Extinção de conselhos reflete descaso do governo com a democracia
Por Gabriela Araujo
Artigo originalmente publicado no Conjur
No dia 12 de abril de 2019, foi publicado o Decreto nº 9.759/2019, por meio do qual o presidente Jair Bolsonaro determinou que, a partir de 28 de junho de 2019, serão extintos todos os colegiados da administração pública federal.
Além disso, foi revogado o Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014 , que instituía a Política Nacional de Participação Social - PNPS, e cujo objetivo era fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil.
Para não restar dúvidas com relação à intenção de se suprimir as vozes da sociedade das discussões de interesse público, o artigo 2º do Decreto nº 9.759/2019 conceituou de forma bem extensa o que viria a ser considerado como colegiado e, consequentemente, sujeito à extinção sumária: os conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas, e qualquer outra denominação dada aos colegiados que não tenham sido criados por lei, nos órgãos da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Foram preservados da degola, pelo menos para o momento, apenas e tão somente: I - as diretorias colegiadas de autarquias e fundações; II – as comissões de sindicância e de processo disciplinar; III – as comissões de licitação; IV – os colegiados previstos no regimento interno ou no estatuto de instituição federal de ensino; e V – os colegiados criados ou alterados por ato publicado a partir de 1º de janeiro de 2019, ou seja, pelo atual mandato presidencial.
Com isso, órgãos colegiados que vêm atuando há anos, alguns há décadas, com resultados relevantes na melhoria, fiscalização e gestão da coisa pública, e com a participação ativa e necessária da sociedade, serão extintos, tais como: o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT), o Conselho Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI), o Conselho Nacional de Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC), o Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), o Conselho de Relações do Trabalho, a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), a Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio), o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), o Conselho das Cidades, o Conselho Gestor do Fundo de Habitação para Interesse Social, entre outros.
Ao que parece, o novo governo pretende preservar o modelo democrático ultrapassado que se consolidou no país com base na teoria elitista schumpteriana de meados do século XX, segundo a qual a “irracionalidade das massas” deveria ser controlada através da limitação da participação popular apenas ao voto e à delegação de poderes a representantes provenientes das elites, estes sim dotados de racionalidade política, já que o cidadão comum não teria capacidade nem interesse político para participar diretamente das tomadas de decisão nas esferas públicas de poder:
“Antes de mais nada, segundo a visão que adotamos, democracia não significa e não pode significar que o povo realmente governe, em qualquer sentido mais óbvio do termo “povo” e “governo”. Democracia significa apenas que o povo tem a capacidade de aceitar ou recusar as pessoas designadas para governá-lo[1]” (SCHUMPETER, 1984, p. 355).
Nesse sentido, as elites dominantes travariam uma luta adversarial na disputa pelos votos das massas altamente voláteis, sugestionáveis, apolíticas e irracionais, ou, nas palavras do próprio Schumpeter[2]: “[...] o método democrático é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população” (SCHUMPETER, 1984, p. 336).
Seguindo essa linha da teoria democrática competitiva, encampada pelos adeptos da concepção hegemônica liberal, a propaganda, o populismo e a demagogia entram na lógica adversarial da disputa por votos como elementos fundamentais na manipulação das massas, as quais formam uma “vontade geral” manufaturada, desprovida de educação política para compreender sua submissão aos detentores do poder real.
Quando se pensa que o elitismo democrático schumpteriano foi concebido na primeira metade do século passado, antes do advento da internet, das redes sociais e da conquista de diversos avanços civilizatórios em termos de direitos humanos internacionais, são de se assustar algumas semelhanças com o Brasil atual das “Fake News” e da bipolarização política insuflada por uma “guerra ao comunismo” ou “aos vermelhos” e a perseguição às minorias identitárias.
Isso se explica pela ausência de uma cultura democrática consolidada no Brasil, permeado por períodos de ditadura e de suspensão da ordem democrática desde a proclamação da República, sem contar as tradições oligárquicas de conformação do poder com origens na sua fundação ainda como colônia.
Foi apenas com o Decreto nº 21.076, no dia 24 de fevereiro de 1932 - o Código Eleitoral Provisório -, que finalmente foi concedido às mulheres o direito ao voto[3] em âmbito nacional. Antes disso, metade da população brasileira era proibida de participar do processo eleitoral, pura e simplesmente em razão do seu gênero.
Em verdade, durante todo o período republicano anterior à Constituição de 1988, o sufrágio, quando ocorria, era limitado majoritariamente aos homens brancos das elites oligárquicas e os candidatos que não pertencessem aos grupos dominantes eram tolhidos da disputa, pelos mais diversos subterfúgios.
O povo brasileiro, portanto, em toda a sua amplitude de partícipes, sem restrições em razão de gênero, instrução ou status financeiro e social, passou a votar e escolher seus representantes em uma acepção plena de democracia há recentes três décadas, com a promulgação da Constituição Federal atualmente em vigor, e a extensão do sufrágio a todos os cidadãos maiores de 18 (dezoito) anos, inclusive com o reconhecimento do direito ao voto aos analfabetos, apesar de ainda não poderem ser votados.
Embora estivéssemos historicamente atrasados com relação às democracias ocidentais tradicionais, o legislador constituinte buscou seguir a tendência mundial, que já não admitia o modelo exclusivamente representativo como suficiente para atender às demandas de uma sociedade cada vez mais globalizada e comunicativa, e optou, corretamente, pelo modelo de democracia semidireta, com a previsão de formas de participação tanto diretas como indiretas do povo nas decisões de interesse público.
