Gabriela Araujo

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Violência política de gênero: a inconvencionalidade parcial por omissão da lei brasileira frente ao direito internacional

Artigo de Gabriela Araujo originalmente publicado no livro “Filosofias das abordagens jurisdicionais no direito constitucional e internacional”, organizado por Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, Débora Cristina Veneral, Alexandre Coutinho Pagliarini.

Por Gabriela Shizue Soares de Araujo e Marina Faraco Lacerda Gama

  1. Introdução

“Violência política de gênero”, “violência política sexista” e “violência política contra as mulheres” são os termos que vêm sendo utilizados nos últimos anos pela Academia para delimitar o campo de pesquisa e a coleta de dados sobre um fenômeno que, infelizmente, malgrado tenha sempre existido, vem ganhando cada vez maior intensidade e gravidade, na mesma proporção com que as mulheres têm aumentado - ainda que timidamente e de modo insuficiente – sua participação nos espaços públicos de poder e decisão.

Em verdade, a violência política é apenas uma das muitas facetas pelas quais se manifesta a violência contra a mulher, compreendida como qualquer forma de discriminação baseada no gênero, cuja conduta cause dano ou sofrimento físico, sexual, econômico, simbólico ou psicológico à mulher tanto no âmbito privado quanto no público.

A desigualdade, a discriminação e a violência contra a mulher formam uma doença social global cujas origens remontam a séculos e séculos de negação jurídico-legal de direitos civis e políticos às mulheres, em benefício da dominação masculina e da subalternidade feminina a uma esfera doméstica e privada permeada por estereótipos abusivamente misóginos, sob os quais foram construídos uma injusta divisão sexual do trabalho e padrões artificiais dos papeis ideologizados de gênero.

Basta lembrar que, na esmagadora maioria dos países ditos democráticos do Ocidente, as mulheres apenas conquistaram seus direitos políticos na primeira metade do século XX, a exemplo do Brasil (1932) e da França (1945), ainda assim convivendo por longas décadas com legislações misóginas em outras searas, como o Código Penal Brasileiro de 1940, cujo texto, alterado somente no início deste século, tratava dos “crimes contra os costumes” e dava peculiar proteção apenas à “mulher honesta”.

Se a própria democracia moderna foi fundada sob os princípios do patriarcado, não é por um acaso que, ainda nos tempos atuais, as mulheres permanecem em uma luta abissalmente desigual para romper com os estereótipos de gênero que lhes foram arbitrariamente impostos no decorrer de séculos, buscando ocupar espaços públicos de poder e liderança quase hegemonicamente dominados pelos homens, o que acaba colocando em maior evidência, e invariavelmente como alvos, as que se propõem a disputar cargos eletivos e, em especial, aquelas que sucedem em eleger-se.

Em agosto de 2022, de acordo com a União Interparlamentar, a média mundial de participação feminina nos parlamentos era de 26,4%, enquanto a média das Américas era de 34,4%i. No Brasil, em que 52,8% do eleitorado apto a votar é composto por mulheres, foi somente em 2018 que se chegou aos 15% de representação feminina na Câmara dos Deputados, e isso em razão de políticas afirmativas potencializadas por decisões advindas do Poder Judiciário. Até então, e mesmo com a promulgação da Constituição de 1988, os percentuais de mulheres na Câmara dos Deputados nunca chegavam sequer a 10% dos assentos.

Essa medida da desigualdade política de gênero é um reflexo direto da discriminação e violência política sofridas pelas mulheres brasileiras, que ganha contornos ainda maiores ao se adicionar diversas outras opressões interseccionais, como raça, classe, escolaridade, orientação sexual e identidade de gênero.

Para combater essa violência, foram adotados, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OAS) e da Comissão Interamericana de Mulheres, seu organismo especializado, convenções internacionais que veiculam diversas diretrizes aos seus países-membros. Na qualidade de integrante de tais organizações, o Brasil compromete-se não apenas a cumprir tais comandos normativos, mas também, especialmente, a adequar sua legislação interna a essas diretrizes regionais.

Contudo, apesar da inegável relevância da edição de uma norma contendo regras para reprimir a violência política contra mulher, as medidas previstas pela Lei Federal n. 14.192, de 4 de agosto de 2021, mostram-se insuficientes diante desse arcabouço legislativo internacional obrigatório para o Estado brasileiro.

Nesse sentido, este artigo busca demonstrar a inconvencionalidade parcial por omissão da Lei Federal n. 14.192/2021 no que diz respeito ao enfrentamento do problema da desigualdade, da discriminação e da violência política de gênero no Brasil frente ao direito internacional, diante da insuficiência de seus comandos para dar efetivo cumprimento às diretrizes emergentes da Convenção de Belém do Pará, da Declaração sobre Assédio Político e Violência contra as Mulheres e da Lei e do Protocolo Modelos da Comissão Interamericana de Mulheres para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres na Vida Política, acordos regionais vinculantes ao Estado brasileiro, na condição de membro da Organização dos Estados Americanos e da Comissão Interamericana de Mulheres, seu organismo especializado.

