Gabriela Araujo

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O populismo punitivo e autoritário do projeto de lei “anticrime” de Sérgio Moro

Gabriela Araujo[1]

 

Artigo originalmente publicado da Carta Maior, em fevereiro de 2019.

No último dia 04 de fevereiro, o recém empossado ministro da Justiça e Segurança Pública - o ex-juiz federal alçado aos holofotes dos noticiários televisivos pela condução midiática da operação policial-judicial “Lava Jato” - Sérgio Moro, deu publicidade a um anteprojeto de lei de sua autoria que altera catorze dispositivos legais em vigor no país, dentre eles o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Crimes Hediondos e o Código Eleitoral, e cujos objetivos, segundo Moro, seriam atacar três questões centrais que, a seu juízo, estariam interligadas: a corrupção, o crime organizado e os crimes violentos.

 O próprio nome atribuído pelo ex-juiz ao seu anteprojeto de lei já é carregado de grande simbologia publicitária e populista, apesar de sua aparente redundância: Projeto de Lei “Anticrime”[2], como se alguma das leis que tal projeto visa alterar fossem favoráveis ao crime.

 Redundâncias à parte, há que se admitir que é um nome que atinge positivamente o imaginário da população leiga brasileira: em primeiro lugar, porque passa a ideia equivocada de que meras alterações legislativas poderiam solucionar questões complexas como a violência e a criminalidade crescente nos centros urbanos; em segundo lugar, porque vai ao encontro da sede de vingança contra aqueles que há alguns anos vêm sendo destacados pela mídia como os grandes vilões da sociedade – a classe política - alimentando a crença de que a corrupção é um crime tão ou mais danoso quanto os crimes cometidos com violência física.

 Entretanto, em uma análise preliminar das alterações legislativas apresentadas no mencionado Projeto de Lei Anticrime, verifica-se que, além de não servirem ao propósito a que se propõem, ainda podem contribuir para o aumento da população carcerária – e, consequentemente, aumento do exército que as facções criminosas arregimentam nas prisões superpopulosas do país –, além de violarem direitos e garantias fundamentais sacramentados em nossa Constituição Federal e nos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

 Uma das propostas mais criticadas do Projeto de Lei Anticrime é aquela que pretende suprimir de nosso ordenamento, por via legislativa, um princípio garantido como cláusula pétrea na Constituição Federal: a presunção de inocência.

 Pela proposta de Moro, a regra passaria a ser que um cidadão condenado por qualquer tribunal de segunda instância imediatamente e obrigatoriamente iniciasse o cumprimento de sua pena, ainda que com recursos pendentes de julgamento. Com isso, as prisões brasileiras já superlotadas receberiam um contingente imensurável a mais de réus em cumprimento provisório de pena, mesmo que na expectativa de eventual absolvição por tribunal superior.

 Se hipoteticamente aplicássemos a lógica do cumprimento antecipado da pena para o direito civil, seria possível que um cidadão que estivesse sendo injustamente acusado de atraso no pagamento das parcelas do financiamento imobiliário de sua casa, por exemplo, fosse obrigado a entregá-la ao banco credor – ou a leilão - na primeira decisão desfavorável dada por um tribunal, ainda que com diversos recursos judiciais possíveis e pendentes de julgamento. Outro exemplo dentro do aspecto patrimonial: em um litígio entre um cidadão comum ou uma empresa e a Receita Federal, referente à cobrança arbitrária de tributos, pela lógica do pacote anticrime de Moro, caso o fisco obtivesse uma decisão favorável em qualquer tribunal, a parte perdedora já deveria antecipar o pagamento do valor em discussão, ainda que no futuro pudesse reverter a situação por meio de recurso.

 Se já fica difícil imaginar como recuperar a casa, o dinheiro, o tempo perdido e o desgaste ocasionado, quando se antecipa o cumprimento de decisões patrimoniais que podem ainda ser revertidas pelo próprio Poder Judiciário, basta usar a mesma lógica para uma pessoa inocente que é trancafiada em uma prisão brasileira, antes de exercer plenamente o seu direito de defesa. Pois é exatamente isso que propõe o Projeto de Lei Anticrime.

 Ainda nesse sentido, o Projeto de Lei Anticrime faz uma importação mal adaptada do instituto do “plea bargain”, altamente criticado[3] em seu país de origem, os Estados Unidos, onde mais de 90% (noventa por cento) das prisões são decorrentes desses tipos de acordo, e apenas contribuíram para que o país ocupasse o demeritório lugar de maior população carcerária do mundo, sem que com isso se reduzisse os índices de violência e a criminalidade no país – vale lembrar que o Brasil atualmente ocupa o terceiro lugar nesse indesejável ranking de países com maior população carcerária.

