Quem será a próxima vítima da espetacularização das operações jurídico-policiais-midiáticas?
No último dia 31 de outubro, em sessão realizada no Plenário do Senado em homenagem a Luiz Carlos Cancellier, ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o professor de Direito da Universidade de Brasília (UnB), Marcelo Neves, apresentou à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) um requerimento que subscrevi ao lado de mais de 200 juristas, através do qual pedimos que o Congresso Nacional investigue e apure os excessos e abusos no âmbito das operações jurídico-policial-midiáticas em curso no país, nas quais vêm sendo repetidamente violadas as garantias constitucionais dos investigados e a própria subsistência do Estado Democrático de Direito.
O requerimento que apresentamos bem resumiu a sensação que permeia toda a comunidade jurídica nesses tempos de repressão penal desmedida, que teve como sua mais nova vítima uma personalidade de conduta ilibada e com uma vida toda dedicada à universidade, o respeitado reitor Cancellier: “A sua prisão açodada e a exposição midiática o transformaram do dia para a noite em inimigo do povo, colocando sobre os seus ombros o dever de provar que era inocente, o que é a mais clara subversão dos valores que regem a democracia”.
Advogado e professor, 60 anos, com pós-doutorado em Direito, muito respeitado no meio acadêmico, Cancellier havia assumido a reitoria da UFSC desde maio de 2016 e se suicidou em 02 de outubro deste ano, como resultado de um desgaste emocional, moral e profissional causado pela conjunção de abusos de autoridades e do relacionamento promíscuo destas com a mídia, que levaram à sua prisão, ainda que por um dia.
Cancellier não foi a primeira nem a última vítima desse sistema de justiça contaminado por pressões externas, pelo gosto por holofotes, pela cultura punitivista que temos acompanhado nos últimos anos. Porém, quanto maior é a respeitabilidade, reputação e patamar alcançados na sociedade, maior será o dano à imagem e à honra que uma prisão arbitrária poderá suscitar e, consequentemente, as sequelas psicológicas.
Acusado pela Polícia Federal de tentar obstruir as investigações da Operação Ouvidos Moucos, deflagrada em 2014 para apurar supostos desvios em um programa de ensino a distância, ocorridos em gestões anteriores, o reitor teve sua prisão decretada sem que houvesse sido intimado uma vez sequer para prestar esclarecimentos e, conforme se demonstrou depois, exclusivamente porque pediu vistas de um processo administrativo interno, respaldado pela procuradoria jurídica da UFSC, cujo acesso vinha lhe sendo negado de forma insubordinada pelo corregedor da universidade.
A tentativa de obter acesso a um processo administrativo interno da universidade, dentro dos trâmites ordinários das funções e competências administrativas comuns de um reitor e gestor, foi interpretada como obstrução de justiça e Cancellier, que sequer era investigado ou denunciado no inquérito que tramitava na Polícia Federal, teve sua prisão decretada pela juíza Janaina Cassol Machado, da 1ª Vara da Justiça Federal, que posteriormente criticou duramente, e através da mídia, ressalte-se, a juíza substituta Marjorie Freiberger, responsável pelo relaxamento da prisão do reitor no dia seguinte.
Além da exposição midiática estrondosa que envolveu toda a operação, comandada pela delegada Érika Marena, que integrou a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e importou daí seu modus operandi arbitrário, com a movimentação de um aparato de mais de cem policiais (vindos inclusive de outras partes do país), causando um gasto aos cofres públicos absurdamente desproporcional ao valor objeto do processo, a juíza Janaina Cassol Machado impingiu ao reitor um constrangimento ainda maior ao afastá-lo de suas funções, proibindo-lhe que sequer pisasse no campus da UFSC.
Não bastasse toda a injustiça da breve prisão em si e o sofrimento por ela causado, Cancellier virou a partir de então alvo da imprensa local, mal informada ou mal intencionada, exposto a uma opinião pública completamente contaminada por esse sentimento punitivista e sensacionalista que se retroalimenta através das operações policiais midiáticas, como se fosse desonesto, corrupto, e responsável por desvios dos quais nem aqueles responsáveis por sua prisão o acusavam, mas que com ela permitiram e incentivaram sua injusta condenação pública e moral.
