Gabriela Araujo

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Um livre mercado de direitos fundamentais como resultado da insuficiência da democracia participativa no Brasil

Apesar da postura crítica de Hannah Arendt com relação a alguns aspectos do pensamento marxista, não pude deixar de me lembrar dela quando, recentemente, ao assistir uma brilhante exposição do professor Pietro Alarcon sobre “Direito e Marxismo”, na PUC-SP, este atribuiu à ausência de uma participação efetiva da classe operária na construção da Constituição Federal de 1988, a causa dessa atual passividade do povo brasileiro diante das sucessivas supressões e violações de seus direitos básicos consagrados no texto constitucional, num verdadeiro “livre mercado de direitos fundamentais”.

Em sua obra “Sobre a Revolução”[1], Arendt critica as Constituições europeias redigidas por especialistas no pós-Primeira Guerra que, sem participação efetiva popular, “como se uma Constituição fosse um pudim que se faz com uma receita”, preocuparam-se apenas na salvaguarda das liberdades civis, em estabelecer limites para o poder do Estado, mas deixaram de se preocupar com uma nova organização do poder, ou seja, com o estabelecimento de um novo corpo político constante e duradouro.

Constituição (fundação) e revolução, no pensamento arendtiano, se entrelaçam à medida que a ideia central de toda a revolução não é a libertação dos oprimidos (conquista de liberdades civis), o que poderia ser configurada como uma simples rebelião, mas revolução pressupõe a fundação da liberdade pública, ou de um novo corpo político que possibilite o exercício dessa liberdade, sendo a Constituição o documento que reflete esse ato fundante.

Assim, se diante de regimes totalitários ou opressores houver uma insurgência que não resulte em uma nova configuração política ou na criação de uma Constituição que reflita um pacto social entre os diversos atores da sociedade, não há que se falar em revolução, mas em uma rebelião que visa apenas restaurar liberdades individuais, com a mera substituição do detentor absoluto do poder político.

Em outras palavras, toda Constituição, para que não se torne uma simples folha de papel sem sentido democrático, deve resultar de uma verdadeira revolução em que, além das liberdades individuais indispensáveis, tenha sido priorizada a liberdade como modo político de vida, consubstanciada no direito de todos a ter voz ativa na sociedade, na deliberação e pactuação contínua entre os mais diversos setores, de modo a incluir também as minorias.

Se pensarmos a Constituição de 1988 como o documento fundante da democracia no Brasil após décadas de uma ditadura militar extremamente violenta e opressora, fica fácil entender (e festejar) a riqueza de direitos e garantias fundamentais ali consagrados. E é inegável que a Assembleia Constituinte reuniu diversos setores da sociedade, tanto que o texto dela resultante ficou conhecido como “Constituição Cidadã”.

Mas o professor Pietro Alarcon tem certa razão aí em destacar a insuficiência da participação da classe operária nessa fundação. Sabe-se que a luta contra a ditadura por muitos anos foi encabeçada por estudantes e intelectuais e que o movimento pelas eleições democráticas somente teve adesão popular (e da classe operária) quando a ditadura já estava bem perto do seu fim, desgastada por fracassos na área econômica e já com muita pressão internacional.

Daí tem-se que o nosso período de “revolução” no sentido arendtiano foi muito curto para que corpos políticos mais robustos e representantes de fato das classes populares pudessem se organizar de forma a pactuar a Constituição – apesar de o seu texto final ter sido muito generoso na proteção de direitos individuais, políticos e sociais.

Nesse sentido, se, na esteira de autores como Norberto Bobbio[2], transcendermos o ordenamento jurídico positivo para buscar o acordo originário entre os membros da sociedade e aqueles aos quais foi confiado o poder de constituir uma nova ordem jurídica (poder constituinte), será possível constatar que houve falhas no entendimento da vontade coletiva justamente por não ter sido viabilizado um debate aberto na sociedade brasileira no período de redemocratização.

Bobbio explora a figura da norma fundamental como fonte primária do Direito (positivo), na medida em que ela obriga uma determinada sociedade a obedecer ao poder constituinte originário. No caso brasileiro, para que a norma fundamental tivesse força real e não sofresse os ataques atuais (violações de cláusulas pétreas), era preciso que toda a sociedade e todas as forças políticas fossem incluídas no próprio processo de formação da Assembleia Constituinte, o que demandaria um certo tempo de maturação, principalmente se consideramos a falta de experiência democrática brasileira à época.

Tivemos uma Assembleia Constituinte composta por mentes brilhantes e um texto redigido pelos melhores juristas do país, mas não tivemos deliberações nos municípios, discussões, devoluções de texto, enfim, entendimento popular sobre os dispositivos que seriam incluídos na Constituição Federal.

