Gabriela Araujo

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O populismo moral e o crime de ódio no cancelamento de uma exposição de arte

Cena de Interior II, obra de Adriana Varejão, uma das mais criticadas na exposição Queermuseu.

O escritor israelense Amós Oz, em sua recém-publicada obra “Mais de Uma Luz: fanatismo, fé e convivência no século XXI”¹, traz à tona essa nova onda de ódio, de aversão ao outro ou ao diferente, e de fanatismo que parece estar se espraiando de forma globalizada na sociedade contemporânea.

Como explicar uma sociedade ocidental que há meio século buscava a ampliação de horizontes culturais e emocionais, inebriada pelo multiculturalismo e pela política das identidades, hoje se degenerando em uma realidade de horizontes bloqueados, introversão e ódio?

Interessante o apontamento feito pelo autor sobre como os horrores que aconteceram na
primeira metade do século XX, encabeçados por ditadores como Hitler e Stalin, fizeram com que as gerações seguintes “desenvolvessem um temor profundo ante todo extremismo e, em certa medida, uma contenção dos instintos que levam ao fanatismo”.

Sob esse aspecto, seria possível afirmar que os grandes genocidas do século XX contribuíram para que, por algumas dezenas de anos, os preconceituosos, racistas e homofóbicos se envergonhassem um pouco de suas posições, e que as pessoas cheias de ódio reprimissem um pouco seu ódio, até porque não haveria espaço favorável para esse extravasamento.

Com o decorrer do tempo, porém, a memória do passado totalitarista e moralista vai
sendo esquecida, a “vacinação parcial” que recebemos começa a se esgotar e o fervor de
esmagar definitivamente todos os “malvados” está ressurgindo de forma crescente.

Não é de hoje, portanto, que a sociedade tende a eleger “inimigos” para direcionar suas frustrações, principalmente em momentos de crise, quando se torna urgente encontrar soluções rápidas, e promover líderes obscuros, com propostas essencialmente baseadas no ódio às minorias. 

Aquelas que mais dependem da solidez dos direitos e liberdades fundamentais que paradoxalmente se lhes pretende subtrair, via medidas de exceção, viram o antagonista que deve ser combatido.

Nesse sentido, Hart² alertou para os perigos do “populismo moral”, essa equivocada
concepção de que a maioria teria o direito moral de determinar como todos devem
viver, o que é uma péssima interpretação da democracia e uma séria ameaça às
liberdades individuais:

“Durante a última metade de nosso século, a barbárie do homem contra o homem tem
sido tanta que as liberdades e garantias mais essenciais e elementares foram negadas a
um sem número de homens e mulheres culpados, se é que foram culpados de alguma
coisa, somente por reclamar essas liberdades e garantias, tanto para eles, como para
outros, negando-se- lhes, algumas vezes, estas pretensões, com a argúcia de uma
justificativa em função do bem-estar geral da sociedade”.

Embora o artigo de Hart se referisse aos acontecimentos da primeira metade do século
XX, suas lições sobre os perigos da moral conservadora como dogma brutal de
preservação da moralidade social a qualquer custo não poderiam ser mais atuais.

Embora não tão difundido, sabe-se que homossexuais e negros sofreram os horrores dos
regimes totalitaristas do século passado, ao lado de outras minorias, e permanecem,
ainda hoje, em eterna luta por afirmação de seus direitos, em uma sociedade ocidental
de hegemonia branca, machista e heterossexual.

Claro que não se pode ignorar um grande avanço em termos de medidas de inclusão
desde o pós Segunda Guerra e uma abertura maior à diversidade, pelo menos no mundo
ocidental, inclusive com uma forte aposta no multiculturalismo, como se viu na evolução do modelo comunitário e supranacional da União Europeia.

Por outro lado, sempre que a sociedade entra em crise, sobretudo na economia, os direitos arduamente conquistados pelas minorias são os primeiros a sofrer retrocessos.

Se os direitos fundamentais surgiram para proteger os homens perante os abusos do Estado, é importante a solidificação dos direitos e garantias fundamentais e de sua petrificação nas cartas constitucionais, garantindo assim a preservação dos direitos das minorias e da diversidade do pensar e do viver.

Sob esse aspecto, a Constituição Federal brasileira de 1988 pode ser considerada uma das mais avançadas do mundo, ao fixar em seu preâmbulo expressamente o objetivo de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.

E de fato, os direitos e garantias fundamentais estão espalhados por todo o seu texto, bem como expressamente protegidos pelo status de cláusulas pétreas, ou seja, imutáveis e irrevogáveis.

Entretanto, apenas a petrificação de direitos fundamentais no texto constitucional não é
suficiente para garantir seu pleno exercício.