No entanto, no decorrer de todos esses anos, os principais instrumentos de exercício direto de cidadania previstos na Constituição, como o plebiscito, o referendo e o projeto de lei de iniciativa popular, foram colocados praticamente em desuso ou sonegados, restando à maioria da população apenas o papel de escolher, a cada quatro anos, seus representantes, estes sim responsáveis por tomar as decisões políticas do país, sem qualquer tipo de controle social ou accountability, tal qual propagado pelo elitismo democrático do século passado.
Ocorre que, ao mesmo tempo em que previu esses meios de participação direta dos cidadãos nas tomadas de decisões estatais, o texto constitucional foi falho em garantir a sua concretização.
Por exemplo, no caso do plebiscito e do referendo, importantes instrumentos de consulta popular, a prerrogativa de convoca-los é exclusiva do próprio Congresso Nacional, conforme previsto no artigo 49, inciso XV, da Constituição Federal: um óbice procedimental que retira dos cidadãos a autonomia para dispor de tais mecanismos de democracia direta e explica o seu raríssimo uso – uma vez cada um[4] - desde a promulgação da Constituição de 1988.
Como não há previsão de revogação popular de mandatos (recall) ou de fidelidade com os programas apresentados durante as campanhas eleitorais, e a única penalidade que os parlamentares podem sofrer é a de não serem reeleitos em eleições que ocorrerão apenas depois de quatro anos, o que se tem é um salvo-conduto para tomar as decisões mais relevantes do país sem qualquer consulta à população.
Não percebem, porém, que, ao se distanciarem daqueles que os elegeram, os mandatários colocam a própria democracia em risco: a outrora “desejada” apatia política que esperam de seus eleitores é convertida gradativamente em aversão à política e a toda a classe política.
Ao mesmo tempo, a negativa de uma esfera pública de debate institucionalizada, que poderia promover a educação para o engajamento cívico, nessa era tecnológica de domínio da internet e das redes sociais, permite que a população fique extremamente vulnerável à desinformação e, pior, à manipulação de informações e ideias por meio das “fake news”, com consequências terríveis não apenas à democracia, mas às poucas conquistas civilizatórias alcançadas em um país tão desigual.
Agora, os poucos instrumentos de inclusão da sociedade civil nas esferas públicas de debate que efetivamente vinham funcionando no Brasil estão sob ameaça: as audiências públicas, os colegiados, os conselhos participativos, atualmente, são os únicos espaços em que as empresas, as organizações civis sem fins lucrativos, os cidadãos comuns e os órgãos públicos de fato conseguem discutir e trabalhar em conjunto para o estudo, a formulação, a fiscalização e a implementação de políticas públicas.
Entretanto, aí é que reside o problema: são ainda muito poucos os espaços abertos ao exercício da democracia direta, onde a sociedade civil realmente tem voz e é ouvida de forma institucional e organizada, e, portanto, esses espaços não foram suficientes para gerar um engajamento cívico mais amplo e popular, apesar de sua grande relevância. Isso faz com que a maioria do povo brasileiro não se aproprie de um direito que lhe é garantido expressamente pela Constituição Federal e um dos principais pilares da República: a cidadania ativa[5].
A extinção dos conselhos participativos pelo Decreto nº 9.759/2019, portanto, se por um lado reflete o descaso do governo atual com a democracia participativa e a formação da vontade popular, por outro lado, apenas está sendo viabilizada por uma tradição que se consolidou ao longo de todos esses anos, de desuso dos instrumentos de democracia direta previstos expressamente na Constituição Federal.
Como se explica uma Constituição Federal sofrer 99 (noventa e nove) emendas em apenas 29 (vinte e nove) anos, sem qualquer consulta popular prévia ou debate aberto com a população? E sem que pelo menos uma dessas emendas introduzisse uma reforma política séria, que corrigisse as discrepâncias sistemáticas do texto constitucional, para incluir e democratizar a participação de uma sociedade tão plural como a brasileira nas instâncias decisórias?
Fica a reflexão para que, além da defesa incondicional da recriação e manutenção dos órgãos colegiados, cada qual assuma suas responsabilidades na formação de uma democracia participativa e inclusiva, tal qual deveria ter sido desde a redemocratização, em 1988.
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[1] SCHUMPETER, J. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984.
[2] Aliás, fazendo jus a Joseph A. Schumpeter, o autor de “Capitalismo, Socialismo e Democracia” (1961) propôs-se à análise do regime democrático por meio de um método empírico, alegando que estaria observando apenas e simplesmente a realidade concreta, dissociada dos valores como igualdade, vontade popular e bem comum que os democratas clássicos rousseaunianos almejavam realizar, de forma que para Schumpeter a democracia ficaria reduzida a um método procedimental de seleção de governantes.
[3] Ainda assim, em 1932, o voto das mulheres era facultativo e restrito às mulheres casadas (desde que mediante autorização dos maridos), viúvas e solteiras com renda própria.
[4] A única vez em que o brasileiro foi chamado a participar de um plebiscito, em nível nacional, foi em 1993, e isso porque a própria Constituição já previa esse evento, no artigo 2° do ADCT. Realizou-se um para a escolha entre a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo) a serem adotados, tendo-se decidido pela manutenção da república constitucional e do sistema presidencialista de governo.
Em 23 de outubro de 2005, realizou-se um referendo para aprovar ou rejeitar a proibição da comercialização de armas de fogo e munição no país. Como resultado do referendo, a comercialização de armas de fogo foi permitida.
[5] Art. 1º (...) Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (CFRB/88)