Para tanto, no primeiro item, será apresentado o quadro atual sobre a violência política de gênero no Brasil, a partir de dados e pesquisas disponíveis sobre a temática, muito embora tenha sido objeto de específica investigação tardiamente no país, em comparação com outros países, especialmente impulsionada pelo processo que culminou no impeachment da primeira e única mulher eleita presidente no país, Dilma Rousseff (PT), em 2016, e posteriormente pelo feminicídio político cometido contra a vereadora Marielle Franco (PSOL), no Rio de Janeiro, em 2018.

No segundo item, será apresentado o conteúdo da normativa internacional já existente quanto à prevenção e repressão da violência política contra a mulher, para, então, no terceiro tópico, procedermos à análise específica da Lei Federal n. 14.192/2021, demonstrando sua insuficiência para o enfrentamento do problema da desigualdade, discriminação e violência política de gênero no Brasil frente as diretrizes convencionais obrigatórias para o Estado brasileiro.

2. Violência política contra a mulher no Brasil

A trajetória política da ex-presidente Dilma Rousseff, única mulher da história a ocupar o maior cargo eletivo do país, pode ser utilizada como um exemplo de como se expressa a violência política contra as poucas mulheres que conseguem alçar postos de poder no Brasil.

Marlise Matos lembra que, a partir do momento em que se elegeu, Dilma sofreu – inclusive com a participação de boa parte da imprensa – diversas formas de violência política sexista, como, por exemplo (MATOS, 2019, passim.), sendo frequentemente diminuída como subserviente e dependente do apadrinhamento e da influência política de uma figura masculina (no caso, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu antecessor) ou de alguns de seus Ministros homens; quando os poucos elogios que lhe eram feitos se submetiam à sua estereotipagem de figura maternal, reforçando o papel doméstico e a injusta divisão sexual do trabalho que discrimina as mulheres (“Dilmãe”, “mãe do PAC”); e, por fim, a extrema misoginia que a qualificou direta ou tacitamente, inclusive pelos veículos de comunicação, com adjetivos estigmatizadores em razão de seu gênero, como confusa, burra, bruxa, histérica e/ou louca, adicionados de críticas com relação à sua aparência e feminilidade, ou a padrões comportamentais dissonantes do que o patriarcado entende como autorizáveis a uma mulher.

Com efeito, em artigo publicado em coletânea organizada por Manuela D´Avila, que reúne relatos da violência política de gênero no Brasil, Dilma Rousseff denuncia a participação direta da mídia nos ataques misóginos por ela sofridos, apresentando um depoimento pessoal sobre as opressões e violências sofridas enquanto exercia seu mandato na Presidência da República:

Vou enfatizar, neste texto, uma das formas empregadas pelo aparato midiático dos grandes grupos de comunicação com objetivo de influenciar, controlar, distorcer e, enfim, dominar a visão da sociedade sobre mim e o meu governo, propiciando a ruptura institucional do golpe de 2016, com o suporte específico da misoginia. (ROUSSEFF, 2021, p. 49)

Ao descrever a foto oficial do Ministério nomeado pelo então vice-presidente que a substituiu, Michel Temer, Rousseff conta que viu um “retrato da ordem misógina” em “um pódio da vitória do patriarcado neoliberal”:

um numeroso grupo de homens exclusivamente homens, não por acaso, também, todos brancos e nenhum deles jovem, sucedendo o governo de uma mulher, num período em que houvera (ROUSSEFF, 2021, p. 49)

O retrocesso, porém, não foi momentâneo, como bem observado por Marlise Matos: as prolongadas e multidirecionadas violências sexistas sofridas pela ex-presidente Dilma Rousseff, além de terem colaborado para o processo de seu impeachment e de seu afastamento temporário do cenário político, também facilitaram “o acesso de novas candidaturas masculinas ao cargo, reforçando o estereótipo do fracasso das mulheres políticas” (MATOS, 2019, p. 208.), o que, em nossa avaliação, pode contribuir para que ainda fiquemos por um bom período sem conseguir viabilizar uma nova candidatura feminina com chances reais de vitória para a Presidência do Brasil.

Aliás, o efeito dominó já pode ser constatado pelo percentual de mulheres à frente do Poder Executivo no país: em 2018, somente o Estado do Rio Grande do Norte elegeu uma mulher como governadora, Fátima Bezerra (PT), entre todas as 27 unidades federativas do Brasil; sendo que, dos 5.570 municípios espalhados pelo território nacional, apenas 12,04% são administrados por mulheres prefeitas.

A arraigada resistência sexista, colonialista e racista à inclusão de vozes dissonantes do homem cis heteronormativo nos espaços que secularmente vêm sendo privilégio exclusivo dessa minoria social, que contribuiu para usurpar o mandato de uma mulher legitimamente eleita pelo voto de milhões de brasileiras e brasileiros, não raro – e, na verdade, com cada vez maior intensidade – vem eclodindo em variadas formas de violência física, como ocorreu no emblemático feminicídio político cometido contra a vereadora Marielle Franco (PSOL/ RJ), em pleno centro da cidade do Rio de Janeiro.

