Gabriela Araujo

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A suspeição, o Supremo Tribunal Federal e a crise institucional do sistema de justiça

Por Prof.a Gabriela Araujo e Prof.a Juliana Cardoso Ribeiro Bastos.

Artigo originalmente publicado na edição número 2 da Polifonia, Revista Internacional da Academia Paulista de Direito .

Introdução

 O modelo de separação de poderes, tal qual desenvolvido por Montesquieu, atravessa hoje uma crise institucional que se repete em quase todas as democracias modernas que o adotaram, sobretudo em razão de um desequilíbrio no sistema de “freios e contrapesos” pendente para o Poder Judiciário, que acaba por exercer forte ingerência sobre os Poderes Legislativo e Executivo, mas não se submete, por outro lado, a um controle externo quanto ao conteúdo das decisões proferidas, o que acaba por lhe conferir um poder de decisão ilimitado.

No Brasil, em especial, esse fenômeno ocorre em grande parte pela existência de um Poder Executivo excessivamente burocratizado, que, muitas vezes, deixa de atender demandas urgentes da população em razão da morosidade de seus procedimentos, aliado a um Poder Legislativo que não consegue ou não quer se comunicar com suas bases, contribuindo para um enorme déficit democrático que já é originário da inadequação do sistema eleitoral atual.

O enfraquecimento das instituições que são eleitas diretamente pelo povo e que nele deveriam buscar a legitimidade de suas ações acaba paradoxalmente por legitimar justamente aquela instituição que não carrega consigo a representatividade do voto popular, dando vazão a um ativismo judicial e a uma judicialização da política descontroladamente crescentes.

Sob esse aspecto, o Supremo Tribunal Federal, última instância recursal no controle de constitucionalidade e nas decisões sobre as principais questões do país, emerge como um órgão de poderes praticamente ilimitados.

Acresça-se a isso o fato de que a corte superior é composta apenas por onze ministros que, nomeados pelo Presidente da República, ocupam suas vagas de forma vitalícia, ou seja, detêm o poder de dar a última palavra sobre questões constitucionais até a sua morte ou aposentadoria compulsória.

Como evitar que ocorra então o espírito corporativo e o empoderamento pessoal dos próprios Ministros do Supremo Tribunal Federal, diante da inexistência de um órgão externo ao Poder Judiciário realmente capaz de revisar ou controlar as decisões da instituição? 

A análise de casos de suspeição envolvendo Ministros do Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, demonstra de forma mais evidente a existência de uma verdadeira supremocracia em nosso país, consubstanciada no ápice da crise de separação de poderes.

Os princípios e instrumentos hermenêuticos, que devem guiar toda a atividade do intérprete, ao que parece, não vêm sendo aplicados adequadamente ou pelo menos não têm sido respeitados como postulados do direito que são. De qualquer modo, ainda que a solução esteja na hermenêutica, como conferir-lhe a efetividade suficiente para se fazer valer frente a uma Corte Superior que detém a última palavra em todas as instâncias?

Diante desse paradoxo, neste artigo pretendemos apontar algumas incongruências do nosso sistema de justiça, de modo a permitir uma reflexão sobre os ajustes que poderiam ser adotados para o reestabelecimento de um equilíbrio satisfatoriamente harmônico entre os poderes e garantir a subsistência do Estado Democrático de Direito no Brasil.

 1. Uma crise institucional no Brasil e o protagonismo do Poder Judiciário

 

O constitucionalismo do pós-Segunda Guerra Mundial trouxe consigo a proliferação de Constituições compromissórias, que, fundadas no pilar do Estado Democrático e Social de Direito, passaram não apenas a garantir liberdades negativas, mas também direitos prestacionais sociais do Estado perante os indivíduos.

Por sua vez, à tripartição dos poderes incorpora-se um modelo de Constituições democráticas, já com a forte presença do controle de constitucionalidade que, se por um lado subtrai da democracia representativa a possibilidade de uma tirania da maioria, por outro lado confere ao Poder Judiciário um papel de protagonismo inédito, principalmente na imposição do cumprimento dos direitos prestacionais sociais do Estado.

Hannah Arendt (2011, p. 257), ao tratar da revolução e da Constituição estadunidenses, explica como o controle judiciário, sobretudo a Suprema Corte, assumiu àquela época a função de verdadeira autoridade aplicadora e intérprete das leis, justamente por ter-se considerado que o judiciário, não possuindo nem força nem vontade, mas meramente julgamento, seria o mais fraco dos três poderes e inversamente revestido de maior autoridade para atualizar e manter a estabilidade da Constituição.

A concessão de maior autoridade ao Judiciário por considera-lo um poder mais fraco, porém, não se atentou ao alerta feito por Montesquieu (1973, p.163-165) de que a própria virtude precisa de limites. Ora, se todo homem que tem poder é levado a abusar dele, e essa é a premissa motivadora do princípio da separação de poderes, o que justificaria a concessão de poderes ilimitados ao judiciário?

A consequência dessa autoridade exacerbada atribuída ao Poder Judiciário nas primeiras Constituições, porém, começa a ser sentida agora nas atuais democracias constitucionais, com a evolução do controle de constitucionalidade e de novas concepções do constitucionalismo, de onde emerge um sistema judiciário que extrapola e usurpa os poderes soberanos do Executivo e Legislativo, sem qualquer autoridade capaz de limitar seu crescente voluntarismo.

Sob esse aspecto, seria possível afirmar que o protagonismo judicial se inspira em um constitucionalismo principialista[1], de tendência jusnaturalista, que, tendo entre seus maiores expoentes Robert Alexy, Manuel Atienza e Ronald Dworkin, concebe o direito como uma prática jurídica (interpretativa e argumentativa) confiada principalmente aos juízes ou tribunais.

Luigi Ferrajoli (2012, p. 27), adepto do constitucionalismo garantista, destaca, através de uma análise crítica, as três principais características do constitucionalismo principialista a que se opõe e que resumimos aqui: (a) o cognitivismo ético-judiciário, apoiado nos ataques ao positivismo jurídico e na rejeição à separação entre direito e moral; (b) a distinção entre regras e princípios, tomando-se as normas constitucionais como princípios ético-políticos, frutos de argumentações morais; e (c) a  ponderação como o único tipo de racionalidade pertinente aos princípios, enquanto que a subsunção só se aplicaria às regras.

Das características acima apontadas, decorre uma excessiva ampliação da ponderação na atuação legislativa e na interpretação jurisdicional das normas constitucionais, o que vem a promover o ativismo judicial e a discricionariedade da atividade jurisdicional, configurando o que Ferrajoli (2012, p. 51) classifica como um verdadeiro “poder de disposição dos juízes”, um poder ilegítimo que invade a competência política das funções de governo através da criação do direito pelo magistrado.

