A saúde dos povos indígenas e a obscuridade do governo
Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil, em 29 de maio de 2020, em co-autoria de Gabriela Araujo com o professor Flávio de Leão Bastos Pereira. Para ler a versão original, clique aqui.
Darcy Ribeiro, em sua clássica obra Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno, ensinou que a história da relação entre a sociedade dominante e os povos indígenas do país constitui-se numa história marcada por chacinas e epidemias; ainda mais, que as doenças pulmonares encontram-se entre as principais causas da redução das populações indígenas no Brasil1. E diante da omissão do Estado brasileiro ao longo dos séculos, nada parece ter mudado de forma relevante. De acordo com a Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil, vinculada ao Ministério da Saúde, e que acompanha diariamente o avanço da doença em populações indígenas localizadas em áreas rurais, até o dia 27 de maio, foram registrados 1119 casos e 45 mortes de indígenas nessas regiões2.
Embora não exista um monitoramento oficial do Ministério da Saúde também sobre os casos de indígenas afetados pela Covid-19 nas zonas urbanas, com base em levantamentos realizados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que acompanha o avanço do vírus por meio do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, se forem levados em conta os indígenas das zonas urbanas, o número é bem maior: 1.140 casos e 131 mortes3, a maioria na região do Amazonas. Isso sem contar as subnotificações, cujas estimativas apontam que sejam muitas.
Ainda no começo do alastramento da Covid-19 pelo Brasil, foi publicada uma nota conjunta, em 21 de março, assinada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em que se fazia um alerta sobre o maior grau de vulnerabilidade dos povos indígenas à doença, em razão da “iniquidade previamente instalada em suas condições de vida e situações de saúde, que tende a afetá-los de modo mais negativo”.
Clamando por garantias de isolamento, ações de controle, conscientização e vigilância, e planos emergenciais, entre outros, garantidores de maior proteção a essas populações, a nota faz referência a diversos estudos que “mostram elevadas prevalências de diferentes doenças e agravos à saúde na população indígena, como desnutrição e anemia em crianças, doenças infecciosas como malária, tuberculose, hepatite B, entre outras, além da ocorrência cada vez mais frequente, em adultos, de hipertensão, diabetes, obesidade e doenças renais”. Ou seja, por natureza, os indígenas já se enquadram no grupo de risco, tanto é assim que estão na prioridade da vacinação contra a gripe, tal qual os idosos.
Infelizmente, parece que o alerta realizado há dois meses não foi suficiente para evitar o pior. Sabe-se que hoje a região amazônica, onde concentram-se tantas populações indígenas, e especialmente atingida pela pandemia, a ocupação dos leitos de UTI já é maior que 80%. Erros como a centralização de leitos em Manaus, num Estado de grandes dimensões como o Amazonas, além da ausência de vias de transporte às comunidades indígenas, como a Yanomami, onde somente se chega por transporte aéreo, prenunciam um cenário genocida. É preciso, portanto, que o Estado e a sociedade atuem com rapidez, sob pena de marcarmos nossa história com mais um extermínio de povos indígenas.
Conforme se extrai da interpretação sistemática de diversos dispositivos da Constituição Federal Brasileira de 1988, é obrigação do Estado dar especial atenção à proteção da saúde, dentre outros direitos fundamentais, de mais de trezentas nações originárias, consideradas suas realidades e cosmologias, sua história marcada por etnocídios em parte impostos por guerras bacteriológicas que levaram ao desaparecimento milhões de indivíduos.
Não sem razão, o Sistema Único de Saúde (SUS), caracterizado que é por sua estrutura federativa, no que tange aos povos indígenas, apresenta especificidades cuja efetivação e eficácia exigem a promoção de sólidas políticas públicas estruturadas a partir também do conhecimento dos especialistas (antropólogos, médicos, historiadores etc.) com a pressuposição ainda de vontade política consistente na concretização dos objetivos da República constantes do artigo 3º da Constituição de 1988, dentre os quais, promover o bem de todos sem preconceitos de qualquer espécie, além da redução das desigualdades sociais e regionais, combinado com os artigos 215 e 231 da mesma Carta e que reconhece a multiculturalidade que identifica o país. Impõem referidos mandamentos voltados ao Estado a tutela das condições necessárias à preservação e existência de cada nação indígena e seus indivíduos, considerando-se suas especificidades culturais, étnicas, sociais, econômicas, religiosas etc.
Assim é que cabe ao Estado e, especialmente à Fundação Nacional do Índio (Funai), a adoção das políticas de saúde por meio da concepção do respectivo subsistema de saúde das nações indígenas, inserido no SUS mediante a criação dos denominados Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), unidades gestoras descentralizadas do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS); com a promoção de ações de atenção básica nas aldeias; operacionalização de ações de saúde, dentre outras.
Memória imunológica
No que concerne à atual crise, a ausência de memória imunológica dos povos originários é fator a ser considerado para as urgentes concepção e implantação de medidas preventivas em relação ao coronavírus para que não se permita um novo genocídio na história do Brasil; para tais povos, a necessidade maior é de ações preventivas com urgência (vacinas, testagem, respeito aos seus territórios tradicionais etc.).
O período histórico-político atualmente em curso, ademais, no qual se amplia o negacionismo da história e da própria ciência, agrava tal situação em relação aos povos ancestrais, vítimas principais de visão ideológica anti-indígena e que coloca sob sério risco de etnocídio referidos povos, já extremamente vulnerabilizados, em razão da omissão do Estado em relação às suas necessidades, bem como diante das ações de desmonte dos direitos até então reconhecidos, seja a partir da Constituição brasileira, seja por força nas normas internacionais ratificadas pelo Brasil, como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Como se não bastasse, a constante edição de medidas provisórias, instruções normativas etc., que visam retirar aos povos originários a posse permanente sobre suas terras (tal como assegurado pelo artigo 231 da Carta de 1988), agrava a situação precária de cada indígena em face da gravíssima insegurança sanitária que os atinge frontalmente, como no caso da IN nº 9/2020, da Funai.