O intuito final de toda forma de violência contra a mulher na política é afastá-la desse espaço, como forma de manutenção do privilégio masculino, seja pressionando-a a desistir, seja usurpando seu mandato ou posição alcançada, seja, em última instância, tirando-lhe a própria vida.

Quando se acrescentam outros fatores interseccionais, como raça, classe, orientação sexual e identidade de gênero, a violência se acirra, tal como aconteceu com Marielle: negra, nascida e criada na comunidade ,assumidamente lésbica, defensora dos direitos humanos e das pautas da diversidade e inclusão, acumulava diversas identidades que destoavam do padrão hegemônico de correlação de forças que habita a esfera pública de poder e decisão. Foi vítima da violência política de gênero, racista e LGBTfóbica.

Sob essa perspectiva, o Instituto Marielle Franco, em pesquisa intitulada “A Violência Política contra as Mulheres Negras: Eleições 2020”, analisou o cenário de violência política eleitoral vivido pelas candidatas negras nas Eleições Municipais de 2020, tendo constatado oito tipos de violência política de gênero e raça sofridos pelas entrevistadas: violência virtual (78%), violência moral e psicológica (62%), violência institucional (55%), violência racial (44%), violência física (42%), violência sexual (32%) e violência de gênero e/ou LGBTQIA+ (28%).

A violência política eleitoral, isto é, aquela cometida durante a campanha contra as mulheres candidatas, que foi o enfoque da pesquisa, é apenas uma das formas como a violência política contra a mulher pode se manifestar, visto que ela pode ocorrer até mesmo antes das mulheres conseguirem se validar como candidatas – com as mais diversas barreiras que são impostas pelos partidos políticos à paridade de gênero em suas estruturas –, acirrando-se especialmente contra as detentoras de mandato.

Nesse sentido, vale apresentar alguns dados da pesquisa “Perfil das Prefeitas no Brasil (2017-2020)”, conduzida pelo Instituto Alziras, que entrevistou 45% das 649 prefeitas eleitas em 2016:

Ao indicarem até três principais violências e/ou assédios sofri- dos, a maior parte das prefeitas (43%) afirmou já ter sido vítima de ataques verbais insinuados ou diretos diante de pronunciamentos, pautas ou relações estabelecidas por elas e 42% declararam ter sido alvo de ataques que as tenham ridicularizado, menosprezado ou reduzido sua capacidade, a partir de sua identidade como mulher (misoginia). É digno de nota que 1 em cada 4 prefeitas (25%) tenha sofrido agressões físicas ou ver- bais, enquanto 10% possuem familiares alvos de ameaças físicas ou de morte e outros 7% afirmam ter sido elas mesmas vítimas de ameaça de silenciamento ou morte com uso de força física.

Em qualquer situação, seja antes ou depois de eleitas, as mulheres sofrem um tipo de violência que muito diz respeito aos estereótipos de gênero e da dominação masculina a elas impostos.

Conforme estudo da entidade Terra de Direitos e Justiça Global, denominado “Violência Política e Eleitoral no Brasil – Panorama das violações de direitos humanos de 2016 a 2020” (LAURIS; CARVALHO; MARINHO; FRIGO, 2020), a violência política dirigida contra as mulheres está concentrada em ataques direcionados à sua dignidade e a um não reconhecimento de seu pertencimento no ambiente político, sobressaindo-se ao domínio das relações de poder heteropatriarcais, ao serem escolhidas, ao lado das pessoas LGBT- QIA+, como “vítimas preferenciais, de múltiplas maneiras, dos atos de violência envolvendo enfrentamentos na esfera política institucional e institucionalizada”:

Das situações de violência mapeadas pela pesquisa, a vitimização de mulheres apresenta características bem específicas. Vítimas preferenciais das ofensas, as mulheres políticas enfrentam formas específicas de agressões, como as violências físicas infligidas por seus pares ou por terceiros ou ameaças massivas virtuais. Nos casos em que foi possível identificar o sexo do autor da violência, os homens aparecem como autores em 100% dos casos de assassinatos, atentados e agressões e em mais de 90% dos casos de ameaças e ofensas (LAURIS; CARVALHO; MARINHO; FRIGO, 2020).

De acordo com essa pesquisa, embora se tenha buscado analisar todos os casos de violência política, independentemente de sexo, gênero, raça ou orientação sexual, “os atos ofensivos e discriminatórios mapeados têm como fundamento principal questões envolvendo misoginia, racismo, intolerância/racismo religioso e LGBTQIA+ fobia”, sendo as mulheres políticas negras as mais afetadas. Ou seja, homens brancos cis heteronormativos, em regra, podem ser colocados no lugar do agressor, mas raramente no lugar da vítima desse tipo de violência.