Ora, é natural que Constituições compromissórias como a Constituição Brasileira de 1988, compostas por textos principiológicos com abertura para inúmeras prestações sociais do Estado, inevitavelmente resultem em uma busca maior pela concretização de direitos através da intervenção do Poder Judiciário.

No entanto, ainda que diante de normas constitucionais diretivas ou programáticas, dotadas de maior vagueza ou indeterminação, não cabe ao Poder Judiciário usar de seu poder criativo para colmatar eventuais lacunas estruturais, usurpando via interpretação arbitrária o dever legislativo de implantação de direitos sociais previstos no texto constitucional. O papel do Poder Judiciário, nessas situações, restringe-se no máximo à provocação do Poder Legislativo para que este produza legislação regulamentadora que assegure a prestação social do Estado a todos.

Tolerar que o Poder Judiciário extrapole seus poderes, fazendo as vezes de julgador, legislador e executor, como ocorre em muitos casos, sacrificando o princípio basilar da separação dos poderes, equivale a um regresso à lógica do direito natural, justificando-se os meios pela “justiça” dos fins, em clara oposição à legitimidade dos meios que norteia o direito positivo.

Trata-se da mesma lógica utilizada pelos terroristas, como bem lembra Walter Benjamin (1986, p. 123) em sua crítica da violência, quando sacrificam pessoas inocentes para supostamente salvar a humanidade (ou em nome de uma justiça maior). Afinal, a quem cabe julgar se os fins são justos ou injustos para justificar uma exacerbação das funções reservadas ao Poder Judiciário que não ao próprio integrante da instituição, seja um magistrado seja um tribunal? E se é um exagero comparar seu voluntarismo ao de terroristas, não é exagero dizer que os próprios direitos fundamentais são implodidos quando se delega à discricionariedade e subjetivismo de um único órgão poderes praticamente ilimitados.

Ainda que com os mais belos propósitos, não se pode esquecer o alerta de Montesquieu, de que a própria virtude deve ser contida, sob o risco de se tornar tirânica. Tendo em vista a subjetividade que existe dentro de todo ser humano, inclusive do magistrado, a inexistência de limites objetivos ao seu poder pode autorizar abusos e excessos, mesmo que invocados para finalidades teoricamente lícitas, como a concretização de direitos fundamentais, tal qual se costuma alegar nos casos de evidente ativismo judicial.

O problema da discricionariedade do juiz, aliás, parece ser um ponto comum no constitucionalismo, que não escapa nem aos positivistas como Kelsen e Hart, os quais admitem o poder discricionário dos juízes nos casos difíceis, obscuros, mas não conseguem resolver o problema sobre a quem cabe decidir se os casos são difíceis e obscuros o bastante para escaparem à subsunção e se submeterem a uma ponderação discricionária.

Nesse sentido, Lenio Luiz Streck (2016, p. 47), em uma abordagem distinta da de Ferrajoli, alerta para a profunda crise de paradigmas que atravessa o direito, a partir de uma dogmática jurídica refém de um positivismo, de um lado, exegético-normativista, e, de outro, fortemente decisionista e arbitrário, produto de uma mixagem de vários modelos jusfilosóficos, como as teorias voluntaristas, intencionalistas, axiológicas e semânticas, para citar apenas algumas, as quais guardam um traço comum: o arraigamento, consciente ou inconsciente, ao esquema sujeito-objeto.

De um modo sistêmico, esse poder arbitrário do judiciário se reflete em institutos que vêm se tornando já banais no Brasil, apesar de incompatíveis com o princípio da separação de poderes e com a própria democracia, como o ativismo judicial, a judicialização dos conflitos políticos e a politização dos conflitos judiciários.

Há que se considerar, porém, que o Poder Judiciário não teria tamanha liberdade de atuação se as demais instituições não estivessem também enfraquecidas justamente perante a sociedade que lhes outorgou poder representativo.

É sintomático considerar que, dentre os poderes que formam o Estado, o único que não foi diretamente eleito pelo povo é aquele que vem se destacando e se imiscuindo em assuntos que por direito não lhes seriam atinentes.

Temos no Brasil um Poder Legislativo cada vez mais esvaziado de poderes, ou melhor, de autoridade, muito em função do déficit democrático que afasta os cidadãos de seus representantes no Parlamento, com a confluência de fatores como um sistema eleitoral proporcional com lista aberta que não cumpre o papel de fortalecimento dos partidos; a ausência de mecanismos eficazes de participação popular e de interação entre eleitores e eleitos - o que converge também na inexistência de prestação de contas dos parlamentares e na impossibilidade de revogação do mandato em caso de infidelidade compromissória -; uma multiplicação de partidos personificados em algumas figuras políticas, muitas vezes “partidos de aluguel”, sem qualquer programa definido; além de inúmeros obstáculos à diversidade e representação de minorias sociais marginalizadas, já que o fator econômico ainda impera no acesso a uma cadeira legislativa.

Além da passividade e baixa produtividade do Poder Legislativo, verifica-se um Poder Executivo engessado por procedimentos burocráticos excessivos, muitos deles criados pelo próprio judiciário, em sua ingerência indevida sobre os procedimentos adotados na execução das políticas públicas.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se exige maior dinâmica na execução das prestações sociais do Estado, cria-se diariamente novos procedimentos e exigências que minam a discricionariedade do Poder Executivo, sob o pretexto de fiscalização da moralidade administrativa, burocratizando-se ainda mais a máquina pública.

Essa mecânica gera uma falsa sensação na população de que apenas o Poder Judiciário poderia resolver suas demandas, quando na verdade é ele próprio quem as torna inexequíveis de um modo mais amplo, sempre que usurpa poderes que não são seus, apoiando um certo círculo vicioso, de modo que todas as questões do Estado lhe retornem invariavelmente.

Como agravante, considerando que o Poder Judiciário detém o monopólio jurisdicional e do controle de constitucionalidade, podendo julgar tanto os atos expedidos pelo Poder Executivo como as leis promulgadas pelo Poder Legislativo, assim como os seus próprios agentes emissores, nota-se um patente desequilíbrio no sistema de freios e contrapesos, já que os demais poderes não possuem mecanismos de contenção equivalentes.

Ainda que o Poder Legislativo criasse uma legislação limitando ou viabilizando a fiscalização externa dos arbítrios da atividade jurisdicional, nada impediria ao próprio poder arbitrário do Judiciário que expurgasse eventualmente essa lei do sistema.

