Eleições 2020 e as cotas afirmativas de gênero e raça
Artigo publicado originalmente na coluna do Fausto Macedo, no Estadão. Clique aqui para a versão original.
Nestas eleições, o Judiciário acaba de dar mais um passo na busca por uma reparação histórica do déficit de representatividade da nossa democracia. Desde a década de 90, o movimento de mulheres vem obtendo conquistas legislativas e no judiciário, da reserva mínima de gênero entre as candidaturas apresentadas pelos partidos, até a distribuição mínima proporcional de recursos públicos dos partidos para as campanhas de mulheres. Os resultados ainda são desanimadores, pois as mulheres são minoria nos espaços de poder. Mas esta história também tem raça.
Analisando dados das eleições de 2018, sobre a distribuição de recursos para candidaturas à Câmara dos Deputados, pesquisa da FGV revelou que homens e mulheres brancas saíram na frente, recebendo mais recursos do que pessoas negras. Considerando a média de recursos entre todas as candidaturas, homens brancos receberam 43% acima da média e mulheres brancas receberam 11% abaixo. As mais subfinanciadas foram as candidaturas negras, com homens negros recebendo 36% menos e mulheres negras recebendo a absurda marca de 66% menos recursos do que a média. É preciso, portanto, compreender que a nossa democracia tem uma dívida histórica de gênero e raça.
E é com este intuito que os movimentos negro brasileiros, com especial mobilização das mulheres negras, propuseram e pressionaram no Tribunal Superior Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal a incorporação, já para estas eleições de 2020, da distribuição de recursos públicos de campanha e tempo de rádio e TV, considerando não apenas gênero, mas também raça. E, mais uma vez, estamos vendo os partidos reagirem a estas conquistas, ora por falta de informação, por conta de interpretações divergentes destas decisões judiciais adotadas com boa parte da disputa eleitoral já em curso, ora por novos argumentos para velhas práticas, em que o piso mínimo legal e jurisprudencial é sempre o teto máximo do que os partidos estão dispostos a fazer.
Partidos estão justificando que não podem investir nas candidaturas de mulheres, além do mínimo, pois estariam ferindo a distribuição de recursos para as candidaturas de homens negros. Para rebater estes argumentos é que apresentamos aqui a nossa interpretação das recentes decisões do TSE e STF sobre como a Democracia 2020 deve incorporar gênero e raça primeiro e pode ir além do mínimo.
No dia 25 agosto de 2020, o TSE (Consulta nº 0600306-47/DF) decidiu que:
(i) os recursos públicos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres (decisões judiciais do STF na ADI nº 5617/DF e do TSE na Consulta nº 0600252-18/DF), devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações;
(ii) os mesmos recursos públicos de financiamento e a distribuição de tempo de rádio e TV na propaganda eleitoral gratuita devem ser destinados às candidaturas de homens negros na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações.
No dia 10 de setembro de 2020, o ministro Ricardo Lewandowski, em decisão cautelar de ação no STF (ADPF 738), estabeleceu diretrizes de como os partidos devem proceder na distribuição de gênero e raça: “(...) o volume de recursos destinados a candidaturas de pessoas negras deve ser calculado a partir do percentual dessas candidaturas dentro de cada gênero, e não de forma global. Isto é, primeiramente, deve-se distribuir as candidaturas em dois grupos - homens e mulheres. Na sequência, deve-se estabelecer o percentual de candidaturas de mulheres negras em relação ao total de candidaturas femininas, bem como o percentual de candidaturas de homens negros em relação ao total de candidaturas masculinas. Do total de recursos destinados a cada gênero é que se separará a fatia mínima de recursos a ser destinada a pessoas negras desse gênero”.
Essas decisões recentes precisam ser lidas em conjunto com a construção legislativa e jurisprudencial sobre o fomento a candidaturas de mulheres.
Nos anos 90, a Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições), em seu artigo 10º, §3º, estabeleceu a obrigatoriedade de que cada partido preenchesse o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo, nas eleições proporcionais, obviamente esse mínimo foi uma garantia para as candidaturas de mulheres, posto que os homens, e especialmente os homens brancos, já vêm secularmente dominando as instâncias partidárias e eletivas.
Em 2018, e valendo a partir daquelas eleições, as decisões judiciais do STF (ADI nº 5617/DF) e do TSE (Consulta nº 0600252-18/DF) foram no sentido de que os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do Fundo Partidário, bem como o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão, deveriam observar os percentuais mínimos de candidatura por gênero previstos na Lei das Eleições, justamente para dar concretude a um dispositivo legal de cotas afirmativas que até então não havia alcançado os resultados almejados. E, caso houvesse presença de candidaturas acima do mínimo legal de 30%, a distribuição dos recursos e tempo de rádio e TV deveriam acompanhar a real proporção.
Portanto, nada impede que um partido possa investir um valor maior de recursos financeiros do que a proporção de candidatas mulheres que tiver. A legislação e jurisprudência construíram o mínimo e não o teto de investimentos em mulheres candidatas. E isso não foi alterado pelas decisões mais recentes, que apenas contribuem em ressaltar agora a importância, também, do respeito à divisão por raça, dentro da distribuição por gênero. Ou seja, de acordo com o percentual de mulheres e homens negros que se coloquem como candidatos.