Sério risco
Como demonstra levantamento recentemente realizado pelos pesquisadores Marta Azevedo (Unicamp), Fernando Damasco e Matheus Pinto Rebouças (UFF), Marta Antunes (UFRJ) e Marcos Henrique Martins (USP), ao menos 85 terras indígenas encontram-se sob sério risco imposto pela crise pandêmica em curso.
O levantamento busca suprir lacunas causadas pela não realização do Censo em 2020, baseado, portanto, no Censo de 2010, outra grave falha constante no Brasil: a inexistência de dados a permitir o desenvolvimento de políticas públicas indígenas adequadas. Foram analisadas 442 (TIs) dentre as 471 reconhecidas pelo Estado. Concluiu-se pela vulnerabilidade crítica ao Covid-19 em treze delas; 85 TIs com vulnerabilidade intensa; alta vulnerabilidade em 247 Tis; e 120 TIs com vulnerabilidade moderada.
Como pode ser percebido, a histórica ausência de atenção do Estado aos referidos povos cobra agora seu preço. Em que pese o hercúleo trabalho de antropólogos, indigenistas, do Ministério Público Federal, defensores e ativistas dos direitos humanos, dentre outros, a inexistência de estruturas adequadas nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, ao que se soma a ausência de memória imunológica dos povos ancestrais no Brasil, criam um ambiente favorável a um verdadeiro extermínio neste momento, caso medidas urgentes e especificamente direcionadas às populações indígenas não sejam adotadas.
Lamentavelmente, o governo brasileiro parece não estar dando a devida importância à proteção à saúde nem de suas populações originárias, mais vulneráveis, e nem do restante da população, como se observou nas mais de duas horas de reunião ministerial realizada no dia 22 de abril deste ano, quando já havia 45 mil casos oficiais de pessoas contaminadas pela Covid-19 no Brasil e 2.906 mortes registradas, mas o presidente e seus ministros não se deram ao trabalho de dedicar nem 20 minutos da reunião para tratar efetivamente do combate à pandemia4, e, um mês depois, o Brasil lida com 441.315 casos confirmados e 26.788 mortes pela Covid-19.
Por outro lado, o que se verificou na aludida reunião foi um tratamento absolutamente discriminatório conferido aos povos indígenas, para não dizer criminoso. Além da ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, Damares Alves, insinuar que indígenas teriam sido contaminados de propósito apenas para que a culpa recaísse sobre o presidente Jair Bolsonaro; o ministro da Educação, Abraham Weintraub, já polêmico por diversas outras declarações controversas e preconceituosas, inclusive contra o povo chinês, disse odiar o termo “povos indígenas”, demonstrando falta de conhecimento sobre a multiculturalidade que marca as centenas de nações indígenas milenarmente existentes no Brasil. Se não tivesse como ficar pior, ainda teve a fala cruel do ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, que enxergou na pandemia e no foco da imprensa sobre a morte de milhares de brasileiros, uma grande oportunidade para “passar a boiada” e alterar as regras ligadas à proteção ambiental e desburocratizar a expansão da agricultura. Os indígenas que sobreviverem à Covid-19, portanto, a depender desse ministério, ainda terão que enfrentar mais uma luta pela defesa de suas terras.
Para piorar, em 21 de maio, por articulação de parlamentares do Centrão, bloco aliado ao presidente Jair Bolsonaro, um projeto de lei que deveria conter somente medidas para proteção de índios perante a Covid-19 acabou tendo incluído um artigo que legaliza a permanência de missões religiosas que já estejam de forma irregular em território ocupado por índios isolados. Tal medida, além de contrariar a norma constitucional de respeito ao modo de vida das nações indígenas no Brasil, coloca tais povos sob gravíssimo risco de contágio. O projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados e segue para o Senado, onde se espera seja possível a reversão de mais uma temerária ameaça às nossas populações originárias, que, além de sua especial vulnerabilidade perante essa pandemia, estão em constante luta para sua existência e reconhecimento.
Vidas indígenas importam, mas, muito mais do que isso, o modo de vida indígena importa. É o que diz nossa Constituição.
Flávio de Leão Bastos Pereira é doutor e mestre em Direito, professor de Direitos Humanos e Direito Constitucional, especialista em Genocídios e Direitos Humanos pelo International Institute for Genocide and Human Rights Studies (Zoryan Institute e Universidade de Toronto), membro do rol de especialistas da International Nuremberg Principles Academy (Alemanha), coordenador do Núcleo Temático de Direitos Humanos da Escola Superior da Advocacia da OAB/SP, professor convidado das Escolas Superiores do Ministério Público do Estado e da União, membro do Núcleo da Memória da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP e advogado.
Gabriela Shizue Soares de Araujo é mestre e doutoranda em Direito Constitucional pela PUC-SP, professora de Direitos Humanos e de Direito Eleitoral na Escola Paulista de Direito (EPD), coordenadora da Extensão na Escola Paulista de Direito, coordenadora do Núcleo da Memória dos Direitos Humanos da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP e advogada.
1 RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização – A Integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno. São Paulo: Global Editora, 2017, p.182.
2 As informações são levantadas com base nos boletins das Secretarias Estaduais de Saúde sobre a pandemia e compiladas pela iniciativa “Brasil.io”. Para os casos indígenas, a fonte é a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde (MS).
3 Fontes Agência Brasil e CNN.
4 A contagem do tempo dedicado à pandemia foi realizada pela BBC News Brasil, num total de 19 minutos e 18 segundos.