Na conjuntura atual, com a sociedade em descompasso com os poderes representativos, e sob a evolução de uma iminente contrarrevolução jurídica, qualquer medida que buscasse de forma mais direta limitar os abusos do Poder Judiciário poderia ser rechaçada pela opinião pública em proporção inversa à forma como esta aceita as sucessivas violações de direitos fundamentais instrumentalizadas pelo sistema de justiça.

Essa contrarrevolução jurídica, que vai ganhando cada vez mais capilaridade no Brasil, segundo Boaventura de Sousa Santos (2007, p. 110), nada mais é do que uma convergência entre elites político-econômicas e judiciais que busca neutralizar, por via judicial, muitos dos avanços democráticos que foram conquistados pela via política, formando uma espécie de ativismo judicial conservador.

Trata-se, portanto, do uso da discricionariedade excessiva que se foi permitindo ao Poder Judiciário em nome da concretização de direitos fundamentais, mas que agora incorpora uma finalidade exatamente oposta: a sua supressão e o consequente esvaziamento da Constituição Federal de 1988.

Ao se permitir que o Poder Judiciário adentrasse em questões reservadas aos poderes políticos, era de se esperar que sua atuação também oscilasse de forma mais política do que jurídica, já que o magistrado deixa de se submeter ao texto constitucional para inovar em novas searas.

Não se pode esquecer que a carreira jurídica já é uma carreira elitizada, reservada a poucos especialistas, a quem incumbe manusear normas jurídicas no mais das vezes repletas de tecnicismos e artifícios rebuscados, de difícil compreensão para um cidadão comum. Esse fator facilita um entendimento tácito entre elites, de modo que o poder econômico e as minorias dominantes sintam-se cada vez mais estimulados a provocar um judiciário que, nas suas origens, comunga de visões ideológicas semelhantes e, dotado de um poder discricionário exacerbado, acaba atendendo às expectativas políticas conservadoras.

O silêncio apático daqueles que observam seus direitos fundamentais serem sistematicamente retirados ou violados deve-se, em grande parte, pela conivência do Ministério Público, que, de representante da sociedade, passou a ocupar a função predominante de inquisidor, estimulado, sobretudo, pela mídia monopolizada, que se utiliza da espetacularização dos processos judiciais e dos temas legais para enfraquecer movimentos sociais e direitos fundamentais, já que representante justamente das elites minoritárias que detêm o poder político e financeiro no país.

Como a opinião pública é formada pela opinião publicada, muito em razão de uma defasagem na educação de base (o que se diria então de uma educação política!), mas também principalmente pela ausência de democratização da mídia, que, no Brasil, se concentra distribuída há décadas entre seletas famílias, as pautas conservadoras e supressoras de direitos fundamentais vão sendo viabilizadas repetidamente, e frequentemente pelo poder arbitrário do judiciário, sem que a sociedade se aperceba do dano causado ao Estado Democrático de Direito.

A influência da mídia, da propaganda direcionada em prol de um projeto político ou econômico, é por muitos considerada como um quarto poder, que não havia sido previsto anteriormente por Montesquieu, mas que acaba por afetar em demasia o exercício da soberania popular.

Se as instituições democráticas devem prestar contas ao povo que a elegeu, como fazê-lo sem a existência de uma mídia democratizada e de uma população politicamente educada? E como evitar, nesse contexto, a influência da mídia sobre o próprio Poder Judiciário?

Em última análise, portanto, seria possível dizer que os três poderes planejados e desenvolvidos sob a égide de um Estado Democrático de Direito estariam sucumbindo a um quarto poder outrora imprevisto, mas com muito mais poderes que todos os outros, na medida em que consegue manipular as informações que chegarão à sociedade e até mesmo insuflar comoção, ódio, movimentos de massa, que refletem invariavelmente nas decisões que virão a ser tomadas no seio dos demais poderes, inclusive do Poder Judiciário.

Diante desse quadro, estamos, no mínimo, diante de uma crise institucional sem precedentes em nossa tão recente democracia, que começa pela crise da separação de poderes e atinge todas as instituições essenciais a um Estado Democrático de Direito, tendo como ápice um colapso em nosso sistema de justiça.

De forma mais pessimista (ou realista?), alguns autores, como Rubens Casara (2017, p.15-16), entendem que não há mais crise porque o Estado Democrático de Direito, pelo menos no Brasil, não existe mais. Quando as sucessivas violações a direitos fundamentais tomam ares de normalidade sob o pretexto de uma crise, dizer que ainda existe o Estado Democrático de Direito em crise é pretender travestir a existência de um Estado de Exceção permanente. Essa ilusão (da crise) serve apenas para docilizar as pessoas a se deixarem governar por um Estado que nada mais tem de democrático, o que serve principalmente aos interesses das elites e do sistema financeiro dominantes que já monopolizam as informações através da mídia.

Ainda que seja cedo para dizer que estamos diante de uma crise insuperável, como sustenta Rubens Casara, que já nos situa em um Estado Pós-Democrático, é inegável que estamos mais próximos de um Estado de Exceção do que poderíamos ter imaginado, sob o protagonismo de um Poder Judiciário politizado, ilimitado e cada vez mais ativo.

 

2. O juiz imparcial como expressão do devido processo legal na garantia do Estado Democrático de Direito

 

Considerando a conjuntura até aqui demonstrada de uma crise da separação de poderes no Brasil, em que o Poder Judiciário ocupa o papel de protagonista com o seu voluntarismo demasiado, não podemos esquecer, por outro lado, que o princípio do devido processo legal, previsto nas Constituições democráticas e na Constituição brasileira, pressupõe a garantia de um juiz ou tribunal imparcial, garantia esta que vem sendo sistematicamente e inconstitucionalmente excepcionada, como demonstraremos a seguir.

O devido processo legal e a garantia de um juiz imparcial, ou da não instituição de um tribunal de exceção, devem ser compreendidos como direitos fundamentais, cuja evolução, no decorrer de séculos, ocorre de maneira umbilicalmente entrelaçada com a concepção de Estado e das Constituições, de tal modo que, na atualidade, o Estado Democrático e Social de Direito pressupõe a instituição de Constituições com rigidez na preservação dos direitos e garantias individuais e na prestação de direitos sociais[2], já avançando para uma finalidade maior, consubstanciada no direito ao desenvolvimento[3].

Sob esse contexto, o devido processo legal é, desde o princípio, a garantia fundamental que sustenta a manutenção e possibilita a evolução dos demais direitos fundamentais, já que pressupõe uma proteção igualitária e justa contra eventuais violações ou flexibilizações e, consequentemente, garante a subsistência do Estado Democrático de Direito e a força normativa da Constituição.