O que isso significa na prática? Se um partido tiver 35% de mulheres candidatas, sendo 10% mulheres negras, ele já deveria investir no mínimo 35% de seus recursos e tempo de rádio e TV para as candidatas mulheres. Ou seja, proporcionalmente à quantidade de mulheres candidatas. Mas, se o partido desejar, pode destinar mais do que este mínimo. Este partido hipotético poderia decidir investir, por exemplo, 50% de seus recursos entre estes 35% de mulheres candidatas. As decisões atuais seguem permitindo isso, elas apenas dizem que dentro da proporção de recursos destinados às mulheres pelos partidos, deve-se dividir proporcionalmente os recursos entre as mulheres negras e brancas. Neste caso hipotético, as mulheres negras teriam direito a um terço dos 50% de recursos. Já os 50% de recursos restantes, seriam distribuídos entre os 65% de homens candidatos do partido. Como? Respeitando a proporção racial entre homens brancos e negros candidatos do partido.
Aliás, ainda quando o tema estava no TSE (Consulta TSE n° 0600306-47/DF), o voto do relator Ministro Luís Roberto Barroso nos autos traz tal raciocínio de forma didática: “(...) a destinação de recursos a pessoas negras deve ocorrer dentro da destinação de recursos por gênero, e não de forma global. Isso porque a evasão de investimento nas candidaturas de homens negros e o baixo investimento de recursos nas candidaturas de mulheres negras se verificou justamente a partir de desvios na aplicação prática da reserva de recursos para candidaturas femininas”.
A aplicação de cotas afirmativas para candidaturas femininas, já nas Eleições de 2018, também no financiamento público de suas campanhas e visibilidade em tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV trouxe resultados que em duas décadas de reserva legal de candidaturas mínimas não vinham sendo alcançados. O número de mulheres eleitas no parlamento subiu em 50% - ampliar visibilidade e acesso a recursos fez a diferença.
Ainda assim, com o resultado eleitoral de 2018, as mulheres passaram a ocupar apenas 15% das cadeiras na Câmara dos Deputados, e, de forma mais dramática, as mulheres negras, embora sejam quase 28% da população brasileira, representam apenas 2,5% desses cargos legislativos. Os homens negros, por sua vez, embora superem o percentual total de mulheres eleitas na Câmara dos Deputados, ocupando 22% dos assentos, ainda permanecem subrepresentados em relação ao perfil da população brasileira. Por outro lado, os homens brancos, grupo minoritário em termos demográficos, segue hegemônico em termos políticos, ocupando 62,57% da composição atual da Câmara dos Deputados.
Não há como deixar de notar que, dentro do recorte interseccional, as mulheres negras permanecem sendo o grupo mais subrepresentado e mais subfinanciado nos pleitos eleitorais, mesmo com as mudanças de 2018, que garantiram um mínimo de recursos para as candidaturas de mulheres. Tais mudanças acabaram beneficiando mais às mulheres brancas do que às mulheres negras.
A destinação maior de recursos de campanha para candidaturas femininas, ainda que em proporção maior do que o número total de candidatas, não pode ser inviabilizada por uma interpretação equivocada e restritiva das cotas afirmativas de gênero e raça. Entender de maneira diversa é acreditar que a desigualdade de oportunidades na corrida eleitoral acarretará a igualdade de resultados em número de eleitas, o que obviamente não acontecerá.
A adoção destas medidas afirmativas como forma a inserir estes grupos tidos como minorizados nas esferas de poder político do país, além de ser uma tentativa de reparação histórica amparada especialmente pelo princípio da igualdade no recorte eleitoral, encontra coro também na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher e na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, as quais contam com a subscrição da República Federativa do Brasil, e sob tais primas é que a legislação eleitoral merece ser analisada.
Portanto, os entendimentos dos julgamentos recentes do TSE e STF trazem consigo a necessária interpretação de que a aplicação dos recursos públicos destinados às campanhas deve observar as balizas constitucionais, especialmente calcando-se no princípio da igualdade em todas as suas dimensões, de modo a garantir a todas as candidaturas negras o acesso mínimo aos recursos do Fundo Partidário e do FEFC e o acesso ao tempo de rádio e TV na medida da proporção das candidaturas apresentadas, para que com isso tenham aumentadas as chances na disputa eleitoral.
Em um país com uma diversidade populacional, demográfica e socioeconômica como o Brasil, é necessário que se discuta a democracia sob o prisma interseccional da igualdade de gênero e raça, reparando assim no viés eleitoral a desigualdade nas esferas de poder político da nossa democracia.
*Por Carla Nicolini, Evorah Cardoso, Gabriela Araujo e Maíra Recchia, advogadas integrantes da Comissão de Direito Eleitoral e coordenadoras do Observatório da OAB-SP, com atuação acadêmica na perspectiva de Direito e Gênero.