É nesse aspecto que a insistência de Hannah Arendt pelo sistema distrital, pela formação de Conselhos, pela municipalização dos debates políticos ganha importância.

A partir do momento em que a norma fundamental empoderou o “poder constituinte originário”, é possível dizer que o “poder de dominação do Estado” - emprestando-se aqui os termos de Jellinek[3] - instaurou-se antes mesmo que se pudesse explorar de forma concreta o “poder de associação” das classes populares que por tanto tempo se subjugaram a uma ditadura opressora.

Entretanto, sobreleva anotar que a falta de conhecimento e de educação para lutar pelas liberdades individuais já previstas e petrificadas no texto constitucional decorre mais da ausência de participação popular nos assuntos públicos após a vigência da Constituição de 1988, do que de sua atuação insuficiente no ato da fundação.

Apesar do papel muito significativo e atuante de sindicatos e movimentos sociais na defesa dos direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988, a verdade é que o povo brasileiro não conseguiu se apropriar dela ao ponto de entender a importância de sua defesa.

E a ignorância sobre as benesses dos direitos e garantias fundamentais consagrados em nossa Constituição dá vazão à dominação e ao empoderamento de correlações de força contrárias a esses direitos.

Como alerta Foucault, “desde a Idade Média, nas sociedades ocidentais, o exercício do poder sempre se formula no direito[4]. A mistura entre o jurídico e o político e a utilização do próprio sistema do direito para que mecanismos de poder, sob a aparência da legalidade, comentam injustiças, é uma prática antiga.

Apesar de reconhecer que o direito se funda na relação Soberano-Lei, na necessidade de limitação dos poderes do rei, do Estado, do Leviatã, Foucault[5] acerta ao concentrar seus estudos na microfísica do poder e na dominação que determinados setores exercem, inclusive utilizando-se do direito como instrumento, para sujeitar a maioria do corpo social à sua vontade, utilizando-se de procedimentos, técnicas, instituições, que podem passar até mesmo despercebidos se vistos isoladamente.

Portanto, por trás das recentes reformas trabalhista e previdenciária, que violam o texto constitucional ao suprimir direitos fundamentais, e por trás das sucessivas violações de liberdades individuais provocadas por um aparelho policial-jurídico-midiático punitivo, temos as correlações de força entre setores político-financeiros neoliberais e reacionários, que, aliados ao  poder-discursivo da mídia, utilizam-se do sistema jurídico para sujeitar a maior parte da população a uma passividade desconcertante.

Essa passividade não ocorreria, porém, se os instrumentos de democracia participativa já previstos na Constituição Federal estivessem em pleno funcionamento. Audiências públicas para discutir projetos de lei e emendas constitucionais, deliberações em conselhos municipais, plebiscitos, referendos, são garantias de inclusão da população nas decisões estatais.

Como defende Hannah Arendt, uma revolução pela democracia não pode simplesmente dar liberdade ao povo, sem fornecer espaço para que essa liberdade seja exercida: não são apenas os representantes do povo, mas o próprio povo que deve ter oportunidade de “expressar, discutir e decidir” os assuntos do Estado, sob o risco de cair na letargia e na perigosa indiferença aos assuntos públicos.

Quando a liberdade pública se torna privilégio de uma minoria, que é o que ocorre hoje com nossa democracia representativa extremamente disfuncional e com o enorme déficit democrático que o sistema eleitoral proporcional gerou, abre-se a possibilidade para a instauração de um verdadeiro Estado de Exceção agambeniano[6], com a supressão de liberdades individuais a pretexto de necessidades inexistentes e injustificáveis.

E se a violência é instauradora ou mantenedora do direito, como ensinam Walter Benjamin[7] e Giorgio Agamben, agora é a hora das classes populares se insurgirem, de defenderem essa Constituição que ainda sobrevive, enfrentando-se e contestando-se o manejo que tem sido feito do próprio sistema de justiça para autorizar terríveis medidas de exceção.

É este o momento de rearranjar as correlações de força e retomar o poder soberano do povo, seja pela greve, seja por manifestações, seja pela revolução, mas sempre pelo exercício efetivo da liberdade pública, já que a permanência da apatia e da rejeição à política inevitavelmente nos conduzirá a um Estado de Exceção permanente, ou, como muitos juristas e cientistas políticos já vislumbram, ao Estado Pós-Democrático.

 

[1] ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. 1ª Ed. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

[2] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Edipro.

[3] JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. Buenos Aires: Albatros, 1970.

[4] FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, vol. 1, A vontade de Saber. 13ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

[5] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 25ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

[6] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 1ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

[7] BENJAMIN, Walter. Escritos sobre Mito e Linguagem. 2ª ed. São Paulo: Editora 32, 2013.