Dentre suas principais premissas, o devido processo legal se apoia na garantia de um julgamento justo e imparcial, em forte contraposição aos períodos absolutistas em que processos inquisitórios ou julgamentos simulados eram efetuados já com as decisões previamente tomadas pelos tiranos da vez.

Não é por acaso, portanto, que seu fortalecimento se fez ainda mais necessário no período pós Segunda Guerra Mundial, marcado pelas lembranças traumáticas dos regimes totalitaristas em que milhares de pessoas foram condenadas à morte, prisões ou trabalhos forçados, sem direito a um tribunal imparcial ou a um tribunal independente das forças dominantes.

Eis porque tal princípio veio consagrado tanto no texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948[4], como na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, ou Pacto de San José da Costa Rica, de 1969[5], que estabelecem expressamente o direito de todas as pessoas de serem julgadas por um tribunal competente, independente e imparcial.

Durante todo o período seguinte, as Constituições democráticas foram reforçando o princípio do devido processo legal como essencial para a manutenção do Estado Democrático de Direito, o que não poderia ser diferente no Brasil, que o abriga como cláusula pétrea no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988, ao garantir que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

Tratado como um “super princípio”[6] por boa parte da doutrina, o devido processo legal englobaria, nesse sentido, outros princípios processuais constitucionais, como o contraditório; a ampla defesa; o direito de acesso à justiça (princípio da inafastabilidade da jurisdição); o tratamento paritário conferido às partes envolvidas no processo; a imparcialidade do julgador, bem como a garantia do juiz natural; e a motivação das decisões; entre outros.

Como se vê, a pré-constituição de um órgão jurisdicional competente, ou seja, do juiz natural, no direito brasileiro, é uma garantia constitucional[7] que deriva diretamente do princípio do devido processo legal, que não pode ser relativizada nem por questões práticas de administração judiciária e muito menos por mera discricionariedade do órgão julgador, sob pena de atentar ao próprio Estado Democrático de Direito[8].

Decorre do devido processo legal e da garantia do juiz natural, portanto, o direito que todas as pessoas têm a um julgamento justo e igualitário, procedido por um juiz competente, imparcial[9], e atribuído de acordo com uma legislação previamente estabelecida, sem qualquer abertura para discricionariedades.

Afinal, se for permitido ao juiz escolher as ações que irá julgar, não se pode garantir às partes que seu julgamento será isento de pré-conceitos políticos, sociais, morais, ideológicos ou pessoais por parte daquele que escolheu ser seu julgador. Destarte, o que confere segurança jurídica às partes para submeterem seus conflitos à jurisdição é justamente a garantia de uma definição prévia de competência, baseada exclusivamente em critérios objetivos legais, de modo a evitar um retrocesso aos perigosos tribunais de exceção.

Pode-se dizer, inclusive, que a observância da imparcialidade[10] ou da não discricionariedade nos julgamentos é condição para se salvaguardar a dignidade da própria administração da justiça, além de constituir pressuposto de validade e regularidade da relação processual[11].

Como garantir a observância da imparcialidade nos julgamentos, porém, é um verdadeiro desafio na conjuntura atual do sistema de justiça brasileiro, em que as decisões em última instância sobre eventuais discricionariedades ficam restritas ao próprio poder que as emitiu, conforme verificaremos no estudo do instituto da declaração de suspeição mais adiante.

Alguns juristas[12] vislumbram na obrigatoriedade da motivação das decisões judiciais, expressamente prevista em textos constitucionais[13] (garantia constitucional, portanto), um caminho viável para a fiscalização da imparcialidade da atuação judicante e prevenção de discricionariedades voluntaristas.

Todavia, há que se considerar, em primeiro lugar, que as motivações das decisões judiciais têm sido cada vez mais sucintas e econômicas em palavras (quando não inexistentes), inclusive nos casos de prisões provisórias, o que dificulta o exercício do direito de defesa e a demonstração da parcialidade do juiz quando da interposição de recursos.

Em segundo lugar, ainda que se consiga demonstrar (via recurso ou pedido de suspeição) a existência de eventual decisão judicial indevidamente motivada em juízos de valor e elementos extra autos, a decisão final sobre a parcialidade restará ao próprio Poder Judiciário, ou ao Supremo Tribunal Federal na última instância, este que vem incentivando o ativismo judicial e o livre convencimento do juiz de forma patente, até mesmo pelo que se pode extrair de sua própria produção jurisprudencial.

A liberdade dos juízes e tribunais na interpretação das normas e até da Constituição, com a flexibilização reiterada de direitos fundamentais sob justificativas pragmáticas, coloca-nos sob um verdadeiro estado de exceção interpretativo, consequência de uma crise institucional que afeta a subsistência do próprio Estado Democrático de Direito.

Inevitável fica a conclusão, portanto, que o princípio do devido processo legal (do qual decorre a garantia de imparcialidade do juízo), apesar de expressamente previsto em nossa Constituição Federal, tem sido violado justamente pela instituição que deveria garantir sua aplicabilidade, e pior, sem qualquer previsão, no ordenamento jurídico brasileiro, de uma possibilidade de fiscalização ou controle externo a esse tipo de abuso, o que coloca a sociedade em permanente insegurança jurídica e diminui, se não elimina, a força normativa da nossa Constituição.

 

3. A declaração ou não de suspeição dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e o devido processo legal

 

Em um Estado Constitucional, verifica-se a centralidade da Constituição dentro do ordenamento jurídico, bem como a previsão e concretização de direitos fundamentais. A supremacia não é de quem governa ou de quem atua em determinado órgão do Estado, mas sim da Constituição, juntamente compreendida com a superioridade da lei dentro desse contexto estatal.

Ensina Carlos Ari Sundfeld (2003, p. 163) que, em um Estado de Direito, aquele que exerce atividade pública está submetido a uma função. Função, para o Direito, é o poder de agir, cujo exercício traduz verdadeiro dever jurídico, e que só de legitima quando dirigido ao atingimento da específica finalidade que gerou sua atribuição ao agente. Nesse sentido, conclui que o legislador, o administrador, o juiz, desempenham função: os poderes que receberam da ordem jurídica são de exercício obrigatório e devem necessariamente alcançar o bem jurídico que a norma tem em mira.

