Gabriela Araujo

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A condenação de Lula como reflexo de uma crise institucional: quem controla o Poder Judiciário?

Foto: Creative Commons

Gabriela Araujo

Recentemente estive presente em uma palestra proferida pelo professor e ex-ministro da Justiça José Eduardo Martins Cardozo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em que o tema central era a crise da separação de poderes. Da brilhante palestra, o que mais me chamou a atenção foi a frase utilizada para o seu fechamento, que na verdade foi uma pergunta ainda sem resposta na conjuntura atual: Quem controla o Poder Judiciário?

Essa é a questão que resume a angústia não só do meu ilustre colega, mas dos principais juristas do país, em especial aqueles advogados que atuam diariamente nos tribunais.

Desde o julgamento extremamente midiático da Ação Penal 470, que para dar uma resposta à pressão da opinião pública introduziu uma enviesada interpretação da “Teoria do Domínio do Fato”, passando pelo impeachment por “pedaladas fiscais” da ex-presidente Dilma Roussef, até a recente condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo juiz Sérgio Moro por “convicções sem provas”, verifica-se a fragilidade de nossas instituições democráticas.

Já escrevi em outras ocasiões que os avanços do Estado Social de Direito correm um grande risco de retrocesso, se não vierem acompanhados de uma modernização ou reestruturação das instituições que o alicerçam.

A separação de poderes desenhada por Montesquieu na clássica obra “Espírito das Leis”, ainda no século XVIII, vislumbrava um sistema de “freios e contrapesos”, em que os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, apesar de independentes entre si, teriam capacidade de fiscalizar eventuais abusos. Já naquela época, afinal, e como vem sendo desde o início da sociedade humana, Montesquieu constatou que todo aquele que tem poder, tende a abusar dele, daí a necessidade de uma contenção.

Pois bem. O abuso de setores do Poder Judiciário não vem sendo contido. Pelo contrário, o que se tem chamado há alguns anos de “ativismo judicial”, corre um grande risco de se transformar em instrumento para a instauração de um Estado de Exceção no país, comandado por forças contrárias à evolução do Estado Social que vinha se consolidando desde a Constituição de 1988.

Depois de um intenso avanço dos direitos e garantias fundamentais, da assinatura de modernos pactos em prol do direito ao desenvolvimento, todos impulsionados pelo trauma do Pós Segunda Guerra e das atrocidades cometidas pelos regimes totalitaristas da época, as novas gerações parecem já não ter mais a memória dos efeitos deletérios do conservadorismo, do punitivismo, do moralismo e da “eleição de um inimigo” que impulsionaram “governos” como o de Hitler.

Fatores relacionados à economia e a baixa credibilidade de nossas instituições diante dos cidadãos brasileiros, porém, incentivam esse sentimento. A falta de participação popular nas tomadas de decisão do Poder Executivo, seu distanciamento do Poder Legislativo e o ainda precário sistema educacional a que a maioria da população tem acesso, gera uma opinião pública contaminada pela mídia essencialmente concentrada há anos sob o poder de seletas famílias representantes das elites e com forte respaldo do sistema financeiro.

Se por um lado a mídia pode pressionar o Poder Judiciário a se omitir ou tomar decisões avessas ao ordenamento jurídico por pura intimidação, por outro lado, esse conjunto pode ser explosivo diante de uma personalidade narcisista e parcial.

Juiz singular

Em meu recente artigo publicado no livro Comentários a Uma Sentença Anunciada: o Processo Lula” atribuo ao juiz Sérgio Moro o adjetivo de singular.

Aqui a palavra singular não é aplicada no sentido jurídico do juiz que decide sozinho em primeira instância, mas por sua outra acepção: trata-se de um caso peculiar dentro do quadro da magistratura brasileira. Um daqueles cuja combinação pode ser explosiva com a visibilidade e incentivo da mídia, tal qual ocorreu com o ex-ministro Joaquim Barbosa no julgamento da Ação Penal 470.

A exemplo do que foi feito em 1989 com a promoção do “caçador de marajás” Fernando Collor, hoje a mídia – e por trás dela as elites dominantes – concentra desesperadamente todos os seus esforços na promoção da figura do “super-herói” justiceiro juiz Sérgio Moro, com o objetivo claro de impedir o retorno de Lula à presidência da República, o que representaria a retomada de um projeto político de desenvolvimento e inclusão social que as forças conservadoras repudiam.

Sem contar as demoradas horas de exposição no Jornal Nacional e nos principais veículos das Organizações Globo, há ainda os principais jornais impressos e periódicos que estimulam uma veneração popular ao juiz de Curitiba. Em uma de suas capas no fim de 2015, a revista Veja exclamou, sobre uma foto do rosto do juiz, “Ele salvou o ano!”.

A defesa dos réus da Lava Jato acusa Moro, com propriedade, de ignorar legítimos direitos e provas e de atuar de forma sobressalente ao Ministério Público, quase que tomando para si a figura de acusador – ao contrário da imparcialidade que se espera de um magistrado.

No caso específico do processo do ex-presidente Lula, em que este foi acusado pelo Ministério Público de ter recebido vantagens de uma construtora em troca de benefícios públicos, através da reforma em um apartamento no Guarujá, a defesa apresentou ampla documentação e conseguiu de fato provar que o apartamento não chegou a ser adquirido pelo ex-presidente, que apenas cogitou compra-lo.