Entre os episódios de violência política de gênero institucional cometidos pelos próprios agentes políticos contra as mulheres que “ousam” dividir os mesmos espaços que eles, um dos mais escandalosos foi praticado pelo então deputado federal Jair Bolsonaro, quando, ainda em novembro de 2003, disse à deputada Maria do Rosário, diante das câmeras da RedeTV, nos corredores do Congresso Nacional, que não a estupraria porque ela “não merecia”. Onze anos depois, em 9 de dezembro de 2014, o mesmo deputado foi reincidente nas ofensas, dessa vez no Plenário da Câmara dos Deputados.

Posteriormente, em entrevista ao jornal Zero Hora, Jair Bolsonaro justificou suas ofensas misóginas pelos atributos físicos da deputada, inclusive reforçando a visão de que os homens disporiam sistematicamente dos corpos femininos, em óbvia incitação à violência sexual contra as mulheres: “Ela não merece porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece”.

A não aplicação de qualquer punição pelo Conselho de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados, majoritariamente masculino, bem como a lentidão para que as medidas jurisdicionais penais tramitassem, permitiu que tais atos de violência permanecessem até hoje impunes e que a carreira política do agressor se mantivesse intocada, até que se elegesse Presidente da República, em 2018, o que passou à coletividade a imagem de que o machismo e a misoginia são até mesmo premiados pelo status quo.

 Episódio mais recente levou a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, em 1º de abril de 2021, após intensa pressão midiática e da opinião pública, a suspender, pela primeira vez em toda a sua história, um deputado após as câmeras do circuito interno da referida Casa de Leis flagrarem o momento em que, em meio a uma sessão do Plenário, a deputada estadual Isa Penna (PSOL) teve seus seios tocados pelo deputado Fernando Cury (Cidadania).

Apesar da punição, vale notar que o próprio Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Casa, composto apenas por uma mulher como titular, havia aplicado anteriormente uma penalidade muito mais branda, reformada em sessão Plenária, e que, pela gravidade dos fatos, de acordo com a legislação internacional que trata da repreensão à violência política contra a mulher, o caso seria de perda do mandato, como será demonstrado no item a seguir.

Um ano depois, em sessão plenária realizada no dia 17 de maio de 2022, a mesma Casa de Leis, sob grande pressão popular, acabou por decretar a perda do mandato do deputado Arthur do Val, por quebra de decoro parlamentar, após a divulgação de áudios em que o então parlamentar se referia, de maneira misógina, sexista e objetificante, a mulheres ucranianas vítimas da guerra com a Rússia.

Percebe-se que, em poucos anos, a opinião pública e a consciência coletiva sobre as questões de gênero sofreram transformações importantes, e, aos poucos, a violência política de gênero passa a ser rechaçada de modo mais veemente como algo inadmissível, muito por conta do trabalho que vem sendo desenvolvido pela Academia, pelas organizações internacionais e pelas ativistas de direitos das mulheres para levantar dados e classificar esse tipo de violência como algo tão direcionado quanto corriqueiro.

3. Diretrizes normativas da OEA contra a violência política de gênero vinculantes ao Estado brasileiro

Infelizmente, foi em razão de um gravíssimo episódio de feminicídio político ocorrido em março de 2012 que a Bolívia entrou para a história como o país pioneiro no mundo a adotar, em sua legislação interna, mecanismos específicos de prevenção, atenção e sanção contra atos de assédio e ou violência política contra as mulheres.

A morte violenta de Juana Quispe Apaza, primeira mulher a ocupar a posição de conselheira (o equivalente a vereadora), no município de Ancoraimes de La Paz, foi o ápice de uma série de outras manifestações de violências institucionais por ela sofridas desde que fora eleita, reiteradamente sendo impedida por seus pares, inclusive com assédio judicial, de exercer plenamente seu mandato, o que causou grande comoção social e mobilização dos movimentos feministas, viabilizando a aprovação da Lei n. 243, de 28 de maio de 2012, que tipificou como crime o assédio e a violência política contra as mulheres, com a previsão de penas de prisão para os autores.

Em tradução livre, vale transcrever o art. 7º da lei, que contém as definições legais que diferenciam o assédio político da violência política naquele país:

Artigo 7. (DEFINIÇÕES). Para efeitos de aplicação e interpretação desta Lei, são adotadas as seguintes definições:

a.  Assédio político. Por assédio político entende-se o ato ou conjunto de atos de pressão, perseguição, asres, com a finalidade de encurtar, suspender, prevenir ou restringir as funções inerentes ao cargo, para induzi-las ou assédio ou ameaças, cometidos por pessoa ou grupo de pessoas, diretamente ou por meio de terceiros, contra candidatas, eleitas, nomeadas ou em exercício de função política – pública, ou contra seus familiares, com a finalidade obrigá-las a realizar, contra sua vontade, ação ou omissão, no desempenho de suas funções ou no exercício de seus direitosa. 

b.     Violência política. Entende-se por violência política as ações, comportamentos e/ou agressões físicas, psicológicas, sexuais cometidas por pessoa ou grupo de pessoas, diretamente ou por meio de terceiros, contra candidatas, eleitas, nomeadas ou em exercício de função política – pública, ou contra sua família, para encurtar, suspender, impedir ou restringir o exercício de seu cargo ou para induzi-la ou forçá-la a realizar, contra sua vontade, uma ação ou incorrer em uma omissão, no cumpri- mento de suas funções ou no exercício dos seus direitos.