O instituto da suspeição, previsto no Código de Processo Civil e, também, no Código de Processo Penal[14], concretiza o princípio da imparcialidade do juiz no exercício de sua função como elemento indispensável ao devido processo legal e à garantia da igualdade entre as partes no processo. Portanto, trata-se de um direito fundamental destinado a proteger o indivíduo contra uma atuação arbitrária por parte do Estado-juiz, o qual deve agir de acordo com a sua função determinada por meio da lei.[15]

As causas de suspeição não devem ser confundidas com as causas de impedimento, apesar de ambas terem como finalidade a possibilidade do juiz se expor a tentações tais, que fossem capazes de pôr em xeque sua capacidade de resistir e manter-se imparcial (DINAMARCO, 2009, p. 413).

Entende-se que as causas de impedimento são mais graves do que as causas de suspeição. Trata-se, nos casos de impedimento, de objeção ou matéria de ordem pública não sujeita a preclusão, enquanto que a suspeição se não arguida no momento oportuno, estará envolvida pela coisa julgada.

Nota-se que, enquanto a suspeição tem relação com o subjetivismo do juiz, o impedimento tem caráter objetivo (interesse na causa). A presunção relativa (juris tantum) da parcialidade do juiz diz respeito aos casos de suspeição e a presunção absoluta (juris et de jure) de parcialidade do juiz diz respeito aos casos de impedimento.

No atual Código de Processo Civil, o tema da declaração de suspeição encontra-se disciplinado nos artigos 146 ao 148. As causas de suspeição, especificamente, estão previstas, em um rol taxativo (em numerus clausus), no artigo 145 do Código de Processo Civil, segundo o qual, há suspeição do juiz nos casos de: a) amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados; b) que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa antes ou depois de iniciado o processo, que aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa ou que subministrar meios para atender às despesas do litígio; c) quando qualquer das partes for sua credora ou devedora, de seu cônjuge ou companheiro ou de parentes destes, em linha reta até o terceiro grau, inclusive; d) interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes.[16]

Os motivos de impedimento e suspeição não se aplicam somente aos juízes, mas, também, ao membro do Ministério Público, aos auxiliares de justiça e aos demais sujeitos imparciais do processo (artigo148 CPC). Em relação ao juiz, ele poderá declarar-se suspeito por motivo de foro íntimo, sem necessidade de declarar suas razões nesse caso. Contudo, será ilegítima a alegação de suspeição quando houver sido provocada por quem a alega ou, ainda, quando a parte que a alega houver praticado ato que signifique manifesta aceitação do arguido.

Entende-se que se trata de um dever do juiz declarar-se impedido ou suspeito. Entretanto, a parte interessada também deverá arguir o impedimento ou a suspeição, em petição fundamentada e devidamente instruída, na primeira oportunidade em que lhe couber falar nos autos.

Os casos de declaração de suspeição dos Ministros do Supremo Tribunal Federal despertam interesse na medida em que em muitos dos casos essa declaração de suspeição, indispensável para a manutenção do devido processo legal, não acontece. Assim, em casos em que deveriam se declarar como suspeitos ou se reconhecerem suspeitos, não o fazem e nenhuma forma de controle é realizada.

O grande desafio é estar a declaração de suspeição relacionada há razões subjetivas do próprio julgador. Assim, o seu reconhecimento em um determinado caso concreto passa a se algo de difícil comprovação. Contudo, como foi apontado, as causas de suspeição, determinadas por meio de lei, não são tão amplas a não permitir um controle quando inequívocas as provas no processo. Data máxima vênia a autoridade do juiz de se declarar como suspeito, deve ser feito um controle a priorizar a segurança nos casos decididos pela corte a partir da sua imparcialidade.

Assim, apesar do que dispõem os Códigos de Processo Civil e o regimento interno da Corte[17], o Supremo Tribunal Federal não tem se valido do incidente para manter a imparcialidade e a confiança das pessoas em suas decisões. O que se verifica é o entendimento pacífico entre os juízes de que se trata de uma convicção subjetiva do respectivo Ministro que se deve respeitar para a própria manutenção da estabilidade institucional da Corte.

Ocorre que, por meio de um levantando recentemente feito pelo jornal Estado de São Paulo, nenhum pedido de impedimento ou suspeição de Ministros do Supremo Tribunal Federal levado à Corte teve o seu pedido atendido em 10 anos. Diz ainda, que todos os casos que foram rejeitados pelo Presidente do STF da época não tiveram os méritos discutidos pelo colegiado”. E que, “entre 2007 e este ano, chegaram à Corte 80 arguições de impedimento e suspeição.[18]

Entre os casos de suspeição alegados contra o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, encontra-se o pedido feito pelo Procurador-Geral da República contra a sua atuação no caso do habeas corpus apresentado pela defesa do empresário Eike Batista, preso pela Operação Eficiência. Sustenta a declaração de suspeição em razão de sua mulher, Guiomar Mendes, integrar o escritório de advocacia que prestaria serviços a Eike Batista. Contudo, nesse caso, o Ministro esclarece que à época, o habeas corpus não tinha o escritório como impetrante.

Por outro lado, em uma situação parecida, o Ministro Marco Aurélio se declarou impedido de atuar em casos envolvendo o escritório do advogado Sergio Bermudes, com a justificativa, enviada por ofício à Presidente da Corte, Cármen Lúcia, onde afirma guardar parentesco sanguíneo de terceiro grau, relação de tio e sobrinha, com funcionária do escritório. Ainda, explica que o impedimento se aplica inclusive a processos em que envolvam cliente do referido escritório de advocacia.

Em ambos os casos, a questão central envolve uma relação de intimidade, mas com decisões completamente contrárias. Por que em uma delas houve a declaração de suspeição e na outra não? A hipótese é dotada de subjetividade ao ponto de ficar o juiz livremente no poder para decidir-se diante do caso concreto? O fato da esposa trabalhar no escritório de uma das partes é tão diferente de ter uma sobrinha trabalhando no escritório de uma das partes? Não seria de responsabilidade do órgão colegiado estabelecer parâmetros comuns a serem utilizados por todos eles. Entender o contrário, significa reconhecer o caráter fragmentário da Corte Constitucional Brasileira.

Ainda, são quatro os pedidos feitos pela Procuradoria-Geral da República para que o Ministro não atue, também, nos Habeas Corpus relacionados ao empresário Jacob Barata Filho, investigado em desdobramentos da Lava Jato, no Rio de Janeiro. Isso porque aponta-se que Gilmar Mendes foi padrinho de casamento da filha do empresário. Entre os fundamentos utilizados, considera-se que os vínculos são atuais, ultrapassam a barreira dos laços superficiais de cordialidade e atingem relação íntima de amizade.