É preciso que se proteja a força da Constituição perante a sociedade, mediante o respeito rígido e reiterado às suas disposições e, sobretudo, resistindo-se a apelos da opinião pública, que, como é sabido, muda tão rápido como a direção do vento.

Queermuseu: mais um exemplo de flexibilização dos direitos fundamentais

Em nome da moral conservadora pura que Hart já alertara ser um perigo à democracia, no dia 10 de setembro último, o Santander Cultural de Porto Alegre anunciou o cancelamento antecipado da exposição “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, em razão de uma onda de protestos nas redes sociais, muitas manifestações de ódio e fanatismo, contra a suposta existência de apologia à pedofilia e à zoofilia e de desrespeito a símbolos religiosos em algumas das obras expostas na exposição.

Veja aqui as obras criticadas e as explicações dadas pelos artistas da exposição Queermuseu.

Com curadoria de Gaudêncio Fidelis, que foi curador-chefe da 10ª Bienal do Mercosul,
em 2015, a exposição “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” reunia 270 trabalhos de 85 artistas que abordavam a temática LGBT, questões de genero e de diversidade sexual, com destaque para obras de artistas consagrados, como Volpi, Portinari, Flávio de Carvalho, Ligia Clark, Alair Gomes, Adriana Varejão, Fernando Baril, Hudinilson Jr., Leonilson e Yuri Firmesa.

Considerando a temática da exposição, impossível não identificar as razões da onda de
ódio que se formou contra ela, sob alegações tão infundadas que o próprio Ministério
Público
acabou fazendo uma visita à exposição fechada, apenas para atestar que inexistiu o crime de pedofilia, como vinha sendo falsamente difundido por movimentos de cunho fascista pelas redes sociais e veículos duvidosos de imprensa.

Se por um lado não se encontrou a prática de qualquer ilícito na exposição, que tentava
abrir as mentes para a temática da diversidade sexual, da igualdade de generos, do
respeito às diferenças, em pleno exercício da liberdade de manifestação artística; por
outro lado, é possível dizer que houve crime sim, mas crime de ódio e de incitação ao
preconceito contra essas minorias sociais que hoje formam a comunidade LGBT, deliberadamente orquestrado por grupos organizados.

O que se viu nesse caso, portanto, não foi apenas a negação do direito fundamental de
liberdade de expressão artística aos responsáveis pela exposição (artigo 5º, IX: é livre a
expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença), mas também a vitória do preconceito contra uma minoria social, negando-lhe a oportunidade para o debate de sua temática e inviabilizando a inclusão de suas pautas no circuito cultural.

Como não encontrar aí semelhanças aos ataques de Hitler à arte moderna, que chamava
de “arte degenerada”? E a exposição que promoveu, em 1937, deturpando o sentido de obras de artistas modernistas, com o fim específico de insuflar a opinião pública para um determinado conceito de estética aceitável que depois seria usada contra os judeus?

Se não existiu a figura de um líder individualizado como Hitler na autocensura do Banco Santander, não se pode ignorar que há um movimento de setores ultraconservadores, com certa organização política, que ganha cada vez mais o apoio da mídia dominante, aliada às elites e ao sistema financeiro, no sentido de incentivar uma moralidade conservadora na sociedade, como meio de referendar sucessivas medidas de exceção e supressão de direitos fundamentais.

A eleição de um inimigo do Estado, de um mal a ser combatido, geralmente sob pretensos discursos moralistas, que acabam por difundir um pânico inexplicável na sociedade, geralmente se referenda sob um discurso hegemônico : a sociedade seria uniforme, se não houvesse comportamentos discrepantes a serem eliminados.

Esses comportamentos invariavelmente são representados por minorias, que, ao serem combatidas e odiadas, desviam os olhos de todos do mal maior: a supressão de direitos e garantias fundamentais e a escalada das desigualdades.

O Estado de Exceção se instala sob a justificativa de combater um mal que não existe, justamente para perpetuar o mal existente: o poder sem limites do Estado, sob o comando de um tirano. Foi assim na caça às bruxas da Inquisição, foi assim na caça aos judeus no nazismo, foi assim na caça aos comunistas na ditadura militar brasileira.

E agora? O que virá? Vamos precisar de um novo choque, de uma nova vacina, como diz Amós Oz, para não sucumbirmos ao populismo moral, ao ódio, ao fanatismo?

Se os Estados Unidos já estão recebendo sua boa dose de vacina com a eleição de Trump, e a Europa tomou um choque educador com o Brexit, o que está reservado ao Brasil?

 

1 OZ, Amós. Mais de Uma Luz: fanatismo, fé e convivência no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
2 HART, Herbert Lionel Adolphus. Utilitarianism and natural rights, 1979.