A lei boliviana serviu como inspiração para que, em fevereiro de 2015, a Organização dos Estados Americanos (OEA) adotasse a Declaração sobre Assédio Político e Violência Contra as mulheres, primeiro acordo regional sobre a matéria que reconheceu a importância de definir o que é o assédio político e a violência contra a mulher para que se possa impor aos Estados-parte a obrigatoriedade de combatê-los e aplicar sanções aos infratores:

Que tanto o assédio político quanto a violência contra as mulheres podem incluir qualquer ação, conduta ou omissão, entre outros, com base em seu gênero, individual ou coletivamente, que tenha o propósito ou resultado de minar, anular, impedir ou restringir seus direitos políticos, violar os direitos das mulheres a uma vida livre de violência e a participar de assuntos políticos e públicos em condições de igualdade com os homens; Que a violência política e o assédio contra as mulheres as impeçam de serem reconhecidas como sujeitos políticos e, assim, desencorajam muitas mulheres a entrar para ou a continuar suas carreiras políticas. (tradução nossa)

Referido documento, na prática, apenas aperfeiçoou algo que já estava previsto de uma forma mais genérica, desde 1994, pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), na qual consta que a violência contra a mulher deve ser entendida como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.

Além de afirmar que o uso da violência simbólica como um instrumento de discussão política afeta gravemente os direitos políticos das mulheres, a Declaração sobre Assédio Político e Violência contra as Mulheres estatui que o assédio político e a violência política contra a mulher assumem maior gravidade quando perpetrados por autoridades ou agentes públicos, muito embora reconheça que tais violências podem ocorrer em qualquer área da vida pública e política, incluindo-se na lista de possíveis agressores as instituições governamentais, os partidos políticos, as organizações sociais e os veículos de comunicação, entre outros.

Em 2017, também no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Comissão Interamericana de Mulheres (CIM), igual- mente inspirada na lei boliviana, e como consecução do Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará, adotou a Lei Modelo Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra as Mulheres na Vida Política, reconhecendo que a violência que se exerce contra as mulheres na vida política constitui uma grave violação aos direitos humanos das mulheres e uma ameaça à própria subsistência da democracia, impondo aos Estados-parte que adotem todas as medidas necessárias à sua erradicação, nos seguintes termos: 

condiciones o el ambiente donde la mujer desarrolla su actividad polí- tica y pública; e) Amenacen, asusten o intimiden en cualquier forma a una o varias mujeres y/o a sus familias, y que tengan por objeto o resul- tado anular sus derechos políticos, incluyendo la renuncia al cargo o función que ejercen o postulan; f) Restrinjan o anulen el derecho al voto libre y secreto de las mujeres; g) Difamen, calumnien, injurien o realicen cualquier expresión o acción que desacredite a las mujeres en ejercicio de sus funciones políticas, con base en estereotipos de género, con el objetivo o el resultado de menoscabar su imagen pública y/o limitar o anular sus derechos políticos; h) Amenacen, asusten o intimi- den en cualquier forma a una o varias mujeres y/o a sus familias, y que tengan por objeto o por resultado menoscabar sus derechos políticos;

i) Amenacen, agredan o inciten a la violencia contra las defensoras de los derechos humanos por razones de género, o contra aquellas defen- soras que defienden los derechos de las mujeres; j) Usen indebidamente el derecho penal sin fundamento con el objeto de criminalizar la labor de las defensoras de los derechos humanos y/o de paralizar o deslegiti- mar las causas que persiguen; k) Discriminen a la mujer en el ejercicio de sus derechos políticos, por encontrarse en estado de embarazo, parto, puerperio, licencia por maternidad o de cualquier otra licencia justifi- cada, de acuerdo a la normativa aplicable; l) Dañen en cualquier forma elementos de la campaña electoral de la mujer, impidiendo que la com- petencia electoral se desarrolle en condiciones de igualdad; m) Propor- cionen a los institutos electorales datos falsos o información incompleta de la identidad o sexo de la persona candidata y designada con objeto de impedir el ejercicio de los derechos políticos de las mujeres; n) Res- trinjan los derechos políticos de las mujeres debido a la aplicación de tradiciones, costumbres o sistemas jurídicos internos violatorios de la normativa vigente de derechos humanos; o) Divulguen imágenes, men- sajes o revelen información de las mujeres en ejercicio de sus derechos políticos, por cualquier medio físico o virtual, en la propaganda políti- co-electoral o en cualquier otra que, basadas en estereotipos de género transmitan y/o reproduzcanrelaciones de dominación, desigualdad y dis- criminación contra las mujeres, con el objetivo de menoscabar su imagen pública y/o limitar sus derechos políticos; p) Obstaculicen o impidan el acceso a la justicia de las mujeres para proteger sus derechos políticos;