Um outro caso, foi o pedido de suspeição feito pelo Procurador-Geral da República nos casos da operação Ponto Final, que apura esquemas de corrupção no Rio. Nesse caso, sustenta-se que o Ministro Gilmar Mendes e sua esposa possuem laços estreitos com a família de Barata Filho, já que foram padrinhos de casamento da filha do empresário, além do escritório em que Guiomar Trabalha ter defendido interesses dos investigados na operação. O Ministro nega ter sido padrinho do casamento e afirma que apenas acompanhou sua mulher na cerimônia, já que o noivo é sobrinho dela.

O Ministro Gilmar Mendes, porém, apesar de ser o Ministro com a maior quantidade de pedidos de declaração de suspeição (dezesseis pedidos), não é o único da Corte que acumula um número considerável de pedidos. Dentre os demais ministros, destacamos o Ministro José Antônio Dias Toffoli, que já acumula treze pedidos de declaração de suspeição, seguido pelo Ministro Marco Aurélio, com doze pedidos, e pelo Ministro Ricardo Lewandowski, com dez pedidos.

Sobre o Ministro Dias Toffoli, no caso do julgamento do mensalão, que tinha como um de seus réus José Dirceu, de quem foi subordinado entre 2003 e 2005, quando trabalhava na subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República. Nesse caso, é preciso analisar se o fato de terem trabalhado juntos implicaria a imediata declaração de suspeição ou até, impedimento. Precisaria se comprovar se dessa relação profissional decorreria uma amizade íntima ou, até mesmo, de inimigo capital. Na ocasião, o Ministro não se declarou suspeito.

Outro caso de declaração de suspeição ligado ao Ministro, ocorreu em 2011, quando sua atuação foi questionada no caso João Capiberibe, em disputa sobre o registro da candidatura do Senador pelo Amapá. Na oportunidade, Toffoli justificou a não declaração de suspeição por não entender ser amigo íntimo de Capiberibe.

Ainda, em outros casos, como nos processos que envolveram as decisões sobre o reconhecimento da união homoafetiva, a aprovação das cotas raciais nas universidades do Brasil e a descriminalização da interrupção da gravidez nas hipóteses de feto anencéfalo, os pedidos de declaração de suspeição foram apresentados em relação ao Ministro, sob o argumento dele já ter se manifestado sobre os temas enquanto era Advogado-Geral da União. A grande questão é que, diferentemente, dos casos anteriores, os temas aqui apontados estavam sendo decididos por meio de processo objetivo, onde o juízo a ser proferido diz respeito a manutenção da supremacia da Constituição. Assim, diferente do que ocorre em uma ação penal, onde o processo é subjetivo.

O que desafia esses casos de declaração de suspeição é ela se tratar de uma decisão de foro íntimo. Isso leva a lembrança de Lenio Streck (2015), em obra intitulada O que é isto – decido conforme à consciência?, da distinção entre decisão jurídica e escolha política.

Assim, qual seria o limite de intervenção pela Presidência do Supremo Tribunal Federal para não limitar a atuação dos Ministros e, ao mesmo tempo, manter a imparcialidade e a manutenção da segurança nas decisões proferidas pela Corte?

Interessante notar que as justificativas para a rejeição dos impedimentos pela presidência do Supremo Tribunal Federal variam entre questões formais e materiais. As questões formais são aquelas que dizem respeito aos aspectos procedimentais necessários para a declaração, como, por exemplo, a tempestividade da arguição de suspeição e a capacidade processual para a realização do pedido. Já as questões materiais, são aquelas que dizem respeito ao conteúdo apontado pelo Código de Processo Civil como motivadoras dos casos de suspeição, sendo elas as apontadas no artigo 145 do Código de Processo Civil.

O reconhecimento do caráter subjetivo das hipóteses de suspeição, no sentido de permitir que o juiz se decida a partir de um juízo de foro íntimo, parece decorrer de uma leitura bastante ampla de normas que pretendem assegurar uma finalidade maior que é a garantia da imparcialidade do juiz. Entende-se que as balizas norteadoras do reconhecimento dos casos de declaração de suspeição estão na própria interpretação das normas que indicam quando a imparcialidade do juiz pode estar em risco.

Como já foi apontado, o constitucionalismo principialista tem aplicado o direito de uma forma onde identifica-se um poder extremamente criativo do juiz, sob o fundamento do reconhecimento de aspectos ligados à justiça. O que se defende aqui, pelo contrário, é uma leitura normativista e garantista das normas como a única forma de garantir força normativa e segurança jurídica. Dessa forma, é preciso respeitar os limites apresentados pelo texto, respeitando o sentido de suas palavras.

Eis, afinal, a importância dos impedimentos previstos para a manutenção da imparcialidade do juiz como forma, inclusive, de garantir segurança jurídica a partir de um devido processo legal. 

 

4.    Interpretação: instrumento de poder da função jurisdicional?

 

A imparcialidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal que se pretende alcançar, entre outras formas, por meio da arguição de suspeição, não deve ser confundida com a sua neutralidade.

Já foi apontado que por imparcialidade entende-se a indiferença que o juiz deve ter em relação às partes no processo. O que se busca por meio da imparcialidade é afastar a existência de relações entre quem está julgando e quem está sendo julgado para que o ato de julgar não seja comprometido. Já a neutralidade, também é indiferença, mas em relação à uma influência de caráter subjetivo ou ideológico.

A interpretação jurídica deve ser compreendida como a atividade intelectual exercida por um sujeito para alcançar o sentido de uma determinada norma jurídica. Um dos desafios da atividade interpretativa é o estudo sobre a figura do intérprete. Isso porque, ao interpretar, é possível alcançar a neutralidade apontada acima?

A imparcialidade dos juízes, como já analisada, busca-se por meio da previsão de situações que se poderia impedir de acontecer. Mas, e a neutralidade de quem julga?

Gadamer já apontava a dificuldade dessa neutralidade a partir da necessidade de estudar a interpretação a partir da pré-compreensão do intérprete. Nas palavras de Eros Roberto Grau (2005, p. 108), ele explica que para Gadamer, toda interpretação correta tem de proteger-se contra a arbitrariedade das ocorrências e contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar e orientar seu mirar à coisa mesma.

Em estudo de Mauro Capelletti (1989, p. 11), o autor expressa sua preocupação com o tema que intitula o seu livro: Juízes Irresponsáveis? Escreve sobre o controle interno da categoria que foi suprimido em larga medida e, também, sobre o controle-sanção exercido por parte do Conselho Superior da Magistratura que teria se tornado lento e esporádico. Para ele, assim como para Comoglio e Trocker, historicamente os sistemas de controle têm dado resultado negativo. Em suas palavras, tais sistemas são característicos das magistraturas de tipo ‘corporativo’, fechadas e hierárquicas, e não do tipo responsive, ou seja, abertas e sensíveis às pressões da comunidade.

