Por um constitucionalismo garantista como instrumento contra o absolutismo moral do sistema de justiça

Por um constitucionalismo garantista como instrumento contra o absolutismo moral do sistema de justiça

Segundo Kelsen[1], a interpretação jurídica é uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior de normas jurídicas para um escalão inferior e, tendo-se em conta que a norma do escalão superior nunca conseguirá vincular em todas as direções o ato através do qual será produzida a norma de escalão inferior, sabe-se que é inevitável que reste uma margem de livre apreciação ao intérprete.

O Direito e, no ápice do escalonamento das normas, a Constituição Federal, estabelecem uma moldura fixa dentro da qual existem diversas possibilidades de aplicação da norma de acordo com cada caso concreto, cabendo ao intérprete (notadamente o órgão jurisdicional), através de um ato de vontade, escolher uma das hipóteses possíveis de aplicação.

O desafio, portanto, é escolher, dentro dessa moldura pré-fixada, a melhor interpretação possível, já que não se poderia estipular uma única solução correta, na visão positivista do Direito. 

Para tanto, a ciência jurídica fixa normas de interpretação que se permeiam também na coerência de seus conteúdos com os princípios de justiça constitucionalmente estabelecidos, como bem elucida Luigi Ferrajoli[2].

Se por um lado o positivismo jurídico kelseniano reconhece como direito qualquer conjunto de normas postas validamente pela autoridade competente, independentemente do seu conteúdo, por outro lado, a partir do momento em que se admite um constitucionalismo normativo ou garantista, tendo-se a maior parte dos princípios constitucionais, em especial os direitos fundamentais, comportando-se como regras, os próprios procedimentos de produção de normas, tanto no sentido formal como material, deverão seguir parâmetros como a busca pela justiça e pela dignidade da pessoa humana que já estarão positivados na Constituição Federal.

Para se alcançar a interpretação mais justa da norma a ser aplicada não seria necessário, portanto, adotar-se uma concepção jusnaturalista de constitucionalismo, baseada na prática jurídica ou em uma argumentação moral, o que valorizaria sobremaneira a atividade criativa dos juízes e abriria espaço até mesmo para interpretações ainda mais injustas. Pelo contrário, bastaria que se positivassem os direitos e garantias fundamentais, colocando-os como limites inclusive na produção legislativa das normas.

A separação entre direito e moral, ou seja, entre validade e justiça, é um grande divisor que separa os adeptos do chamado constitucionalismo juspositivista, como Ferrajoli, daqueles que defendem uma concepção de constitucionalismo mais jusnaturalista, como Ronald Dworkin e Robert Alexy: de um lado, o princípio da legalidade que limita o poder dos juízes e seu arbítrio moral e, de outro lado, um cognitivismo ético-judiciário que, muitas vezes, pode conduzir ao absolutismo moral.

É preciso cuidar para que a admissão do juízo moral e de elementos metajurídicos na aplicação das normas não reconduza a sociedade ao jugo de um Leviatã estatal que, se antes era incorporado pela figura do Rei tirano, hoje pode se espraiar por todo o aparato do sistema de justiça.

A segurança jurídica que nos traz a existência de uma Constituição rígida à qual todas as normas são subsumidas não pode ser flexibilizada pela busca principiológica de uma justiça maior, aí confiada à discricionariedade e ao poder de disposição do judiciário.

Em tempos em que uma palestrante estrangeira é perseguida e agredida em um aeroporto apenas por ser defensora da igualdade de gêneros , em tempos em que uma exposição de arte é fechada após manifestações de ódio de cunho homofóbico, em tempos em que se nega socorro a um jovem em razão da cor da sua pele, constata-se que a concepção social de justiça e moralidade tende a oscilar inclusive contra os direitos fundamentais, o que ressalta ainda mais a necessidade do Estado-juiz se manter firme na resistência a qualquer tipo de pressão externa ao direito normativo.

A argumentação e a ponderação de princípios, mesmo nos casos mais abertos e aparentemente vagos, em nosso ver, ainda assim poderá ser limitada pelos direitos e garantias fundamentais positivados no texto constitucional, de modo que os juízes não ponderem normas, mas tão somente as circunstâncias fáticas que justificam ou não sua aplicação.

Ainda dentro da inegável discricionariedade que cabe ao juiz no ato de aplicar a norma ao caso concreto (ato de escolha/vontade), além de todos os instrumentos hermenêuticos e as prescrições constitucionais que deverão ser respeitadas, pode-se colocar a dignidade da pessoa humana como valor absoluto a ser perseguido.