q) Impongan sanciones injustificadas y/o abusivas, impidiendo o restrin- giendo el ejercicio de sus derechos políticos en condiciones de igual- dad; r) Limiten o nieguen arbitrariamente el uso de cualquier recurso y/o atribución inherente al cargo político que ocupa la mujer, impidiendo elDe acordo com as obrigações estabelecidas na Convenção Inte- ramericana sobre prevenção, punição e erradicação da violên- cia contra as mulheres e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, tendo em conta o arcabouço jurídico internacional, interamericano e nacional sobre os direitos políticos das mulheres, a Declaração sobre Violência Política e Assédio, e os mandatos que lhe são próprios, a Comissão de Especialistas (CEVI) do Mecanismo de Acompanhamento da Aplicação da Convenção de Belém do Pará (MESECVI) adota a Lei Modelo Interamericana de Pre- venção, Punição e Erradicação da Violência contra a Mulher na Vida Política, através da qual a violência contra a mulher na vida política é considerada uma forma de violência a nível internacional. O objetivo desta Lei Modelo é servir de base jurídica e fornecer aos Estados o arcabouço legal necessário para garantir o direito da mulher a uma vida política livre de violência e, assim, avançar no processo de harmonização dos sistemas jurídicos nacionais com as disposições estabelecidas na Convenção. (tradução nossa)

A Lei Modelo Interamericana estabelece sanções que envolvem, aos agentes políticos, desde a suspensão ou a inabilitação para futuras can- didaturas, como a expulsão de seus partidos, até a perda de mandatos, a depender da gravidade dos fatos, recomendando aos Estados-parte que as adotem em suas legislações internas contra aqueles que come- tam violência política de gênero.

Penalidades semelhantes também foram previstas pela mesma Comissão Interamericana de Mulheres (CIM), em 2019, quando adotou o Protocolo Modelo para Partidos Políticos: Prevenir, Atender, Punir e Erradicar a Violência contra Mulheres na Vida Política:

Em função da gravidade dos atos cometidos e de acordo com as disposições do regimento interno do partido político, as san- ções podem incluir: a) admoestação privada, por escrito e/ou verbalmente; b) admoestação pública, por escrito e/ou verbal- mente; c) destituição do cargo nos órgãos de representação e direção do partido político; d) inabilitação para participar nos órgãos de direção e representação do partido político; e) sus- pensão temporária de direitos partidários; f) recusa ou cance- lamento de seu registro como pré-candidato; g) cancelamento da filiação do partido político. (tradução nossa)

Considerando que o Brasil é membro da OEA e da Comissão Interamericana de Mulheres (CIM)ii, deve, em âmbito nacional, observar todas essas diretrizes normativas aprovadas no âmbito dessa organização regional e de seu organismo especializado, nos termos do Artigo 2º da Carta da OEA e do Artigo 3º, “i”, do Estatuto da CIM.

Disto decorre a necessidade de plena compatibilização do ordena- mento jurídico doméstico aos compromissos internacionalmente assumidos pelo Estado brasileiro, além de o dever de os próprios partidos políticos estabelecerem, em seus regimentos internos, medidas sancionatórias aplicáveis aos membros que comentam violência política de gênero, de modo a coibir e punir sua prática, na forma do Protocolo e das demais diretrizes convencionais em questão.

4. A inconvencionalidade parcial por omissão da nova lei brasileira de combate à violência política contra a mulher frente ao direto internacional

A primeira lei brasileira a tratar especificamente sobre a violência política contra a mulher foi publicada em 5 de agosto de 2021. Trata-se da Lei Federal n. 14.192/2021v, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher.

Em seus primeiros artigos, a norma em questão dedica-se à delimitação do conceito de violência política contra a mulher e das garantias para prevenir, reprimir e combater esse tipo de conduta, da seguinte maneira:

Art. 1º Esta Lei estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, nos espaços e atividades relacionados ao exercício de seus direitos políti- cos e de suas funções públicas, e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais e dispõe sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral.

Art. 2º Serão garantidos os direitos de participação política da mulher, vedadas a discriminação e a desigualdade de tra- tamento em virtude de sexo ou de raça no acesso às instâncias de representação política e no exercício de funções públicas.

Parágrafo único. As autoridades competentes priorizarão o ime- diato exercício do direito violado, conferindo especial impor- tância às declarações da vítima e aos elementos indiciários.

Art. 3º Considera-se violência política contra a mulher toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obs- taculizar ou restringir os direitos políticos da mulher.

Parágrafo único. Constituem igualmente atos de violência polí- tica contra a mulher qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo.

É de se notar a vaguidade com que a proteção à mulher vítima de violência política é tratada pela lei brasileira, já que, ao contrário da Lei e do Protocolo Modelos da Comissão Interamericana de Mulheres, não se exemplifica, aqui, as múltiplas formas de violência, inclusive simbólicas, psicológicas e econômicas que podem ser utilizadas para afastar uma mulher da política, tampouco se estabelecem as formas como serão garantidos os direitos políticos das mulheres.