Assim, há uma preocupação quanto à responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e sua função de julgar de modo imparcial. Os casos de declaração de suspeição levam exatamente ao questionamento sobre a posição assumida pelos juízes nos processos de suas respectivas competências. E, de que forma a interpretação pode se tornar um instrumento poderoso em sua atuação?

O modelo interpretativo que se adotou após a Segunda Guerra Mundial, denominado por Luigi Ferrajoli (2010, p. 21-23) como constitucionalismo principialista e/ou argumentativo, tem garantido aos juízes um papel de destaque na determinação do direito. Trata-se de um modelo pautado pela aproximação entre o direito e a moral, na diferenciação das normas entre regras e princípios e, também, na consequente utilização da técnica da ponderação nos casos de conflito entre as normas do tipo princípio. Ainda, decorrente dessas características, destaca-se o papel da argumentação jurídica, que será indispensável para apontar a norma a ser aplicada.

Lugi Ferrojoli (2010, p. 24-28) não é adepto desse constitucionalismo principialista e/ou argumentativo, mas defensor de um constitucionalismo normativo e/ou garantista, que busca a normatividade forte para ele perdida com o modelo anterior. O autor explica que se trata de um jus-positivismo reforçado, já que complementa o positivismo jurídico por meio da positivação não apenas do ser, mas também do dever ser do direito. Nesse sentido, o papel da jurisdição seria apenas o de remoção das antinomias e o de apontar as lacunas existentes.

O que se verifica é que muitas vezes a aplicação do direito decorre de um ato volitivo do juiz. E isso, desde Hans Kelsen (2000, p. 387-397), a partir do positivismo jurídico, quando na busca do conhecimento científico da norma, identificou que o processo de aplicação do direito corresponderia a dois momentos distintos. Um primeiro, científico, de determinação dos sentidos possíveis de uma norma (formação da moldura); e, um segundo, a partir da escolha da norma a ser aplicada pelo juiz, a qual envolveria um ato de vontade, já que qualquer delas seria uma aplicação válida da norma jurídica interpretada.

A realidade é que sempre se tentou controlar a atividade do juiz, seja pelo método de subsunção, seja hoje por meio da argumentação jurídica. André Rufino do Vale atenta para o fato principal a ser enfrentado que não está tanto mais em saber que poder tem os Tribunais Constitucionais, mas como e em que medida eles exercem esse poder (2007, p. 99). Portanto, uma preocupação sobre a legitimação das próprias práticas institucionais.

Também, nesse sentido, ensina Lenio Streck (2017, p. 105), a partir do movimento Crítica Hermenêutica do Direito, que se deve preocupar com o modo como se julga, e não apenas com o modo de justificação do que foi dito pelo juízo. O modo como se julga reflete, entre outros aspectos, no estudo da figura do juiz que, ao tomar uma decisão, deve assegurar valores garantidos constitucionalmente de um devido processo.

A imparcialidade que se pretende proporcionar por meio da declaração de suspeição, exige do juiz um ato de responsabilidade que não pode ser entregue a sua subjetividade. Ainda mais, nos casos de suspeição, é que se deve prever e fazer uso de mecanismos de controle que ultrapasse o juízo único do juiz suspeito.

Além disso, entregar a aplicação de qualquer norma à atividade subjetiva do juiz parece uma escolha perigosa. Não se quer afirmar que a declaração de suspeição não deva se pautar pelo foro íntimo de cada juiz, mas, sim, que esse poder de convicção dado a ele deva ser compreendido como um dever de se declarar suspeito. Até porque as situações apontadas pela lei como causas de suspeição não são se valem de uma linguagem tão aberta como se têm apontado.

 

CONCLUSÕES

 

Conclui-se que, a partir do devido processo legal, a imparcialidade é indispensável para a manutenção de um Estado Constitucional, já que os poderes precisam atuar com harmonia e independência, sem, contudo, fugir dos limites impostos pela lei (sentido amplo).

Verifica-se que o papel do Judiciário nem sempre foi a posição de destaque que ele assume hoje. Justifica-se, entre outros motivos, pelo caráter democrático das Constituições do pós Segunda Guerra Mundial e pelo modelo diferente de interpretar a Constituição, estabelecido a partir das críticas do modelo interpretativo que se tinha até então.

A partir de uma crise institucional vivenciada pelos Poderes Executivo e Legislativo, o Poder Judiciário assume uma posição de protagonista que tem sido repensada.

Um dos aspectos que chama atenção encontra-se no dever dos Ministros do Supremo Tribunal Federal se declararem suspeitos, quando assim for o caso. O presente artigo demonstrou a quantidade considerável de pedidos de declaração de suspeição que não tiveram os seus méritos analisados pelo plenário e alguns exemplos de pedidos recentes de declaração de suspeição que deveriam, mas não foram atendidos.

Com isso, há uma insuficiência na forma prevista constitucionalmente para realizar o controle de declaração de suspeição dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, já que ele não se efetiva. A declaração de suspeição permite garantir um juiz imparcial, que não se coloca em situações de tentações tais que sejam capazes de pôr em xeque sua capacidade de resistir e manter-se imparcial.

Contudo, entregar o dever de declaração de suspeição do juiz à sua subjetividade parece perigoso, como os casos apontam. O constitucionalismo principialista, ao aproximar direito e moral, ainda que com objetivos justos, indica que, também, tem sido fonte de um aumento da função jurisdicional que extrapola os limites existentes.

Sugere-se a necessidade de uma leitura de um constitucionalismo garantista, onde se volte a reafirmar a força normativa da lei, sem se permitir uma atuação criativa por parte do juiz. A subjetividade do juiz não pode dar a palavra final em um Estado Constitucional. Há mecanismos de controle previstos por meio da lei (Código de Processo Civil e Regimento interno do Supremo Tribunal Federal), mas que não se efetivam sob fundamento desse poder subjetivo do juiz.

Veja-se que reconhecer a subjetividade a um poder absoluto de decisão por parte do juiz pode ser perigoso para a sociedade e para o próprio direito ao não conseguir garantir segurança jurídica por meio das suas normas. Ainda que se reconheça a possibilidade de um juízo de foro íntimo, dado que o direito não pode prever de antemão todas as hipóteses ensejadoras de suspeição, precisa-se buscar formas de controlá-lo, em nome do modelo constitucional de Estado existente.

