jurista italiano Luigi Ferrajoli já constatou a degeneração do “panpricipialismo” do direito brasileiro, cuja jurisprudência tem criado princípios que não têm nenhum fundamento no texto da Constituição: “Estamos, aqui, diante de verdadeiras invenções normativas, em contraste com a submissão dos juízes à lei. Os princípios constitucionais – em especial aqueles que enunciam direitos – são normas prescritivas, que não podem ser neutralizadas por princípios ético-políticos de criação legislativa e, muito menos, jurisprudencial, mas vinculantes para todos os poderes públicos. É esta a substância e o papel garantista do constitucionalismo positivista que a abordagem principialista arrisca tornar inútil: o caráter rigidamente normativo dos princípios formulados nas Constituições, não ponderáveis com princípios nelas não expressos (...)”. (FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In. Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 45.)

[6] “Com efeito, se, na formação proposta por Alexy, a ponderação conduz à formação de uma regra – que será aplicada ao caso por subsunção -, os tribunais brasileiros passaram a utilizar esse conceito como se fosse um enunciado performático, uma espécie de álibi teórico capaz de fundamentar os posicionamentos mais diversos”. (STRECK, Lenio Luiz. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. In. Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 74.)

[7] FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In. Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 53.