Utilizando-nos, portanto, dos ensinamentos de Tércio Sampaio Ferraz Júnior[3], o valor justiça poderia ser incorporado ao ato de julgar, desde que concebido no sentido de interação entre o princípio da igualdade como senso de justeza e o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como sentido nuclear de justiça.

Dessa forma, ainda que se admitisse a interferência de um certo juízo moral na convicção do juiz, este estaria guiado pela igualdade de todos perante a lei e pela proteção máxima da dignidade da pessoa humana como senso de justiça, de onde se pode deduzir a proteção da diversidade e das minorias, a não discriminação do acusado, a proibição da exposição da imagem dos investigados em processos judiciais, a salvaguarda da honra e da imagem, a prestação de direitos sociais como saúde, educação e lazer, entre outros.

Portanto, a recente onda punitivista e supressora de direitos fundamentais que temos visto principalmente no sistema de justiça penal, muitas vezes numa relação promíscua e suspeita com a mídia, não se justificariam em absoluto por qualquer teoria constitucionalista, por mais aberta a ponderações que fosse.

Aliás, como bem alerta Tércio Sampaio Ferraz Jr.[4], para o próprio equilíbrio entre os poderes institucionais e a segurança do nosso sistema jurídico, é necessária a neutralização do Poder Judiciário até mesmo contra a “expectativa de influência” de quaisquer pressões políticas. A população precisa estar segura, destarte, de que o “marketing de manipulação política” e a utilização dos meios de comunicação como forma de pressão não transformarão o direito em um objeto de consumo, suscetível às ondas do momento.

A neutralização do Poder Judiciário é tão necessária como contramajoritária, uma vez que é a maior garantia de que o sistema jurídico e os direitos fundamentais sobreviverão a correlações de forças externas ao Direito, principalmente àquelas que se formam em torno do “prazer de condenar” e da tendência de se criar um dualismo entre o “bem e o mal”, o que conduz invariavelmente à malta da guerra, como bem lembra Elias Canetti[5].

Essa tendência de eleger um inimigo, um “mal” a ser combatido, gerou genocídios terríveis no passado e ainda hoje é responsável pelas principais mazelas da humanidade: xenofobia, racismo, machismo, ultraconservadorismo, homofobia, guerras religiosas, sempre em nome de uma moral duvidosa e intolerante.

A partir do momento em que o sistema de justiça se permite tornar instrumento dessa cruzada moralista e inquisitória, não há como fugir à instauração de um Estado de Exceção, onde impera a insegurança jurídica e direitos fundamentais são flexibilizados de acordo com os interesses das forças dominantes na ocasião.

Se o balizamento fosse, pelo contrário, a proteção da dignidade da pessoa humana e a igualdade de todos perante a lei, com a subsunção de todas as normas aos preceitos constitucionais, não precisaríamos nos preocupar nem com a elaboração de leis e tampouco com a aplicação de sentenças com conteúdos materiais injustos. Nesse sentido, nem Eichman se sentiria obrigado a cumprir uma lei genocida regularmente positivada sob o governo nazista, e tampouco Antígona teria sido tão cruelmente punida por se insurgir contra uma lei extremamente desigual aplicada por Creonte.

A política e a moral devem ficar fora do direito, mas se houver espaço para qualquer discricionariedade, esse espaço será dos direitos fundamentais: essa é a maior garantia de justiça que poderemos ter.

 

[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes.

[2] FERRAJOLI, Luigi. “Constitucionalismo principialista e Constitucionalismo garantista”, in: Um debate sobre el constitucionalismo. 1ª ed. Madrid: Marcial Pons, 2012.

[3]Nessa lógica da convicção, a inclusão do princípio da igualdade na motivação da sentença mediante a construção do legislador racional significa, nas codificações do legislador empírico, um limite à imprecisão conotativa e denotativa da discricionariedade. E a inclusão nela do princípio da dignidade da pessoa humana como senso do justo possibilita, simultaneamente, formas casuísticas de equidade”. (FERRAZ JUNIOR. Tercio Sampaio. “Ato de julgar e senso de Justiça” in Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 304-305).

[4] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Argumentação Jurídica. 1ª ed. São Paulo: Manole, 2014.

[5] CANETTI, Elias. Massa e Poder. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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