Não é por menos que após o suicídio do reitor, em nota de pesar, o próprio procurador-geral do Estado, João dos Passos Martins Neto, reconheceu que Cancellier padeceu sob abuso de autoridade: “Por isso, respeitado o devido processo legal, é indispensável a apuração das responsabilidades civis, criminais e administrativas das autoridades policiais e judiciárias envolvidas.”
Outras importantes personalidades e entidades respeitadíssimas no universo jurídico vieram publicamente exprimir sua indignação com o modo como as garantias constitucionais vêm sendo arbitrariamente violadas pelas autoridades que compõem o sistema de justiça, tendo sido o trágico caso do ex-reitor Cancellier apenas um dentre tantos outros: “ (...) nesse contexto, o Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, cuja tradição está centrada na observância do Estado Democrático e Social de Direito, na estrita observância dos princípios que regem a Administração Pública e no combate irrestrito aos abusos e violações aos direitos fundamentais, vem publicamente externar, uma vez mais, sua contrariedade com a banalidade com a qual se decretam prisões provisórias pelo País, em claro desabono à imagem e honra de quem é por ela afetado, com ampla cobertura midiática, especialmente quando o processo penal prevê meios menos drásticos para referidos esclarecimentos”.
O perigo do “marketing” do sistema de justiça em sua relação com a opinião pública
Os direitos e garantias fundamentais são hoje a base do Estado Democrático de Direito e surgiram justamente pela necessidade de se opor as liberdades individuais das pessoas físicas frente aos poderes do aparato estatal soberano.
Nesse sentido, todos têm o direito constitucional de serem submetidos a um juiz imparcial, já que o contrário seria admitir a instauração de um tribunal de exceção e a negação do devido processo legal e da ampla defesa às partes envolvidas no processo judicial.
De outra parte, a observância da impessoalidade e da legalidade são deveres funcionais de todos os agentes públicos, aí incluídos juízes, promotores e policiais, que devem agir com discrição e decoro no exercício de suas funções, sob pena de incorrerem em abuso de autoridade.
Ainda que seja impossível negar uma certa discricionariedade no agir desses agentes públicos, mesmo na estrita observância da legalidade, estes devem sempre preservar os direitos fundamentais e, em última análise, a dignidade daqueles que são destinatários de seus atos.
No entanto, o que se tem observado de forma cada vez mais cotidiana e natural é que o sistema de justiça vem se unindo não apenas no descumprimento de preceitos legais e constitucionais, mas na violação dos direitos e garantias fundamentais mais básicos, fundados nas liberdades individuais, como o direito ao devido processo legal, à ampla defesa, à presunção de inocência, à intimidade, à honra, à imagem etc.
É o que verificamos nas operações jurídico-político-midiáticas recentes: uma tríade formada por Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal alia-se à mídia para condenar frente à sociedade e à opinião pública determinados “inimigos”, que são escolhidos de acordo com o que julgam causar maior comoção social no momento.
O papel do inimigo da sociedade, que por muito tempo foi ocupado exclusivamente pelos movimentos sociais, como o MST e o MTST, por exemplo, agora está dividindo espaço com políticos, empresários e detentores de algum poder político-econômico.
As prisões cautelares, muitas vezes precipitadas e ilegais, são vazadas com antecedência para a imprensa e televisionadas ao vivo, expondo ali os acusados que sequer foram submetidos a um julgamento inicial, ao que parece como resultado de um planejamento de “marketing” para operações policiais cada vez mais ostensivas e desproporcionais.
Se o juiz, que deveria ser a figura imparcial no processo, desde o início se alia à polícia e ao Ministério Público como um único órgão acusador, contaminado por pressões extra autos ou pela própria tendência punitivista e inquisitorial que tem assolado a nossa sociedade, fica difícil de se vislumbrar aí qualquer chance da vítima desse sistema exercer plenamente seu direito de defesa – mesmo um cidadão inocente terá dificuldades de provar sua inocência, quando houve uma escolha premeditada por sua condenação moral.
Pior é que esse clima de punitivismo e necessidade moral de satisfazer pressões externas ao processo está presente inclusive em nossa mais alta corte constitucional. Recentemente, dois ministros do Supremo Tribunal Federal tiveram uma discussão calorosa durante um julgamento no Plenário, em que a disputa aparentemente seria entre qual dos dois estaria imbuído de espírito mais moralista no punitivismo do que o outro.