O Ministério Público Federal, de sua parte, foi incapaz de provar qualquer ato de ofício ou de beneficiamento dessa construtora no governo federal em razão dessa reforma no apartamento, que, ressalte-se, Lula nunca possuiu.

Ainda assim, o juiz Sérgio Moro, em 238 páginas de sentença – boa parte delas justificando porque não se considera suspeito e outra parte delas fazendo acusações aos advogados do réu –, desconsiderando a farta documentação apresentada pela defesa e usando de um voluntarismo e subjetivismo assustadores, condenou o ex-presidente por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

E não poderia ser de outra forma. Após anos da Operação Lava-Jato, dando entrevistas, palestras, sempre reveladoras de sua inclinação para o viés acusatório, a imparcialidade e impessoalidade que o exercício da magistratura exige na condução do processo ficaram completamente comprometidas. Pode-se dizer que a condenação veio como uma resposta à opinião pública – ou publicada – para justificar inclusive as arbitrariedades cometidas no curso do processo.

No ano passado, numa decisão sobre os processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF), criticou o juiz Sérgio Moro por divulgar gravações de conversas de Lula com a então presidente Dilma Rousseff e outras autoridades.

“Não há como conceber (...) a divulgação pública das conversas do modo como se operou, especialmente daquelas que sequer têm relação com o objeto da investigação criminal”, escreveu o ministro, morto no começo deste ano num acidente aéreo.

Estado de Exceção

Apesar das críticas que sua atuação recebe no mundo jurídico e acadêmico, como já dito, sabe-se que o juiz Sérgio Moro tem sido promovido a super-herói por grandes conglomerados de mídia - e com o apoio das classes dominantes, no combate à figura de um “inimigo” que hoje se alterna eminentemente entre grandes figuras da política brasileira, principalmente de partidos de esquerda.

O “inimigo” já foi José Dirceu, já foi Dilma Roussef, hoje é Lula e o Partido dos Trabalhadores. No futuro, poderá ser toda a classe política democrática, a esquerda, os direitos humanos ou qualquer outro símbolo que possa ser usado para amedrontar a população e permitir as medidas de exceção pretendidas.

A construção da figura de um inimigo que ameaça o Estado é sempre o discurso utilizado para se obter consentimento popular na suspensão de direitos fundamentais, como bem alerta Pedro Estevam Serrano, em sua elucidante obra “Autoritarismo e Golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção”. O Estado de Exceção ganha espaço pelo medo que o “inimigo” causa na sociedade. Esse fator explica, por exemplo, o controverso impeachment da ex-presidente Dilma (desprovido de fundamento constitucional, mas impulsionado por uma crise da economia) e a passividade dos cidadãos brasileiros diante das reformas trabalhista e previdenciária que suprimiram direitos fundamentais tão solidificados.

Com relação às reformas supressoras de direitos e ao impeachment inconstitucional, por exemplo, poderia aí o Poder Judiciário intervir, como único detentor do poder de controle de constitucionalidade, tendo no STF o grande guardião de nossa Constituição. Ainda não houve, porém, um revés nesse sentido, e a expectativa infelizmente é que não haja, principalmente pela forte pressão da opinião pública – ou publicada.

A crise institucional não reside apenas no juiz singular de Curitiba. A politização do Poder Judiciário é matéria de centenas de artigos, dissertações, teses desenvolvidas por juristas e acadêmicos de todo o país. E sua relação inadequada com a mídia monopolizada não é uma exclusividade brasileira, mas uma denúncia feita em outros países, inclusive nos Estados Unidos.

Apesar de existirem princípios hermenêuticos e a Constituição que em tese deveriam conduzir a atuação do Poder Judiciário, é fato que Montesquieu não vislumbrou a existência de um quarto poder – a mídia – quando desenvolveu o princípio da separação de poderes.

Importante salientar, de toda forma, que os problemas aqui tratados, principalmente no que se refere à politização do judiciário, não podem ser atribuídos a todos os magistrados, ainda que se trate de uma crise institucional.

A grande pressão midiática não foi capaz de dar sustentação a todas as decisões de Moro. Um exemplo disso foi a absolvição recente de João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre.

Ele havia sido condenado em primeira instância por Moro, mas o tribunal reformou sua decisão, por ausência de provas que a corroborassem.

É isso que se espera do Poder Judiciário: uma atuação discreta, imparcial e regulada pelos instrumentos hermenêutico-constitucionais de que dispõe, a despeito de quaisquer ingerências externas, mesmo que sob forte pressão da opinião pública.

Entretanto, a garantia para que essa conduta seja a regra virá de um trabalho radical de reestruturação de nossas instituições, principalmente com a reforma política e democratização da mídia.

Se de um lado é necessário também repensar os mecanismos de controle de constitucionalidade existentes e o poder ilimitado que acabam conferindo ao Poder Judiciário, por outro lado, o fortalecimento e credibilidade dos demais poderes via participação popular podem dispensar a pergunta que fizemos no início deste artigo: afinal, não será necessário controlar o Poder Judiciário se ele não cometer abusos.