Reforma política em pauta
Gabriela Araujo
O sistema eleitoral brasileiro vem sendo objeto de constantes reformas - ou atualizações -, desde a restauração da nossa democracia, sedimentada pela Constituição de 1988.
Entretanto, como consequência do déficit democrático existente entre os cidadãos e o Congresso Nacional, aliado a um ativismo judicial crescente, a conformação das normas eleitorais mais recentes resulta muito mais de resoluções e decisões emanadas do Poder Judiciário, do que do próprio parlamento eleito pelo povo.
Decisões essas, aliás, cada vez mais limitantes e determinantes para a conformação de forças nos órgãos eletivos, uma ingerência que causa sérios abalos a um dos pilares essenciais do Estado Democrático de Direito: a separação - equilibrada, frise-se - entre os Poderes.
Em 2016, quando a sessão de votação do impeachment da então presidente eleita Dilma Roussef foi transmitida em rede nacional, o povo brasileiro ficou estarrecido com os parlamentares aos gritos justificando seus votos em nome de Deus, da família, da igreja, e variados outros motivos completamente alheios de qualquer fundamentação técnico-jurídica.
Essa reação de surpresa e ao mesmo tempo de decepção generalizada não pode ser interpretada pela máxima simplista que o senso comum gosta de usar: “o povo não sabe votar!”. Pelo contrário, deve ser entendida como a mais simbólica evidência do déficit democrático existente no nosso atual sistema eleitoral proporcional com lista aberta.
A ausência de identidade entre o povo, soberano, e seus supostos representantes eleitos; a ausência de mecanismos de controle entre mandantes e mandatários, que podem dispor de seu mandato como bem entender, sem prestar contas àqueles que são os reais detentores do poder; a ausência de interação e participação popular nas atividades legislativas; são apenas alguns dos muitos fatores responsáveis pela situação que se deu em 2016.
De fato, são necessários ajustes no sistema eleitoral, notavelmente com relação ao preenchimento de cadeiras do Poder Legislativo, com o objetivo não apenas de diminuir esse déficit democrático, mas principalmente para fortalecer a instituição do parlamento. Apenas respaldado pela soberania popular é que o parlamento será capaz de enfrentar as excessivas ingerências – e muitas vezes abusos – do Poder Judiciário, restaurando enfim o equilíbrio no sistema de “freios e contrapesos” entre os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Nesse sentido, surge a polêmica proposta de Emenda à Constituição nº 77/2003, que tramitou pela “Comissão Especial para Análise, Estudo e Formulação de Proposições Relacionadas à Reforma Política” da Câmara dos Deputados, sob relatoria do deputado federal Vicente Cândido.
Em seu relatório final1, submetido em 09 de agosto de 2017 à referida Comissão, o deputado Vicente Candido alerta para o esgotamento de nosso sistema eleitoral, com 28 partidos representados no Poder Legislativo (o mais fragmentado do mundo) e coligações partidárias formadas apenas por conveniência eleitoral, destacando que esse tipo de fragmentação gera desconfiança do povo na classe política e na própria democracia. Segundo o relator, “a fragmentação partidária dificulta imensamente a formação de consensos programáticos e a estabilidade dos governos, que, ainda que consigam aprovar seus programas, o fazem a um custo elevado e pouco republicano”.
Sob esses argumentos, o relatório propõe um sistema eleitoral misto para o preenchimento das vagas do Poder Legislativo: parte dos representantes seria eleita por voto majoritário, em distritos eleitorais, e a outra parte seria eleita em listas preordenadas, pelo sistema proporcional. Se aprovada essa proposta, o artigo 45 da Constituição Federal receberia a seguinte redação:
“Art. 45. A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal pelo sistema distrital misto proporcional, na forma da lei, observados os seguintes preceitos:
I - os eleitores disporão de dois votos, um em candidato registrado em distrito eleitoral, outro em lista partidária preordenada de candidatos;
II – o total de lugares destinados a cada partido no Estado, no Distrito Federal ou no Território será calculado com base nos votos destinados aos partidos, distribuindo-se as cadeiras pelo princípio da proporcionalidade;
III – parte dos representantes deverá ser eleita pelo princípio majoritário em distritos uninominais até, no máximo, a metade das cadeiras;
IV – será garantida a eleição dos representantes mais votados nos distritos, efetuando-se eventuais correções no total de lugares atribuídos aos partidos, vedado o acréscimo de lugares além do previsto na lei complementar a que se refere o § 1º;
V – os candidatos nos distritos eleitorais ou a outros cargos majoritários poderão figurar simultaneamente nas listas partidárias preordenadas”.