 Visando encurtar o tempo e custos dos processos penais, o “plea bargain” proposto por Sérgio Moro prevê a possibilidade de que o simples acusado da prática de um crime possa obter em seu suposto benefício uma pena reduzida, se comparada àquela que seria condenado caso eventualmente considerado culpado ao fim de um processo judicial comum.

 As condições para sacramentar tal acordo são a confissão do suposto crime e dispensa da produção de provas, sem controle judicial e fora do crivo do contraditório, em um acordo direto com o órgão acusador, o Ministério Público, por meio do qual o acusado ainda abdica ao direito de qualquer recurso. Em um só dispositivo, em suma, atenta-se contra as garantias constitucionais do devido processo legal, do direito ao juiz natural, da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório

 Segundo pesquisas e denúncias da respeitada organização Fair Trials[4], nos países que adotam dispositivos semelhantes ao “plea bargain”, os julgamentos judiciais com contraditório e ampla defesa estão sendo gradativamente substituídos por acordos a portas fechadas em que o réu, confrontado com o poder esmagador do Estado, e muitas vezes já antecipadamente detido, sente-se pressionado a confessar-se culpado, para ser condenado com uma pena mais branda do que aquela que os acusadores dizem poder obter caso o processo seja decidido no tribunal. Com isso, cresce o número de pessoas inocentes que se declaram culpadas apenas pelo medo de permanecerem presas aguardando longos julgamentos, ou muitas vezes pressionadas pelas ameaças dos cada vez mais empoderados órgãos estatais acusadores.

 Esse tipo de pressão – ou tortura psicológica –, naturalmente, tem maior impacto sobre a população mais carente e que não tem recursos para manter as despesas com sua defesa judicial, o que contribui para que, nos Estados Unidos, negros e latinos sejam maioria no sistema prisional, embora minoria na população[5]. No Brasil, em que já há sérias denúncias de política de encarceramento em massa da população jovem e negra das periferias, o sistema de “plea bargain” socialmente seletivo não deverá ser diferente.

 De qualquer forma, se uma outra proposta do Projeto de Lei Anticrime for aprovada, talvez para esses estratos da população brasileira o encarceramento, ainda que injusto, seja um privilégio.

 Afinal, de acordo com a modificação proposta aos artigos 23 e 25 do Código Penal, a polícia que mais mata no mundo[6] será beneficiada pela alegação de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” para invocar a legítima defesa no homicídio de civis, o que seria atestado por um juiz – e não pelo tribunal do júri. E mais: poderá igualmente alegar legítima defesa quando se sentir na “iminência” de conflito armado.

 Com isso, abre-se um enorme leque de possibilidades para que a polícia brasileira tenha “licença para matar”, tamanha a subjetividade da intepretação que poderá utilizar em seu favor para escapar de condenações por homicídio.

 Some-se a esse problema a ausência de propostas, no pacote “anticrime”, de ações para coibir a corrupção policial, a corrupção nas prisões e o surgimento de milícias, muitas vezes formadas por policiais e agentes públicos.

 Mais uma vez, quem pagará a conta será a população que mais sofre da violência policial no país: o jovem, negro, pobre das comunidades periféricas. Para muitos deles, a opção será a prisão ou a morte.

 Em verdade, o que se destaca no tão alardeado projeto de lei “anticrime” nada mais são do que medidas punitivistas de alto apelo popular, como o recrudescimento de penas, supressões de direitos de acusados em matéria penal e empoderamento das autoridades acusatórias e policiais, o que sabidamente não implicará na diminuição da criminalidade, mas, pelo contrário, contribuirá com as desigualdades sociais e a tensão bipolarizada que já se instaurou na sociedade: centro x periferias, zona sul x morro, cidadão do bem x bandidos etc.

 Para que o Projeto de Lei “Anticrime” realmente se prestasse ao “slogan” anunciado, seria necessário investir em políticas públicas de longo prazo – essas sim de competência do Poder Executivo, do qual Sérgio Moro hoje faz parte – incluindo educação, cultura, lazer e emprego, melhor aparelhamento e treinamento das polícias, programas de recuperação e reintegração social para presidiários, e principalmente uma revisão séria na legislação e na política antidrogas.

 As alterações propostas, contudo, além de desprovidas de justificativas individualizadas ou de dados objetivos que pudessem sustentar suas proposições, evidenciam principalmente a ausência de diálogo prévio com os diversos setores da sociedade civil que poderiam ter contribuído com o tema, especialistas em segurança pública e operadores do Direito, entre outros. Sua precariedade e deficiência técnica se deve, sobretudo, à pretensão autoritária de proposição unilateral.