Igualmente, as sanções previstas, em complemento às leis preexistentes, também não solucionam essa sensação de vaguidade, além de se mostrarem insuficientes, como se pode extrair de inúmeros de seus dispositivos, entre os quais merece destaque seu art. 4º, que altera o Código Eleitoral da seguinte forma:

Art. 4º. A Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleito- ral), passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 243. Não será tolerada propaganda: […]

X – que deprecie a condição de mulher ou estimule sua dis- criminação em razão do sexo feminino, ou em relação à sua cor, raça ou etnia.

Art. 323. Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado: […]

§ 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até metade se o crime: […]

II – envolve menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia.

Art. 326-B. Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou amea- çar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discrimi- nação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha elei- toral ou o desempenho de seu mandato eletivo. […]

Art. 327. As penas cominadas nos arts. 324, 325 e 326 aumen- tam-se de 1/3 (um terço) até metade, se qualquer dos crimes é cometido: […]

IV – com menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia; […] (grifo nosso)

Também os arts. 5º e 6º da norma federal em questão, ao altera- rem a Lei dos Partidos Políticos e a Lei das Eleições para determinar, respectivamente, que o Estatuto de cada partido contenha normas específicas para combater a violência política contra a mulher e exigir a presença proporcional de homens e mulheres nos debates, adotam diretrizes genéricas, dificultando a efetiva aplicação de tais comandos:

Art. 5º O caput do art. 15 da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos), passa a vigorar acrescido do seguinte inciso X:

Art. 15. O Estatuto do partido deve conter, entre outras, nor- mas sobre: […]

X – prevenção, repressão e combate à violência política con- tra a mulher.

Art. 6º. O inciso II do caput do art. 46 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997(Lei das Eleições), passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 46. […]

II – nas eleições proporcionais, os debates poderão desdobrar-se em mais de um dia e deverão ser organizados de modo que asse- gurem a presença de número equivalente de candidatos de todos os partidos que concorrem a um mesmo cargo eletivo, respei- tada a proporção de homens e mulheres estabelecida no § 3º do art. 10 desta Lei; […]. (grifo nosso)

Inobstante seja louvável e extremamente necessária a aprovação de uma lei que tipifique a violência política de gênero como crime, impondo inclusive pena de reclusão aos seus infratores, a norma em questão não contempla os meios efetivamente possíveis e já contemplados na normativa convencional obrigatória e vinculante ao Estado brasileiro para de fato prevenir e punir qualquer forma de violência política contra as mulheres, como, por exemplo, a perda de mandato e a inelegibilidade quando os agressores sejam agentes políticos.

Ainda quando estabelece aos partidos políticos a obrigatoriedade de adequação de seus estatutos, a norma não indica as sanções a serem aplicadas aos filiados eventualmente condenados por atos criminosos contra mulheres ou por condutas éticas envolvendo a prática da miso- ginia, tais como a suspensão ou a expulsão do partido e a inabilitação para o registro de candidatura, mecanismos já consagrados na Lei e no Protocolo Modelos da Comissão Interamericana de Mulheres, da qual o Brasil é membro.

A lei brasileira também nada trata a respeito da exigibilidade de que os órgãos públicos, incluindo Executivo, Legislativo e Judiciário, e em especial a Justiça Eleitoral, estabeleçam punições adequadas que afastem eventuais agentes políticos de seus cargos em tais hipóteses, como recomendam as diretrizes da CIM, o que fragiliza a efetiva punição e a devida repressão à violência política de gênero, necessárias para pro- mover uma verdadeira mudança na cultura interna dos partidos, capaz de repercutir em toda a sociedade.

Tomando como base as diretrizes da Lei Modelo da Comissão Interamericana de Mulheres, que prevê o afastamento de imunidades parlamentares em caso de violência política contra a mulher, também seria possível estabelecer a obrigatoriedade das casas legislativas ade- quarem seus regimentos internos para acrescentar esse tipo de crime como causa específica de quebra de decoro parlamentar, complementando a exigência de que os partidos políticos estatuam sanções aos seus filiados violadores de direitos políticos das mulheres, o que a norma não previu.

Com efeito, a lei brasileira falha ao não concretizar todas as normativas regionais que são vinculantes ao Estado brasileiro, deixando de estabelecer às instituições públicas e aos atores sociais a efetiva obrigatoriedade de implementarem “em seus regulamentos internos condutas de boas práticas relacionadas à inclusão e não discriminação de gênero, além da paridade em órgãos colegiados e alternância/rotatividade de poder nos cargos diretivos”.

A insuficiência da legislação brasileira em dar efetivo cumpri- mento às diretrizes convencionais em questão acarreta sua inconvencionalidade parcial por omissão, na medida em que esta não é capaz, de maneira plena, de garantir efetivo cumprimento de tais comandos internacionais.

