A desigualdade de gênero na política: reflexo de um país desigual
Recentemente escrevi um artigo tratando das alterações no sistema político e eleitoral que foram introduzidas pela reforma política aprovada no Congresso Nacional no começo do mês de outubro.
No entanto, o que poucas pessoas sabem é que uma proposta de emenda constitucional de altíssima relevância ficou de fora dessa reforma e ainda aguarda votação pelo plenário da Câmara dos Deputados: trata-se da PEC 134-A/2015, também conhecida como “PEC da Mulher”, que propõe acrescentar o artigo 101[1] ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de reservar vagas para cada gênero na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais, nas três legislaturas subsequentes, com pisos progressivos de 10, 12 e 16%.
Na prática, essa alteração na Constituição Federal garantiria uma reserva de vagas na proporção mínima de 10 a 16% exclusivamente para as candidatas mulheres, sendo que as demais vagas seriam disputadas igualitariamente entre homens e mulheres.
Trata-se de uma medida necessária para garantir a participação feminina na política e combater a desigualdade de gênero no Brasil, onde as mulheres não conseguem alcançar nem 10% das cadeiras da Câmara dos Deputados, mesmo representando mais de 50% do eleitorado.
De acordo com o relatório da Comissão Especial da “PEC das Mulheres” na Câmara dos Deputados, apresentado pela deputada Soraya Santos, o Brasil ocupa a vergonhosa 155ª posição no ranking de representação feminina do Legislativo, atrás até mesmo de países conhecidos por restringirem direitos das mulheres, como Sudão, Iraque, Arábia Saudita, Egito e Turquia.
Vale notar que a baixa representação feminina no poder político persiste mesmo considerando que desde 2009 a legislação eleitoral obriga que 30% (trinta por cento) das candidaturas registradas por cada partido ou coligação sejam preenchidas por um dos gêneros[2], ou seja, por mulheres, já que invariavelmente todos os partidos acabam tendo mais homens do que mulheres para apresentar como candidatos.
Acontece que, mesmo obrigando-se os partidos a registrarem candidaturas femininas, não há garantias de que essas candidatas serão valorizadas e tratadas com paridade pelos partidos, tal qual são tratados os candidatos do gênero masculino, tendo se tornado comum o registro de candidatas “laranjas”, apenas para se preencher o mínimo legal exigido, sem que efetuem qualquer tipo de campanha.
Os partidos lançam mulheres candidatas, mas não as incluem verdadeiramente em seus projetos, algo muito parecido com o que acontece em outras esferas de relações sociais e profissionais, em que as mulheres muitas vezes são aceitas como meros adornos ou para “fazer volume”, com direito a voz, mas sem direito a serem ouvidas.
Isso fica muito claro quando conferimos o retrato dos 513 deputados federais que ocupam hoje o parlamento brasileiro: majoritariamente branco e masculino, um verdadeiro atraso para a nossa já frágil democracia e completamente na contramão da evolução dos direitos humanos, que priorizam a igualdade na diversidade.
Eis porque a necessidade de se garantir não apenas as cotas para candidatura de mulheres, como já ocorre atualmente, mas também que se introduza uma reserva de vagas a serem preenchidas exclusivamente por mulheres no próprio parlamento, que é o que propõe a “PEC das Mulheres”, - infelizmente ainda aguardando votação no plenário, já que equivocadamente não foi tratada com a mesma urgência que os demais pontos da reforma política, talvez por desinteresse ou mesmo rejeição da maioria masculina.
Seja em função dos mais modernos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, seja em decorrência da simples força normativa da Constituição Federal de 1988, a “PEC da Mulher” é uma ação afirmativa de combate à desigualdade de gênero que deveria ter sido priorizada antes mesmo dos demais pontos da reforma política aprovados no começo do mês.
Outros setores
A dificuldade de participação da mulher na política, mesmo representando a maioria da população, obviamente decorre de uma carga histórica de discriminação e exclusão que se reflete em todos os outros setores, principalmente se considerarmos o contexto do Brasil, um país de origem colonial, escravocrata e fundamentalmente religioso, que ainda sofre com tradições oligárquicas incutidas nos principais meios de produção, na mídia e nas mais diversas esferas de poder.
Por outro lado, inegável que, com as mulheres conquistando cada vez mais direitos, quebrando tabus e buscando disputar igualitariamente o mercado de trabalho, os homens, gênero até então dominante, ainda têm uma forte resistência em sua aceitação, muito permeada pelo medo e um tanto pela ignorância, mas eminentemente pelo conforto da posição conquistada.
Não é para menos. Afinal, quando de fato incluída no mercado de trabalho, a mulher se torna um elemento verdadeiramente competitivo e indispensável.