Desta forma, para preenchimento de metade das vagas do Legislativo, seriam formados distritos eleitorais (que poderiam ser menores que um município, inclusive), e os candidatos mais votados em cada distrito seriam os eleitos, sem transferência de votos, ao contrário do que acontece hoje no sistema proporcional com lista aberta.
Pelo sistema proporcional atual, aplica-se o quociente eleitoral e o quociente partidário para preenchimento de vagas, de forma que nem sempre o candidato com maior número de votos será eleito: dependerá muito do partido e da coligação da qual faça parte2. Eis a razão de tantas coligações esdrúxulas entre partidos de ideologias distintas e da existência de partidos nanicos “de aluguel”, que só surgem em época de eleição, dispostos a todos os tipos de alianças, sem qualquer comprometimento programático.
Porém, se o problema da representatividade e proximidade entre legisladores e eleitores é resolvido com a adoção do sistema majoritário distrital, por outro lado, a adoção exclusiva desse sistema poderia regionalizar demais as discussões no parlamento, como bem destacado no relatório apresentado à Comissão Especial:
“Uma das críticas mais contundentes feitas a esse modelo é que, ao estimular os interesses ‘paroquiais’, elegeria deputados pouco interessados em questões eminentemente nacionais, o que, por sua vez, contribuiria para empobrecer o debate de temas nacionais no Parlamento”.
A eleição de um parlamento pelo sistema puramente majoritário e distrital, além de regionalizar demais o debate, dividindo o país em verdadeiros “currais” eleitorais, enfraqueceria os partidos e priorizaria as figuras mais conhecidas em cada região, prejudicando a renovação e a representatividade de pautas de minorias.
Eis porque a proposta de se manter também o componente proporcional, em um sistema misto, no qual a outra metade das cadeiras do parlamento seria preenchida através dos votos em uma lista preordenada apresentada pelos partidos. Com isso, acaba o quociente eleitoral. O eleitor vota no programa partidário com o qual mais se identifica, sabendo que o partido já apresentou uma ordem sequencial de seus candidatos que ocuparão as vagas conquistadas. Por exemplo, o eleitor do PSOL saberá que o primeiro candidato do PSOL a preencher uma vaga do partido será aquele que o próprio partido colocou como primeiro da lista e assim sequencialmente. O voto é na lista partidária e não no candidato.
Destarte, garante-se que candidatos que não tenham tanta representatividade regional, mas que defendam causas e ideologias de interesse nacional também sejam viabilizados. E que os partidos se aglutinem em torno de programas e propostas mais consistentes, o que pode inclusive resultar num processo de diminuição salutar do número de partidos, que, sem o recurso das coligações, provavelmente buscarão a fusão em torno de ideias comuns.
O sistema eleitoral misto pode ser uma experiência para futuramente se partir para a adoção exclusiva do sistema proporcional em lista preordenada, que só será possível quando o Brasil contar com partidos fortalecidos e um eleitorado com consciência ideológica mais definida.
Infelizmente, sob a alegação de necessidade de uma transição entre o sistema proporcional com lista aberta e o sistema eleitoral misto nas eleições para o Legislativo, a Comissão de Reforma Política aceitou destaques ao relatório original, para instituir o “Distritão” (uma variação esdrúxula do voto distrital) nas eleições de 2018 e 2020, até que o sistema eleitoral misto seja instituído nas eleições de 2022.
O tal “Distritão” é uma invenção mal-arranjada que se pretende confundir com o voto distrital. Vamos pegar como exemplo o Estado de São Paulo. Aplicando-se a ele o voto distrital, é preciso em primeiro lugar dividi-lo em distritos menores, de acordo com critérios comuns: pode-se ter um distrito do Grande ABC, ou um distrito da Zona Leste do município de São Paulo, outro distrito do Vale do Paraíba, outro formado por cidades do litoral sul etc. Esses distritos é que elegerão seus parlamentares pelo sistema majoritário: serão eleitos os mais votados em cada distrito. No tal “Distritão”, porém, cada Estado já forma um distrito, não há subdivisão, de modo que o Estado de São Paulo é um “Distritão” e os mais votados em todo o Estado serão os eleitos.