Luiz Guilherme Arcaro Conci e Bruno Barbosa Borges esclarecem que, em um sentido estrito, a omissão inconvencional será observada quando:

se detecta normas convencionais que demandam normas internas para sua efetividade e o Estado-parte se omite, não criando tais leis em seu ordenamento jurídico doméstico, impossibilitando o cumprimento do tratado. Desse modo, o tratado internacional permanece como uma norma poética, sem vida, sem sentido, sem alcance e sem finalidade, pois não é integrado ao ordenamento que soberanamente o admitiu.”

Assim, a inconvencionalidade por omissão se caracteriza justa- mente pela ausência de norma interna capaz de regular suficientemente os direitos consagrados na legislação convencional a que o Estado esteja vinculado, dando-lhe efetivo e integral cumprimento. Nas palavras de Víctor Bázani, a omissão em estabelecer disposições que tornem pos- sível o cumprimento de um tratado internacional significa uma inconvencional agressão por omissão às suas normas, permitindo seu controle jurisdicional.

No caso da Lei Federal n. 14.192/2021, essa insuficiência se caracteriza de modo parcial, como já demonstrado, na medida em que seus ditames não são capazes de atender plenamente àqueles comandos convencionais.

Com efeito, o dever de adequar o ordenamento nacional a essas diretrizes, “seja de forma negativa, invalidando as normas que lhe sejam contrárias, seja de forma positiva, produzindo regras aptas a garantir sua plena execução”ii, decorre do fato de o Brasil ser membro da OEA e da CIM, comprometendo-se internacionalmente a observar as nor- mas convencionais aprovadas no âmbito desses organismos.

Sem dúvida, somente por meio de “previsões claras em seus Códigos de Ética internos” e de uma legislação ampla que efetivamente regulamente a violência política de gênero e permita uma “real aplicação de sanções duras a filiados, dirigentes e representantes eleitos (parlamentares e chefes do Executivo) que comprovadamente come- terem violência política de gênero, ou qualquer tipo de discriminação em razão de gênero” é que será possível a mudança da dura realidade das mulheres políticas no Brasil, o que a Lei Federal n. 14.192/2021, infelizmente, não contemplou.

Conclusões

O que se percebe é que o Brasil ainda carece de mecanismos de proteção capazes de promover a efetiva paridade e concretização dos direitos políticos das mulheres, diante da abissal desigualdade de gênero constatada nos espaços de representação, como demonstram as pesquisas que, embora ainda esparsas, dão conta do frequente assédio político e da violência política de gênero vivenciados pelas mulheres brasileiras que se propõem, de alguma forma, a participar da vida pública e política do país.

No ranking mundial de participação feminina nos parlamentos, atualizado mensalmente pela União Interparlamentar com a contribuição de 179 Estados-membros, em agosto de 2022, o Brasil ocupava a 146ª posição, atrás de todos os países da América Latina e, inclusive, de países de tradições mais conservadoras, como Etiópia, Arábia Saudita e Iraque, por exemplo.

As nações que ocupam o topo do ranking, em sua maioria, são aquelas que implementaram cotas de gênero e políticas afirmativas mais efetivas que as previstas atualmente no Brasil, como a reserva de assentos, por exemplo, além de reformas administrativas institucionais que garantiram a participação feminina em todos os espaços de poder, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário.

Nossa cultura política, tão resistente à democracia paritária, acaba retroalimentando também a violência de gênero. Sofremos com a sub-representação feminina em todas as instituições e com a resistência violenta das elites masculinas brancas hegemônicas em abdicar de seus privilégios historicamente construídos.

A solução somente virá com a instituição de cotas de gênero, de políticas afirmativas e de sanções eficazes e proporcionais à gravidade daquilo que deve ser denominado como ato criminoso: a violência política de gênero, a violência política sexista e a violência contra as mulheres na política.

Para tanto, basta simplesmente que o Brasil passe a adotar de maneira universalista a incorporação e a interpretação dos direitos humanos das mulheres, seguindo o exemplo de outros países, dando eficácia à normativa internacional cuja observância se comprometeu.

Os instrumentos internacionais citados neste artigo, tais como a Lei Modelo Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra as Mulheres na Política e o Protocolo Modelo para Par- tidos Políticos: Prevenir, Atender, Punir e Erradicar a Violência contra Mulheres na Vida Política, são apenas alguns dos diversos acordos internacionais que trazem diretrizes imprescindíveis para a implementação e a universalização da democracia paritária.

Mais do que a falta de vontade política, sofremos também pela ausência de um efetivo controle de convencionalidade em matéria de direitos humanos, para que avancemos em pautas tão importantes para o resto do mundo, que também deveriam ser prioritárias para o Brasil.

A igualdade de gênero é apenas uma dessas pautas, que, por si só, já expressa o tamanho de nosso atraso, se considerarmos que a maioria da população brasileira é composta de mulheres e pessoas negras, e, ainda assim, continuamos, em pleno século XXI, sendo governa- dos e conduzidos pela minoria de homens brancos.

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