Um ministro acusou o outro de conceder prisão domiciliar ao ex-ministro José Dirceu, como se a concessão de um direito constitucional devesse ser negada pela rejeição social que a personalidade política carrega. O outro, por outro lado, recebeu como resposta que teria “leniência em relação à criminalidade do colarinho branco." Como se os acusados por crimes de colarinho branco, esses sim, devessem ser os inimigos eleitos da sociedade.
Os direitos e garantias constitucionais, a imparcialidade, o tratamento impessoal que deveria ser concedido às partes do processo parecem ter sido completamente ignorados pelos ministros, que visivelmente se preocupavam ali, diante das câmeras ao vivo da TV Justiça, qualificar os réus que supostamente teriam sido soltos por um ou outro mais pela rejeição que causam na opinião pública do que por questões jurídico-constitucionais.
A separação entre o direito e a moral é um corolário do princípio da legalidade e premissa do constitucionalismo, sendo o magistrado obrigado a se submeter à lei e à Constituição, nunca a um arbítrio moral extra autos que vai inclusive se alterando como uma onda, de acordo com o tempo.
Os quatro de Copacabana
Enquanto vimos juízes e até ministros do Supremo Tribunal Federal diariamente concederem entrevistas e opiniões sobre processos que estão sob seu julgamento ou que possivelmente virão a julgar, como o ministro Luiz Fux, que recentemente declarou em entrevista à imprensa que o ex-presidente Lula não deveria ser candidato nas eleições de 2018, sem qualquer fundamento constitucional para tal afirmação, por outro lado, recentemente o Conselho Nacional de Justiça decidiu abrir um processo disciplinar para investigar quatro juízes que se manifestaram em ato público no Rio de Janeiro contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016.
Os juízes André Luiz Nicolitt, Cristiana de Faria Cordeiro, Rubens Roberto Rebello Casara e Simone Dalila Nacif Lopes discursaram em um carro de som durante manifestação na Avenida Atlântica, em Copacabana, na Zona Sul do Rio, contra o que denunciaram ser um golpe à Constituição e às instituições democráticas.
Manifestaram sua opinião jurídica sobre um processo político-jurídico em que jamais teriam qualquer poder decisório, ao contrário de outros juízes e promotores que viajam dando palestras e emitem opiniões prévias, mas sempre muito carregadas de teor moralista-punitivo, sobre processos em andamento e que estão sob sua guarda. Casos gritantes de suspeição e de desvio de função que passam ao largo do crivo do CNJ.
O que ocorre é que o próprio CNJ já integrou essa lógica deturpada de jogar para a plateia: se a onda conservadora e persecutória é o que agrada a opinião pública, juízes legalistas, garantistas e defensores do Estado Democrático do Direito passam também a figurar como inimigos eleitos.
Difícil fica também acreditar que essa investigação no CNJ não tenha qualquer relação com o recém-lançado livro de um dos investigados, o juiz Rubens Casara: “Estado Pós-Democrático: Neo-Obscurantismo e Gestão dos Indesejáveis”.
Em sua obra, Rubens Casara defende e justifica, de forma genial, a tese de que já estamos vivendo uma pós-democracia, não existe mais Estado Democrático de Direito, apesar das instituições permanecerem existindo sob uma falsa aparência democrática. Nesse sentido, explica que os julgamentos no Estado Pós-Democrático podem ser qualificados como simulacros de julgamento:
“O juiz inquisidor da atualidade, muitas vezes com o apoio dos meios de comunicação, que reforçam versões desfavoráveis aos réus e propagam o sentimento de medo na população, confunde as funções de julgar e acusar, afastando-se do dever que lhe é atribuído nas legislações democráticas: o de concretizar direitos e garantias fundamentais de todos, inocentes ou culpados”.
Sob esse clima de inquisição, de pós-democracia ou, na melhor das hipóteses, de medidas de exceção perpetradas pelo sistema de justiça penal contaminado pela opinião pública, mesmo aqueles que não os inimigos eleitos da vez já não podem contar com a segurança jurídica de que seus direitos fundamentais serão preservados. A maior vítima aqui, não tenha dúvidas, é a democracia.