 Ressalva-se ainda que, no presente artigo, tratou-se de forma superficial de apenas algumas das catorze alterações legislativas pretendidas por Sérgio Moro, posto que a ausência de sistematização e identidade temática do projeto de lei “anticrime” não permite que se esvaia em poucas linhas todas as suas inconsistências, como, por exemplo, o dispositivo que estabelece que as visitas dos advogados aos seus clientes presos passarão a ser gravadas, violando-se, assim, em uma só toada, o direito de defesa do réu preso e as prerrogativas do advogado no exercício de sua profissão.

 Por outro lado, sobre todos os temas abordados no pacote existem já diversos estudos aprofundados, alguns que embasaram até mesmo projetos de lei propostos nos últimos anos, com amplo apoio de entidades da sociedade civil, incluindo medidas de combate ao encarceramento em massa, revisão da política antidrogas e revisão do Código de Processo Penal. Por que nada disso foi aproveitado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública? Ao invés de propor alterações legislativas que apenas endurecem as penas, por que não sugeriu políticas públicas efetivas para coibir e prevenir a criminalidade?

 Apesar desses vícios de iniciativa, porém, ainda há tempo para se abrir o debate à sociedade, com audiências públicas, oitiva de especialistas e contratação de estudos e pesquisas mais aprofundados – incluindo um estudo efetivo sobre o impacto que o recrudescimento da legislação penal poderá causar no sistema prisional já deficitário.

 Afinal, embora os projetos de lei possam inicialmente ser propostos pelo Poder Executivo, as deliberações e a aprovação final, todo o processo legislativo, enfim, se dará dentro do Poder Legislativo, que poderá inclusive optar pela rejeição das propostas açodadamente apresentadas pelo ministro Sérgio Moro, ou, no mínimo, convocar a população para um plebiscito, o que nos dará a todos nós a possibilidade de debater e opinar ativamente sobre um tema que afeta diretamente nossos direitos individuais mais caros.

 Resta-nos saber se o Poder Legislativo vai cumprir com sua função democrática de representante do povo que o elegeu, se abrindo para o debate participativo, ou se vai ceder ao populismo punitivo midiático que representa esse pacote “anticri


[1] Gabriela S. S. de Araujo é advogada, professora de Direito Constitucional e Eleitoral na Escola Paulista de Direito, mestre e Doutoranda em Direito Constitucional na PUC-SP e coordenadora da Extensão na Escola Paulista de Direito.

[2] https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/pacote-anticrime-de-moro-ponto-a-ponto-veja-como-a-lei-e-hoje-e-o-que-pode-mudar/

[3] “The growing reliance on plea bargaining is corroding the fairness of the justice systems when guilty pleas can persuade innocent people to admit crimes they did not commit. It also creates perverse incentives for all players in the system and reduces oversight and transparency of arrest, charging, evidence collection and sentencing practices. This negative development is affecting the neutrality of the system, as Jed S. Rakoff reminded in his opening address: “Through the device of plea bargaining, the sentencing function that was historically uniquely the role of the judiciary, has effectively been changed so that it is largely determined by prosecutors.” (https://www.fairtrials.org/news/criticism-plea-bargaining-gaining-momentum-us )

[4] “When “incentives” to plead guilty become too extreme, they can persuade innocent people to admit crimes they did not commit. “I’d never plead guilty to something I didn’t do” – you may think this, but going to trial is a gamble and the stakes can be exceedingly high: defendants may plead guilty to avoid the threat of the death penalty or life without parole. In federal drug cases, mandatory minimums have contributed to a system in the US where defendants convicted of drug offences received sentences on average 11 years longer by going to trial rather than pleading. To provide more context for this statistic, in the United States, 65 out of the 149 people exonerated of crimes in 2015 had pleaded guilty (44%). Guilty pleas can also hide gross human rights abuses from scrutiny in open court. In a country where torture in police custody is a daily reality, imagine the combined effect of this with the threat – “plead guilty now or…”! If convictions become too easy to secure, they can also facilitate overcriminalisation and over-incarceration of all or, more commonly, part of the population”. https://fairtrials.org/publication/disappearing-trial-report

[5] https://www.npr.org/sections/codeswitch/2014/07/17/332075947/study-reveals-worse-outcomes-for-black-and-latino-defendants

[6] Em 2017, a polícia brasileira matou 5.144 pessoas, segundo os dados oficiais do Fórum de Segurança Pública: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/08/FBSP_Anuario_Brasileiro_Seguranca_Publica_Infográfico_2018.pdf