Nesse sentido, o papel exercido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal e pelo Plenário são indispensáveis para a manutenção dos valores constitucionalmente assegurados, mas isso exigiria da Presidência da Corte uma postura firme para definir parâmetros, objetivos e subjetivos, que sejam obedecidos por todos. Acredita-se que só assim seria possível reduzir a “livre convicção do juiz”.    

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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[1] Esse termo é utilizado por Luigi Ferrajoli para classificar o constitucionalismo antijuspositivista, de tendência jusnaturalista, ou também denominado constitucionalisto argumentativo.

[2] Na concepção contemporânea dos direitos humanos, estes compõem unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais, ou seja, a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa.

[3] Segundo Flavia Piovesan, sob a perspectiva dos direitos humanos, o direito ao desenvolvimento compreende como relevantes princípios: a) o princípio da inclusão, igualdade e não discriminação (especial atenção deve ser dada à igualdade de gênero e às necessidades dos grupos vulneráveis); b) o princípio da accountability e da transparência; c) o princípio da participação e do empoderamento (empowerment), mediante livre, significativa e ativa participação; e d) o princípio da cooperação internacional. (PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p 211.)

[4] “Artigo X - Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”. (grifos nossos) - http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm (acesso em 01/10/2017)

[5]“Artigo 8º - Garantias judiciais. 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”. (grifos nossos) - http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm (acesso em 01/10/2017)

[6] Se considerarmos, portanto, o devido processo legal como um grande guarda-chuva que abarca todas as garantias processuais constitucionais, não é demasiado afirmar que referido princípio, com relação ao processo judicial, como leciona Rogério Lauria Tucci, consubstancia-se em uma real garantia da consecução de outros direitos fundamentais protegidos pela Constituição Federal. (CRUZ E TUCCI, José Rogério e TUCCI, Rogério Lauria. “Constituição de 1988 e processo. Regramentos e garantias constitucionais do processo”. São Paulo: Saraiva, 1989.)

[7] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção; (...) LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;”.

[8]O principio do juiz natural, enquanto postulado constitucional adotado pela maioria dos países cultos, tem grande importância na garantia do Estado de Direito, bem como na manutenção dos preceitos básicos de imparcialidade do juiz na aplicação da atividade jurisdicional, atributo esse que presta à defesa e proteção do interesse social e do interesse público geral”. (NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 6ª edição,v.21, 2000, p. 65.)

[9] Ada Pellegrini Grinover resume a garantia do juiz natural através de três afirmativas: “(...) só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição; ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências, que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja”. (GRINOVER, Ada Pellegrini, “O Processo em Sua Unidade – II”, p. 39, item n. 6, Rio de Janeiro: Forense, 1984).

[10] Vicente Greco Filho ressalta que a “(...) imparcialidade do Juiz é pressuposto de toda a atividade jurisdicional. A imparcialidade pode ser examinada sob um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo. No aspecto objetivo, a imparcialidade se traduz na equidistância prática do juiz no desenvolvimento do processo, dando às partes igualdade de tratamento”. (GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil brasileiro. VolI, São Paulo, Saraiva, n. 3. p. 22.)

[11] “A imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual se instaure validamente (...). A incapacidade subjetiva do juiz, que se origina da suspeita de sua imparcialidade, afeta profundamente a relação processual. Justamente para assegurar a imparcialidade do juiz, as constituições lhe estipulam garantias, prescrevem-lhe vedações e proíbem juízos e tribunais de exceção". (GRINOVER, Ada Pelegrini. Teoria Geral do Processo, 20ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 51/52.)

[12] Antonio Scarance Fernandes é um dos juristas que vê na motivação das decisões judiciais uma forma de constrangimento de eventual imparcialidade pela própria comunidade: “Agora, fala-se em garantia da ordem política, em garantia da própria jurisdição. Os destinatários da motivação não são mais somente as partes e os juízes de segundo grau, mas também a comunidade que, com a motivação, tem condições de verificar se o juiz, e por consequência a própria Justiça, decide com imparcialidade e com conhecimento de causa. É através da motivação que se avalia o exercício da atividade jurisdicional. Ainda, às partes interessa verificar na motivação se as suas razões foram objeto de exame pelo juiz. A este também importa a motivação, pois, através dela, evidencia a sua atuação imparcial e justa”. (FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3ª ed. São Paulo: RT, 2002. p. 119.)

[13] A Constituição de 1988, em seu artigo 93, inciso IX, exige a fundamentação de todas as decisões judiciais, inclusive emitidas pelos tribunais: “Art. 93. (...) IX. todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

[14] No Código de Processo Penal, a declaração de suspeição é causa de nulidade absoluta do processo penal (artigo 564, I c/c artigo 572). Seu conteúdo material encontra-se disciplinado no artigo 254 do mesmo código. Não obstante, segundo explicação do Ministro Edson Fachin, na Arguição de Suspeição n.89, “as causas de suspeição e impedimento de atores processuais no âmbito do Supremo Tribunal Federal estão listadas no seu Regimento Interno, que tem status de lei”. Para ele, já que existe regramento específico acerca do impedimento e suspeição, não seria possível a aplicação do Código de Processo Penal. A disposição regimental seria, seguindo precedentes da Corte, um rol taxativo, que não admite ampliação pela via interpretativa.

[15] Explica Cassio Scarpinella Bueno que: “Imparcialidade, neste contexto, significa acentuar que o magistrado (o juiz, propriamente dito, e não o juízo, que é indicativo do órgão jurisdicional) seja indiferente em relação ao litígio. Seja no sentido comum da palavra, um terceiro, totalmente estranho, totalmente indiferente à sorte do julgamento e ao destino de todos aqueles que, direta ou indiretamente, estejam envolvidos nele”. (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, ed.8ª, Vol.1, 2014, p.138).

[16] Observa-se que o Código de Processo Civil de 2015 deslocou a hipótese antiga de suspeição (prevista no CPC de 1973, artigo 135, inciso III), que trata do herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de qualquer das partes, para hipótese de impedimento (artigo 144, inciso VI, do CPC/2015). Entende-se que o legislador buscou com o deslocamento fortalecer ainda mais a imparcialidade do julgador.

[17] A suspeição será arguida perante o Presidente, ou o Vice-Presidente, se aquele for o recusado. A arguição de suspeição, caso admitida, nos termos do artigo 282 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, deverá ser dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal Federal que, caso a admita, ouvirá o Ministro recusado e, a seguir, inquirirá as testemunhas indicadas, submetendo o incidente ao Tribunal em sessão secreta.

[18] Acessível no site: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,stf-rejeita-80-pedidos-de-suspeicao-em-10-anos,70001952791.