Os lares brasileiros estão gradativamente passando a ser chefiados por mulheres: em 1995, 23% dos domicílios tinham mulheres como pessoas de referência; vinte anos depois, esse número chegou a 40%. Além disso, o desemprego afetou menos as mulheres nos últimos cinco anos do que os homens: de acordo com o IBGE, entre 2012 e 2016, o total de homens empregados sofreu redução de 6,4%, contra 3,5% entre as mulheres.
Apesar dessas melhoras, as mulheres ainda ganham em média menos do que os homens, mesmo tendo mais tempo de estudo e qualificação: no total, a diferença de remuneração entre homens e mulheres em 2015, ano com os dados mais recentes do IBGE, era de 16%.
A situação piora com relação aos cargos de direção nas empresas e organizações: atualmente, apenas 16% dessas instituições são chefiadas por mulheres no Brasil, de acordo com uma pesquisa da International Business Report (IBR) – Women in Business, da Grant Thornton. Ou seja, preserva-se a cultura de discriminação profissional e de estigmatização da figura feminina em funções que exijam liderança.
A insistência nessa cultura oligárquica e preconceituosa, porém, além de ser um óbice ao desenvolvimento democrático e um ataque aos direitos humanos, gera também um prejuízo de ordem econômica que talvez poucos tenham se atentado.
O combate a todas as formas de desigualdade, inclusive a desigualdade de gênero, não se trata de uma agenda de caráter exclusivamente humanitário, mas deve ser priorizado também por sua relevante vantagem econômica e como fator diferencial para o desenvolvimento nacional.
É fato inconteste que a participação das mulheres no mercado de trabalho representa uma força por trás do crescimento global e da competitividade. No caso do Brasil, sabe-se que a diminuição em 25% das diferenças de gênero no mercado de trabalho poderia aumentar o PIB em 382 bilhões de reais, e acrescentar 131 bilhões de reais às receitas tributárias, conforme o estudo Perspectivas Sociais e de Emprego no Mundo – Tendências para Mulheres 2017, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Não é por menos que a diminuição da desigualdade na taxa de presença das mulheres no mundo do trabalho se tornou um compromisso assumido pelos países que compõem o G20, em cumprimento inclusive dos mais recentes acordos internacionais comprometidos com o direito ao desenvolvimento.
Se o Brasil quiser evoluir economicamente e se tornar verdadeiramente competitivo nas relações exteriores, vai precisar acompanhar o mundo nessa visão das relações sociais, investindo em políticas afirmativas para combater as desigualdades e repudiando de forma contundente qualquer forma de discriminação.
A Constituição Federal brasileira, quando nasceu, em 1988, já foi muito avançada na proteção e garantia de direitos fundamentais, em especial no combate à discriminação sexista, como se pode ver pelo seu artigo 5º, inciso I, que assegura a igualdade entre homens e mulheres, e seu artigo 7º, inciso XXX, que proíbe a discriminação no mercado de trabalho em função do sexo. O que falta é dar concretude, fortalecer os princípios que já estão em nossa Constituição.
Cabe ao Estado, cabe ao Poder Judiciário, cabe ao aplicador da lei, mas cabe principalmente ao povo brasileiro cumprir esse papel. Com o poder do voto, é possível aumentar a representação feminina no Parlamento e nos cargos executivos, e com isso garantir a diversidade e a democracia na produção de leis e na condução deste país.
[1] “Art. 101. É assegurado a cada gênero, masculino e feminino, percentual mínimo de representação nas cadeiras da Câmara dos Deputados, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa do Distrito Federal e das Câmaras Municipais, nas 3 (três) legislaturas subsequentes à promulgação desta Emenda Constitucional, nos termos da lei, vedado patamar inferior a: I – 10% (dez por cento) das cadeiras na primeira legislatura; II – 12% (doze por cento) das cadeiras na segunda legislatura; e III – 16% (dezesseis por cento) das cadeiras na terceira legislatura. § 1º Caso o percentual mínimo de que trata o caput não seja atingido por determinado gênero, as vagas necessárias serão preenchidas pelos candidatos desse gênero com a maior votação nominal individual dentre os partidos que atingiram o quociente eleitoral. § 2º A operacionalização da regra prevista no § 1º dar-se-á, a cada vaga, dentro de cada partido, com a substituição do último candidato do gênero que atingiu o percentual mínimo previsto no caput pelo candidato mais votado do gênero que não atingiu o referido percentual. § 3º Serão considerados suplentes os candidatos não eleitos do mesmo gênero dentro da mesma legenda, obedecida a ordem decrescente de votação nominal.”
[2] Lei das Eleições (Lei 9.504/97), Art. 10, § 3º: “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”.