A expectativa, porém, é que essa “transição” do Distritão não seja aprovada em plenário. Caso contrário, a conformação atual do Congresso Nacional pode ser beneficiada, posto que os parlamentares que ali estão já contam com mais recursos e visibilidade simplesmente por serem detentores de mandato. E ainda com o agravante da instituição do voto majoritário por Estados (Distritão), não haverá a vantagem da descentralização dos votos, pelo contrário, é provável que os mais votados fiquem concentrados em poucas regiões de cada Estado.
Se a adoção do sistema eleitoral misto – com a transição do “Distritão” ou não – já tem gerado polêmicas, não foi muito diferente com o financiamento público das campanhas eleitorais, outra pauta aprovada pela Comissão Especial da Reforma Política, que encerrou seus trabalhos no dia 15 de agosto último.
Desde 2015, quando o Supremo Tribunal Federal entendeu como inconstitucional a doação de empresas às campanhas eleitorais, restando aos candidatos e partidos apenas os valores oriundos do Fundo Partidário e das doações de pessoas físicas, instalou-se um debate sobre a necessidade de ajustes para: (i) evitar que as doações proibidas continuem a se realizar de forma ilegal – “caixa 2”; (ii) evitar que candidatos com maior poder aquisitivo e insertos em classes sociais mais abastadas sejam beneficiados.
Afinal, campanhas eleitorais, por mais modestas que sejam, para se viabilizarem, precisam no mínimo de publicidade, material impresso, advogados e contadores, o que já não é barato. E considerando que o cidadão brasileiro não tem a cultura de contribuir com campanhas eleitorais – o que é reflexo do déficit democrático e da falta de identidade partidária -, a arrecadação de fundos para as campanhas torna-se ainda mais difícil para aqueles que não possuem recursos próprios a aplicar.
A ideia de se instituir um financiamento público de campanha seria ainda mais democrática se acompanhada da limitação de doações de pessoas físicas, de modo a se evitar que candidatos detentores de grandes fortunas se destacassem sobre os menos abastados.
O texto-base aprovado na Comissão, porém, atém-se apenas à criação de um Fundo Especial de Financiamento da Democracia - FFD, cujos recursos seriam distribuídos exclusivamente aos partidos políticos e fiscalizados pela Justiça Eleitoral. Pelo texto apresentado pelo relator, o FDD seria abastecido por (i) recursos provenientes de dotações consignadas em lei orçamentária em anos eleitorais, correspondentes a 0,5% da receita corrente líquida apurada no ano anterior; (ii) arrecadação oriunda de doações e contribuições que forem destinadas ao FFD; (iii) rendimentos gerados pela aplicação de suas disponibilidades e outras fontes.
A Comissão concluiu a votação dos destaques no dia 15 de agosto, mas agora o texto-base aprovado terá que ser votado em dois turnos na Câmara e em dois turnos no Senado para entrar em vigor. Pelo regimento interno da Câmara, ainda, a votação somente poderá se dar após duas sessões plenárias, já que se trata de um projeto de emenda constitucional.
O que se sabe é que provavelmente o texto-base proposto pela Comissão sofrerá alterações ainda no plenário da Câmara, já que boa parte dos parlamentares se declararam contrários à transição via “Distritão”; e há ainda aqueles que já declararam objeções à forma de financiamento público tal como proposta.
O próprio relator Vicente Candido recentemente deu declarações à imprensa admitindo retirar do texto da PEC 77/2003 – que já foi aprovado pela Comissão Especial - o valor fixo de 0,5% da receita corrente líquida do governo federal, para transferir a definição dos repasses para a Comissão Mista de Orçamento, durante a elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA).
Aguardemos os próximos capítulos.
1 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1583774&filename=Tramitacao-PEC+77/2003
2 Segundo o já referido relatório elaborado pelo deputado Vicente Cândido, 93,2% dos deputados federais eleitos na última legislatura se elegeram com os votos de suas legendas e coligações, isto é, não se elegeram com seus próprios votos.